A escolha das armas
Quem segue estes textos desde o início sabe que eles só se devem ao desafio de um par de leitores que entenderam cominar-me a explicar os ínvios caminhos da esquerda que percorri e onde me vou mantendo
tant bien que mal. Também não é segredo para ninguém (e muito menos para mim) que
esta viagem a um passado de mais de quarenta anos não está isenta de erros de apreciação, de falhas de memória e de “re-escrita” da história pessoal. Corro esse risco prevenindo os leitores e prometendo tentar limitá-lo tanto quanto possível.
Dito isto vamos às nossas encomendas. A terceira jornada desta navegação pelo meu passado deixou-me na Universidade em vésperas de 1962. E já que o título geral destas balivérnias o permite, vejo-me um pouco do que um grumete que tenta ganhar o galão (será assim que se diz?) de guarda-marinha. Era isso que me sentia: um jovem cooptado por uma tripulação bem mais experimentada para uma aventura que não teria as Índias como destino mas que seguramente não se ficava por um pais velho e triste.
Cumpri portanto sem problemas, receios ou desconfiança as pequenas tarefas do aspirante a militante. Devo dizer, entretanto, que nesse período conheci, conversei e fiquei amigo de alguns dos melhores elementos da minha geração ao mesmo tempo que lhes fiquei devedor de autênticas lições de coragem, de vida, de honra e de camaradagem. Contudo e curiosamente isso não bastou para me convencer a engrossar os quadros universitários do partido comunista. Ou, melhor dizendo, a postular a minha candidatura. Sentia-me bem na posição de “compagnon de route”, e confesso que aprendi isso em mais um romance, um belíssimo romance (“
Drôle de Jeu” de
Vailland que em Portugal circulou sob o nome de “O jogo da Cabra Cega”), sobre a resistência francesa. Nesta idade já podemos confessar esses exercícios de imitação de que, de resto, não me envergonho e muito menos me arrependo.
Todavia, eu queria chegar ao ano de 62 que, para mim, terá começado ainda em 61 com a campanha eleitoral para a Assembleia Nacional. Pela primeira vez participei (como subalterno muito subalterno) na campanha e, glória absoluta, fiz parte do grupo organizador de uma e única manifestação de rua duramente reprimida pela polícia. Recordo como se fosse hoje, o grupo de rapazes que se reuniu no escritório do dr.
Alberto Vilaça (que haveria anos depois de ser o meu primeiro patrono) onde se estabeleceram as linhas mestras da manifestação. No pega e foge que se seguiu apanhei algumas bordoadas o que já não era novidade para mim porque em 58 em Braga já sentira o peso dos cassetetes dos polícias. Os ânimos também já se tinham exaltado por ocasião do 1º convívio inter-academias, em Coimbra por ocasião da Tomada da Bastilha se não estou em erro onde tive oportunidade de ouvir pela primeira vez os grandes tenores da geração de dirigentes de 62. Datam daí as minhas relações com
Jorge Sampaio e Eurico de Figueiredo oradores prodigiosos, combativos que meses mais tarde seriam os dirigentes mais conhecidos da greve académica de 62.
A greve de 1962, pela sua amplidão, pelo eco obtido nas três academias, pela simultaneidade com uma grande ofensiva política do PCP que não só conseguiu significativos movimentos fabris durante a primavera como também mobilizou fortemente o campo alentejano. Isto para não falar nas duas gigantescas manifestações de 1 e 8 de Maio em Lisboa. Ao mesmo tempo e fundamentalmente em Coimbra e Lisboa a mobilização estudantil atingia grandes dimensões, superiores mesmo à movimentação estudantil durante a campanha de Delgado em 1958.
Não vou fazer a história da crise de 62 muito embora deva referir que fui dela testemunha e participante do primeiro ao último dia. De facto fiz parte do grupo de estudantes de Coimbra que conseguiram chegar a Lisboa e que por isso mesmo participaram logo dos primeiros enfrentamentos com a polícia de choque. Posteriormente, tive, com Carlos Bravo, alguma responsabilidade na organização de contactos entre Coimbra e Lisboa. Uma aventura absoluta graças aos nossos camaradas de Lisboa, gente sobretudo ligada às secções de propaganda das associações de estudantes. Fiz obviamente parte do grupo que ocupou a Associação Académica de Coimbra quer da primeira quer da segunda vez, já em Maio. Nesta altura a polícia assaltou a AAC e prendeu todos os seus ocupantes. Tive a duvidosa honra de fazer parte do selecto grupo de 44 estudantes que foram detidos pela PIDE e enviados para Caxias. Num mês aprendi mais do que em anos. Não só porque boa parte dos meus companheiros eram militantes experimentados mas também porque nas celas vizinhas das nossas estavam camponeses alentejanos claramente organizados e muitos militares do golpe de Beja. Dos primeiros recebemos uma lição de dignidade que quarenta anos depois ainda me maravilha e me faz respeitar com humildade esses homens que connosco partilharam um punhado de cerejas e um par de modas alentejanas de que recordo todas e cada uma das palavras. Foi em Caxias que percebi totalmente pela voz desassombrada de
Carlos Mac-Mahon a raiz dos acontecimentos de Angola.
Entre 60 e 62 a história acelerou brutalmente: o PCP não só se reorganizava espectacularmente, aumentando a sua influência em toda a parte, ungido pelas façanhas das fugas de Peniche e Caxias como ainda por cima Cunhal entrava pela porta grande e tornava-se o secretario geral indiscutido de um partido moralizado e internacionalmente reconhecido. Angola estava a ferro e fogo, na Índia a presença portuguesa desaparecia sem glória e com uns milhares de militares presos clandestinamente enviados para Portugal desonrados por um ditador que enlouquecia só e sem perceber o mundo que o rodeava. A partir de 1962 havia um cadáver em S. Bento apesar de ninguém saber, nem ele próprio. Um milhão de portugueses abandonava o país, enchia os bidonvilles de Paris e de mais um cento de cidades europeias e, com as suas remessas, com as “vacanças”, com o mau gosto das casa tipo maison e com o muito que aprenderam mudavam irremediavelmente uma terra e sobretudo um rapaz que vinha de Buarcos, de África, e que penosamente à força de livros, de gestos exagerados, tentava perceber em que mundo vivia.
A partir de 62, descobri que para se manter um mito, um ditador e os seus cúmplices estavam dispostos a mandar para a morte uns milhares de soldados para já não falar nos muitos mais civis de Goa Damão e Diu. Como essa lição não foi aprendida o sinistro slogan “
para Angola e em força” mostrava que no Portugal do Minho a Timor ninguém compreendera os ventos da história nem sequer que isso não era uma graçola de mau gosto. E todavia, as primeiras tropas que desembarcaram em África depressa perceberam que os proclamados “cinco séculos de presença portuguesa” se tinham limitado a meia dúzia de pontos da costa e que a língua imortal de Camões não era falada senão por pequeníssimos grupos de negros e mestiços. Verificaram também, e nós com eles, que a esmagadora maioria dos “indígenas” careciam dos mais elementares direitos, viviam pobremente, estavam sujeitos a uma série de obrigações no que respeitava ao trabalho nos campos que parecia copiada para pior das antigas obrigações dos servos da gleba. E nem sequer era necessário chamar à colação a suprema infâmia do “contrato” que originava transferências de milhares de trabalhadores jovens entre zonas distantes com todos os custos que isso deixava adivinhar. O racismo campeava fora dos grandes centros e mesmo neles era visível a divisão entre brancos e negros. Estes habitavam onde acabava o alcatrão e a água corrente. Também não tinham electricidade ou saneamento básico. E nesta constatação antiga a que se juntava a leitura dos autores anticolonialistas e, sobretudo, dos grandes clássicos da antropologia, da etnologia e da história africanas, começou uma das minhas mais duráveis paixões. Curiosamente ou talvez não isso levou-me a ler autores portugueses especialistas de África, quase todos publicados na revista da antiga Agência Geral do Ultramar. E convenhamos que se é verdade que nenhum atingiu a grandeza de
Jorge Dias, há pelo menos um certo número de autores respeitáveis que deixaram um espólio notável que não pode ser desprezado sequer por (falsas) razões políticas.
Estes anos foram igualmente aqueles em que terei levado a cabo a minha formação marxista. De facto, por diferentes razões, por meios diversos pude ler os chamados “grandes clássicos” nomeadamente Marx, Engels e Lenin. Ao mesmo tempo, e graças a pequenas colecções de bolso francesas, pude informar-me ainda que sumariamente sobre Proudhon, Bakunine, Blanc e mais uns quantos pensadores socialistas do século XIX. Daí fui derivando para clássicos tout court desde Voltaire ao Cavaleiro de Oliveira. Tinha tempo, disponibilidade e, sobretudo, curiosidade. E é altura de declarar aqui uma dívida a certas colecções francesas de livros com formato de bolso: “
10-18”, “Garnier-Flamarion”, “que sais-je” ou “libertés” da Pauvert.
Tendo em linha de conta que a maior parte dos meus leitores não viveu os anos sessenta devo acrescentar que para uma pessoa curiosa havia ainda outra maneira de aprender. Efectivamente, e apesar da censura, existia uma série de revistas que conseguiam publicar-se, que viviam apenas dos seus leitores e assinantes e que mensalmente forneciam uma larga cópia de artigos de opinião, recensões críticas, informação cultural do estrangeiro que permitia ao leitor atento perceber o que se passava. Três delas acompanharam-me até ao seu desaparecimento (
Seara Nova e
O Tempo e o Modo) ou até ao fim dos anos setenta (
Vértice). Nesta última fiz a minha aprendizagem de crítica literária e ao mesmo tempo de vítima da censura. Creio não andar longe da verdade se disser que terá escapado à censura pouco mais de 10% da minha produção. Duvido mesmo que mesmo nos textos publicados não tenha havido cortes parciais. E eu, apesar de tudo, tinha um certo cuidado mas pelos vistos não era o suficiente. Não se perdeu nada de grave, convém dizer.
Em resumo: nos primeiros anos da faculdade verifiquei que a actividade associativa (na Associação Académica e no CITAC), a intervenção cultural (Cineclube, Vértice, etc...) e a permanente disponibilidade política para, como “compagnon de route” integrar uma ampla frente oposicionista, me pareciam suficientes para me sentir de esquerda e actuante. O passo decisivo que seria militar no PC não oferecia mais “acção” antes tolheria ou dificultaria a aventura intelectual que eu prosseguia. E depois, mas isso fica para a próxima, acabava de descobrir o surrealismo.