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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Ora aqui está uma má notícia... para os advogados

Incursões, 28.07.06
O Supremo Tribunal de Justiça recusou declarar inconstitucional a lei que instituiu o encurtamento das férias judiciais. Esta decisão unânime de oito juízes conselheiros surgiu em resposta a um recurso interposto pela Associação Sindical dos Juízes (ASJP) sobre uma deliberação do Conselho Superior da Magistratura (CSM). Os juízes pretendiam que essa deliberação fosse declarada nula por, entre outros argumentos, a lei das férias judiciais violar os princípios da igualdade e proporcionalidade.
Pode ler-se mais no JN desta sexta-feira

Coincidência?

O meu olhar, 28.07.06
Experimentem por a palavra inglesa FAILURE no Google, façam Pesquisar na web e vejam o que aparece em primeiro lugar. Como exemplo não podia ser melhor…

Bom, aproveito para me despedir já que vou de férias. Umas excelentes férias para todos e que a boa disposição vos acompanhe!...
Um abraço

PJ fica no Ministério da Justiça

Incursões, 27.07.06
O secretário de Estado da Justiça, Condes Ribeiro, reafirmou esta tarde, em Lisboa, que a Polícia Judiciária vai ficar na tutela do ministério da Justiça e que o modelo da instituição vai manter-se. A nova lei orgânica vem a público já em Setembro. (...)

Para discutir os vários modelos policias e reconhecer a primazia portuguesa estiveram Nuno Rogério, o jornalista Rui Costa Pinto, o bastonário da Ordem dos Advogados, Rogério Alves, o director nacional da PJ, Alípio Ribeiro, o secretário de Estado Adjunto da Justiça, Condes Ribeiro e Carlos Anjos, Presidente da ASFIC/PJ (Associação sindical dos Funcionários de Investigação Criminal).

(Fonte Portugal Diário)

Juro que este postal não tem nada a ver com o que está abaixo

Incursões, 27.07.06
O Ministério Público (MP) vai ganhar mais poder assim que for aprovado o novo Código de Processo Penal, cujo anteprojecto foi ontem entregue ao ministro da Justiça. Entre outros pormenores, no novo texto saem reforçados os poderes do MP na verificação do trabalho das polícias, na instauração de inquéritos, na constituição de arguidos e na fiscalização das escutas telefónicas.

Também se lê no JN desta 5ª feira

Todos os nomes

Incursões, 26.07.06
(São Hermenegildo, o mártir)
Eu tenho muitos traumas. Mas há um que me perturba sobremaneira: o nome. Melhor: o facto de não ter nome. Ou melhor ainda: a dificuldade com que os outros enfrentam o facto de eu não ter nome.

Se eu me chamasse Miguel, era Miguel e pronto. Ou Pedro. Ou João. Ou Ernesto. Mas não. Os meus pais, imbuídos do mais são dos sentimentos, olharam para mim quando eu nasci e acharam que eu tinha cara de vagamente Joaquim e de vagamente Manuel. Por não terem tempo para escolher, há que registar-me como Joaquim Manuel. Eles nunca me falaram sobre o assunto, mas eu acho que foi assim. Imagine-se: Joaquim Manuel!

Nos primeiros anos, a coisa resolveu-se com alguma facilidade. Eu era o Quim Manel. Nem só Quim, nem só Manel. E ainda hoje, para os amigos que vêm de então, eu sou o Quim Manel. Para a família também, descontando as minhas tias mais novas que resolveram o trauma com um Manolo.

Quando saí do Marco, achei que não devia ser mais Quim Manel. O Manolo também não me parecia. Mas não fui capaz de optar entre o Joaquim e o Manuel. Usar os dois nomes estava fora de questão, sobretudo porque comecei a escrever nos jornais e assinar com Joaquim Manuel Coutinho Ribeiro ocupava duas linhas. Na dúvida, apontei para Coutinho Ribeiro. Achei que era suficientemente exclusivo para não criar confusões, até porque o meu irmão (que se chama João Célio, mas é o Célio) não estava no segmento.

A partir daí, institucionalizou-se o Coutinho. Passou a ser uma espécie de primeiro nome (com alguma variantes: pequeno Couto, dizia o Fiel; petit Coutain, dizia o Kiki). Fica mal, eu sei, mas foi assim que aconteceu com uma enorme naturalidade. Em Coimbra, eu era o Coutinho. No Porto, também. Para os colegas mais próximos, sou o Coutinho; para os outros, o Coutinho Ribeiro.

Claro que o problema ressurge quando a intimidade se aperta. Os homens não ligam muito a isso, mas as mulheres são mais dadas a esses preciosismos. E quando a intimidade é muita, realmente não fica muito bem um amo-te Coutinho. É pouco poético. Demasiado comercial, eu acho. A minha ex-mulher resolveu o assunto tratando-me por Ni - tal como eu a tratava -, mas isso foi antes de eu ter todos os defeitos do mundo. Agora, para alguma amigas, sou o Joaquim. Para outras o Manuel. Ou só Manel. E há ainda quem queira dar um tom mais íntimo e me trate por Mané. Grrrrr.

O trauma cresce todos os dias. O que é legítimo. E sugere-me uma dúvida: devo mudar de nome? Que tal Hermenegildo? É um nome forte, inconfundível, é nome de comandante. E de santo. E de mártir. Vá, mas deixem-se de coisas: é Hermenegildo e ponto final. Não se lembrem depois de começarem a tratar-me por diminutivos, tipo Gil ou coisas do género, que eu não alinho em palhaçadas.

...

d'oliveira, 25.07.06
Variações sobre o Verão

O canal Arte passa um filme , melhor dito um western de Richard Fleischer com Robert Mitchum: Bandido ou Bandido Caballero, no original. Já não é o oeste americano mas o México insurrecto. Claro que Mitchum há-de tomar o partido dos zapatistas ou villistas, contra a tropa fandanga que explora a terra miserável. Não tem nada a ver com A Quadrilha Selvagem (The wild Bunch) ou com Os Sete Magníficos. Tem graça que de repente apareceram uns filmes ambientados no México que aparte o facto de terem sempre um yankee como principal figura, já não maltratam os mexicanos. Que eu ainda sou do tempo em que mexicano em western ou era patife ou um serviçal falando uma misturada de espanhol e inglês (Take care, señor! There are many bandidos near the frontera) Até Ford, o Magnífico menosprezou os latinos!
Que recordações entretanto me assaltam. Durante a minha estadia em Lourenço Marques tinha um grupo de amigos com quem ia sempre ao cinema. O nosso dinheiro era escasso de modo que caíamos sempre no Scala um cinema de reprises que tinha a vantagem de só passar filmes de acção e, antes do filme principal, passava um episódio de longuíssimas séries que eram o encanto da malta. Aquilo valia tudo: morria aliás tanta gente por episódio que uma vez fizeram-se as contas da série chamada O Barco Misterioso (um desses vapores de rodas carregado de jogadores, aristocratas do sul cantoras fatais, meninas de saias rodadas e o herói) Eu não sei se terá sido o Magalhães quem teve a ideia de contar os mortos no barco. Mas deve ter sido ele apesar de, no dizer do Dr. Brito, o Magalhães ser a viva personificação da negação da matemática. O caso é que em dois meses a quatro sessões semanais tinham morrido cerca de trezentas pessoas, por quedas ao rio, emaranhados nas fatais rodas, tiros no salão de jogo, facadas em recantos obscuros das cobertas, setas de índios (em pleno Mississipi!!!) para já não falar nos que eram arrebatados por crocodilos de uma espécie que devia ser voadora. Entretanto o barco também conhecia crises próprias, incêndios, caldeira a explodir, agua nos porões, rochas submersas, encalhamentos. Enfim: diversão pura que era ainda mais pura porque o fim de cada episódio nos deixava num suspense horrível e titânico que só passava com o início do episódio seguinte onde afinal a tremenda tragédia se desfazia num par de mortos e num salvamento de última hora.
E depois da série vinha o filme propriamente dito: western, claro, western baratucho, de pacotilha, muito tiro, muito cavalo, pouco sexo, que a América que produzia estes filmes era quase tão puritana quanto o Bush actual. Só que os filmes eram menos perigosos que este cavalheiro. Ao fim de hora e meia a sala iluminava e nós saíamos para um mundo real, colonial a preto branco e mais um par de cores que apesar de tudo era bem melhor que o Iraque actual para já não falar de Beirute. Mas deixemos a actual situação e continuemos nos filmes. De vez em quando para variar apareciam comedias italianas, desde as do Dino Risi até outras menos elaboradas mas que a rapaziada preferia (aos 13, 14 ou 15 anos não se pode ser propriamente um cinéfilo!…): filmes de praia, italianas de fazer parar o transito e uns parolos a tentar cortejá-las. Claro que os cretinos levavam sopa porque entretanto aparecia o verdadeiro galã, pobre mas honrado, e convertia aquele absoluto desparrame de mulher ás virtudes do amor puro, simples e pobre. E a fita acabava com o parvalhão cornudo a olhar para o carro enquanto a bela e o sedutor partiam numa vespa ou numa lambretta, ela bem agarradinha ao condutor, ou pelo menos tão agarrada quanto o permitia a sua anatomia transbordante.
Doutras vezes eram os policiais franceses (Eddie Constantine na pele do agente especial Lemmy Caution, falando um francês absolutamente britânico). Murros, mulheres fatais em negligés vaporosos, gangsters de pacotilha, aventuras com um ligeiríssimo fundo politico.
A Inglaterra anunciava-se sob as cores tolas da série Carry on. Umas comedias que hoje não consigo perceber mas que na época me faziam rir a bandeiras despregadas. Quase tanto como os filmes de Cantinflas, o mexicano magnífico esse actor genial que se chamava Mario Moreno. Tão bom quanto o grandíssimo Totó, falso – mas verdadeiro!, para todos quantos o viram - príncipe Curtis, napolitano universal que só a burrice actual e a miséria cinéfila triunfante (as duas sobrepõem-se) ainda não souberam render a devida homenagem. E não esqueçamos Fernandel esse francês do sul que anunciou outros cómicos posteriores. De todo o modo nesse tempo os cinemas enchiam-se e não se falava de crise. Se calhar era porque o cinema não era monocolor e mono-nacional. Eu que tenho o cinema americano em alta estima desconfio que irá também ele ser vítima do seu êxito. Sem a concorrência europeia o cinema americano estiola e repete-se. Mas deixemos isso, essa metáfora da politica actual, porque estamos no Verão e eu estou aqui para falar de férias e de prazeres simples. E de filmes alemães que também havia. Deixo para os dias outonais o sublime Murnau (cujo nome relembra a vila onde terá crescido e onde os expressionistas se reuniam à sombra da bela Gabrielle Muntner e venho relembrar a lindíssima Maria Schell (ai que paixão !!!) e a Romy Schneider da série Sissi. Claro que vi os filmes da Sissi, quanto mais não fosse porque as namoradinhas não falhavam. Aliás vi quase todos os filmes da Schneider e chorei gordas lágrimas quando morreu, vitima ela também do cinema, da vida, do amor. Quem teve a paciência de aqui chegar, junte-se a mim num comovido pensamento pela bela Romy.
Mas a que vem tudo isto, esta ladainha choramingona de um tempo definitivamente passado e de um cinema que falava línguas variadas mas tinha uma única gramática e um público ávido e inocente? Vem que estamos no Verão, companheiros e amigas, na estação em que, como um editorialista pateta de um jornal de referencia assevera com espanto, se desencadearam guerras. A criatura parece não perceber que ninguém iniciava uma ofensiva quando chovia, nevava, havia lama e os caminhos estavam intransitáveis. Alem do que o Verão propiciava saques de alimentos, de trigo, que o inverno áspero não permitia. Mas deixemos isso, que hoje não vim aqui fazer política. Vim apenas lembrar prazeres simples, leituras leves, momentos de descanso, que a vida também é isso. E dizer-vos até daqui umas duas ou três semanas, que eu vou para férias. Já tenho uma pilha de policiais, alguns dvd de comedias antigas, dois ou três livros mais substanciosos. Quem quiser que apareça entre as dez e a uma (portuguesas) na praia de Areas, mesmo à sombra de um pequeno restaurante A Postiña. Procurem um cavalheiro infamemente gordo, moreno, barba branca e curta, debaixo de um guarda sol, de livro em punho e El País ao lado. Terei muito gosto em vos pagar uma caña . O Verão também é isso. E carreguem as baterias para os tempos que se avizinham.

Vosso, mas muito veraneante - só faltam três dias! - d'Oliveira

Au Bonheur des Dames - suplemento ao nº 28

d'oliveira, 25.07.06
Os figos

Naquele tempo, a praia era grande mas não como agora que a areia comeu uma boa fatia à enseada. O mar vinha mais terra adentro e podiam distinguir-se perfeitamente as três zonas que marcavam a baía. Baía, não enseada. Baía limitada pela foz do rio, mais precisamente pelo forte de Santa Catarina, a sul, e pelo cabo Mondego a norte. No ponto mais reentrante uma fita de casas, só de um lado da estrada, marcava o sítio dito da Praia. Antes chamara-se Palheiros, e ainda é assim que aparece nas descrições das fortificações que defendiam Buarcos, capital do concelho e a jovem povoação da Figueira da Foz. À boca do rio o já citado forte, em Buarcos as muralhas da vila. A meio “para cruzar fogo” erguia-se o fortim de Palheiros, toponímia perdida e que significava casas provisórias de pescadores.
Se cito esta ladainha de fortalezas é tão só para tentar explicar o que seriam estas dignas e abandonadas fortificações para a pandilha de miúdos que comigo cresceram: um dom celestial, uma permanente aventura, um convite a gazetar à escola e á catequese. Então o fortim era uma bênção. Estava mesmo atrás da nossa casa. Bastava trepar um muro de quatro ou cinco metros e entrava-se numa enorme tapada carregada de árvores antigas e com o fortim meio sepultado entre meia dúzia de enormes figueiras. Um tesouro para a passarada e para o pequeno grupo de miúdos que viviam na nossa rua. Tesouro guardado com mil juras, com a gulodice a ajudar a tapar a boca dos mais faladores.
Todavia, uma história de amor infeliz viria a tornar as figueiras um pouco mais públicas e sobretudo um pouco mais partilhadas pelos meninos que no Verão (e o Verão naquele tempo era três longos meses) se juntavam ao nosso pequeno grupo.
Tudo começou num dia em que Fredão (ou o Frederico gordo, o pançudo, o banhas) amigo do peito, me confidenciou que estava apaixonado. Apaixonado e mal correspondido. Ou melhor sem qualquer hipóteses de correspondência. Uma tal Ju ( morena, olho atrevido e voz de pirolito, a melhor bebida “gasosa” daquele tempo de dificuldades (princípios dos anos cinquenta…), ou seja um voz de marulho manso de água fresca e açucarada para traduzir isto para o meu fã clube de leitoras brasileiras…
A Ju tinha passado do primeiro para o segundo ano do liceu como Fredão, enquanto eu já ía a caminho do terceiro. Portanto a donzela averbaria onze castos anos, os mesmo de Fredão e o cronista andaria pelos doze. Castos, também que naquele tempo havia moralidade e nós, de todo o modo, éramos demasiado novos. Mas namoros e paixões tremendas não faltavam. A pontos de alguns já começarem a dançar. Danças sérias, entenda-se, na garagem do Nélito, com mães, tias e avós sentadas em redor, atentas, atentíssimas. De vez em quando dançava-se a raspa, uma coisa espanhola, importada através do Casino Peninsular a cujas matinés infantis (quartas e Sábados) assistíamos todos deixando a praia deserta. A raspa consistia numa meia dúzia de saltos, e rodas entusiásticas, com uns gestos á mistura. Era óptimo porque as saias rodadas das meninas levantavam-se um bocadinho. E um pouco de perna ao léu sob uma saia era muito melhor que a perna toda na praia quando a proprietária da dita cuja andava de fato de banho!
Portanto Fredão, apaixonado. Fortemente! A pontos de nem lhe apetecer a “bolacha americana” das tardes. E olhem que o sacrifício da bolacha americana, era coisa digna de espanto. Pior: Fredão desdenhava os jogos diários de futebol. Vá lá que, se porventura era um Portugal Espanha, ainda se animava. Não pelo futebol mas pela hipótese de batalha campal em que o jogo se tornava após os primeiros dez minutos ou o primeiro golo. Aí começava a valer tudo. Tudo, ponto e vírgula! Estava formalmente proibido puxar para baixo os calções do adversário. Havia pudor! Fora isso valia tudo: canelada, empurrões, rasteiras, encontrões e o mais que viesse à cabeça dos atletas. Era a pátria que estava em causa!
Voltemos, porém, ao suspirante Fredão: um desastre. Sentado, longe do grupo, à beira mar, com o pé a molhar na onda, Fredão, sondava a distância, o mar, e nem olhava para quem passava. A restante garotada indiferente, demasiado ocupada com as variadas ocupações de um dia de praia. Aliás manhã de praia que o desgosto de Fredão inaugurou-se por volta das nove da manhã e eram dez e tal quando eu me apercebi do caso. Preocupado e circunspecto sentei-me junto dele e disparei: tás doente?, queres vir ao banho? Vamos picar umas carreiras? Posso almoçar em tua casa?
Fredão encolheu os ombros e respondeu: não, não, não, sim se te apetecer mas hoje o almoço vai ser caras de bacalhau porque o meu pai chegou ontem à noite de repente e quer comer as caras de bacalhau.
Porra! Pensei. – caras de bacalhau! – Convém dizer que o pai de Fredão, além de autoritário tinha a mania de comer iguarias deste teor que nós todos, a arraia miúda, detestávamos. Aliás logo que cada prato estava servido pela criada começava um descarregar de caras de bacalhau no prato do parceiro que fazia o mesmo até encher o prato da irmã mais nova de Fredão que protestava baixinho. Aí o pater famílias punha os óculos de ver ao longe e dizia “Amélia ponha mais caras de bacalhau aos meninos que eles já acabaram!” E já não tirava os óculos. E nós, lá tínhamos de comer aquilo. Ou como dizia o Dr. Alves (o pai do Fredão) ou comem as caras a bem ou comem a mal, as caras e uns bofetões… O dr. Alves, fazia parte de uma negregada confraria de pais de crianças em férias na Praia que atribuía a todos os seus membros o direito de bofetão e castigo a qualquer dos filhos próprios ou alheios. Uma conspiração de pais que só pedia meças a uma outra de mães e tias que era ainda pior!
Bom, voltemos ao Fredão. Desconvidei-me de imediato do almoço e inquiri das suas razões para estar com tal carga de angústia existencial. Não foi bem assim que eu disse mas o Fredão, pouco dado ao estudo de Sartre, não se incomodou e desbobinou a história da Ju, que ao saber por terceiro (um emissário, no caso o Marito, primo do Fredão), da paixão assolapada teria dito que o Fredão estava bom para namorar uma toninha. Ora, como as leitoras do Brasil não saberão, a toninha é uma dessas bichezas marítimas, estilo golfinho, que por vezes apareciam mortas no nosso litoral, mortas e a cheirar que tresandavam. E gordas. A afronta, o desdém, a comparação eram, pois, graves. E definitivas. E logo no princípio do Verão! E Fredão deixou escapar uma lágrima gorda (como ele) pela bochecha (também gorda e reluzente). Eu não posso ver ninguém chorar. Sobretudo um amigo que me avisava dos menus em casa dele para eu poder comparar com os da minha casa e escolher lealmente o mais adequado ao meu apetite.
Conversámos gravemente sobre o mundo, a vida, a volta a Portugal de bicicleta o talento do nosso campeão Alves Barbosa, as raparigas e os seus múltiplos mistérios e mesmo sobre uma certa Gina que eu andava a atacar. E ela, toda risinhos, segredinhos às colegas, deixando perpassar a ideia que “enfim, talvez…”. A coisa estava mesmo avançada: no jogo dos “reis e rainhas” ela queria-me para par (sinal verde, portanto, como a bandeira todos os dias erguida no nosso pedaço de praia). Fredão, bom apreciador, dava palpites. Vais bem pá, ele é muito gira! E eu, magnânimo “mas a Ju não lhe fica atrás.” Jesus o que fui dizer! Segunda lágrima de Fredão, logo seguida de terceira e quarta e por aí fora até eu o arrastar para o mar porque alguém podia ver o Fredão a chorar e um homem não chora mesmo quando tem onze anos e uma paixão do tamanho do fortim de Palheiros! Ai meu Deus, outra argolada! Fortim?, espantava-se Fredão entre duas ondas. - Fortim de forte, de castelo, com ameias, canhões, arcabuzes, bombardas, metralhadoras, lanças e espadas? - Melhor respondia eu, inconsciente e apiedado. - Melhor?, rugia Fredão, já esquecido da Ju, de todas as Ju, jás, jés e o que mais vier sobre forma de cobra feminina para atenazar o coação imenso dum gajo gordo mas forte, campeão de natação e de canelada, imbatível no jogo do empurra e grande apreciador de bolacha americana! - Melhor!. dizia eu, inconsciente de novo, burro, burro, como se verá. Um fortim cheio de figueiras! - Com figos? Babava-se Fredão, -Cheio , cheínho de figos! - Pingo de mel?, Insistia o guloso. - Sei lá! - Não acredito! - grande hipócrita o gordo, já tendo percebido que havia ali grosso, gordo segredo. - Ai não? Pois vamos lá hoje à tarde!
E fomos. Fredão sentou-se num ramo conveniente e grosso e durante umas horas comeu figos. Maduros, assim assim, verdes e verdíssimos! A passarada, que nos ramos mais altos também debicava, estava muda: nunca tinham visto nada daquele género. Uma máquina humana e metódica a devastar uma figueira centenária e carregada de fruta.
No dia seguinte de Fredão nada! Onde está onde não está? - Na cama com uma diarreia astronómica (gastronómica corrigia o Luisinho, sacaninha e bom aluno). - Doente - anunciou a criada Amélia. -Lá para a tarde podem visitá-lo, coitadinho, fiz um pudim mas não lhe podem dizer que ele está de dieta. Ordens do Dr. Marcelo ( o meu pai que aviava as nossas doenças de verão com rapidez e clisteres).
Fredão esteve ausente durante três dias tendo sido visitado (ele ou o pudim) no primeiro. Com o tempo as doenças deixam de ser interessantes sobretudo se não houver um lanche decente para os visitantes. Ao terceiro dia perguntámos pela Gina. Alguém disse foi ver o Fredão. Ninguém ligou. A Gina era mesmo assim. Comovia-se com a desgraça alheia mesmo se ela fosse uma simples caganeira por abuso de figos.
Ao quarto dia Fredão ressuscitou. Mais magro (menos gordo) pálido, proibido de futebol porque estava fraquinho. E de sol, no toutiço, nada! Por qualquer razão. Ou por nenhuma, como dolorosamente constatei quando o vi, muito juntinho da Gina, a partilhar uma bolacha americana. Grande traidor. As mulheres são umas cabras!
- Bem feito para não andares a dar á língua com as figueiras - resumiram acusadoramente o meu irmão, o Nélito e o Bartolomeu. - Agora temos de as mostrar aos outros!
E mostrámos! E afinal havia figos para todos! E apareceu uma menina chamada Isabel! E pediu-me ajuda para trepar à figueira. E ajudei! E disse-lhe quais eram os melhores figos. E ela agradeceu. E descascou um para mim!

Oh espíritos do Verão longo de outrora, dai-nos outra a vez a inocência dos anos que foram e não voltam. Ou um prato de figos! Maduros! Pingo de mel!

O Bonheur encerra para férias do pessoal e da gerência, que bem merece. Regressarão, lá para meados de Agosto, de terras galegas, com o papo cheio de marisco, peixinho fresco, pimentos do Padron (uns picam outros non!), vinhos do Ribeiro e Albariño e o que mais houver. Até lá comam os figos da aventura, do Verão e da nossa comum herança mediterânica.

Tourada em tarde de domingo

mochoatento, 25.07.06
Domingo, fui à tourada na Póvoa de Varzim. Trânsito infernal, impossibilidade de encontrar estacionamento, legal ou ilegal, gratuito ou a pagar, lá consegui pôr o carro no parque privativo de um restaurante, após procura durante quase duas horas ao ralenti.
Muita gente, muita alegria! A praça estava cheia. A festa ia começar! E veio a desilusão. Os dois primeiros touros eram fracos. Rui Salvador e Cochicho cumpriram os serviços mínimos. Entra Rouxinol e sai-lhe um touro coxo. Não é exagero, o animal arrastava a perna traseira esquerda; não se mexia. O público protestou vivamente. O director de corrida insistiu em que a lide se fizesse. A vaia do público foi monumental. O cavaleiro saiu. Quando reentrou, saiu um touro em condições. A lide, impulsionada e fortemente apoiada pela assistência, foi uma beleza (a melhor da tarde). Esperava mais de Sónia Matias (já assisti a melhor exibição). Ana Rita, cavaleira praticante muito jovem, arriscou na equitação, mas mostrou que tem valor.
As pegas foram complicadas. Salvou-se a última, que mereceu o prémio que lhe foi atribuído. O público aguardou os resultados da atribuição dos prémios. Desta vez o juri coincidiu com a opinião do povo (nem sempre isso acontece).
E, no dia seguinte, a tourada não foi notícia. No Público apenas se referia a manifestação de activistas anti-tourada. Vi-os quietos e sossegados, em número suficiente para pegarem no cartaz que exibiam (contei oito, mas o jornal referia vinte).

Penumbras

Incursões, 25.07.06

Não, não é verdade, não podes dizer isso, tu não me conheces, nunca me conheceste, por muito que me tenhas visto, e nunca irás conhecer-me, mesmo que me tenhas visto tantas vezes com o teu olhar de censura. Chegaste demasiado tarde, já o sol se punha, ficaste o que bastou - o que bastou - e foste, foste não sei por onde nem para onde. Não perguntei. Do mesmo modo que não te perguntei de onde vinhas. Uma falha de carácter!, gritas? Não, claro que não é nada disso e tu sabes que não é nada disso, mas não queres saber porque não não te interessa saber, preferes pensar que é uma falha de carácter, porque dói menos e parece mais justo. Mas só parece.

Entendamo-nos: podias ter sido, mas tu não foste um caso de amor, sequer uma paixão daquelas que fulminam. Tu foste um acaso. Eu fui um caso. Um flash. Um tropeção que caíu bem, mas tinha prazo certo. Como um contrato de ususfruto com termo certo. Cada um de nós fruiu o outro e foi muito. E foi bem. E não foi isso o que eu te disse? Não acreditaste? Pensa bem. Não foi isso o que combinámos, naquele momento em que o sol se pôs e eu te disse que era o vagabundo à espera de um poiso, mas que não andava à procura de poiso, porque me habituei a ser um sem abrigo? Não foi isso mesmo o que viste, durante tanto tempo, aquele tempo em que numa noite por semana, sem uma palavra trocada, me olhavas e censuravas os meus desvarios? Pensa bem. Quando tropeçámos, eu até te disse que ressonava e que não gosto de incomodar ninguém... Pensa bem. Lembra-te das palavras exactas, porque elas foram exactas como uma escritura.

Se me custou ver-te partir? Custou, claro, sempre me doeram as partidas, custou-me ver o teu esgar de dor, o caminhar apressado, custou-me começar o retrocesso, esquecer os teus olhos que, queiras ou não, têm um traço de oriente e o teu sorriso que é o mais bonito do mundo. Mas chegaste demasiado tarde, já o sol se punha.

Foste um tempo que vai do sol ao sol. Que eu estou no tempo da penumbra, procuro as sombras, e foi aí que estivemos, porque chegaste tarde. Ou fui eu. Já não sei...
(Se te apraz, já tenho saudades)