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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

O tempo esse grande simplificador 6

d'oliveira, 15.02.07
O Zeca a saque

“Senta-te aqui que te quero apresentar um gajo porreiro!” – disse-me certa tarde o Jaime Magalhães Lima, no Mandarim de saudosa memória. O Mandarim agora é um mac-qualquer coisa ou um entreposto de hamburguers , nem sei bem. Naquele tempo era um café, snack bar e restaurante como devia ser, estava aberto até às duas da matina, hora em que, cabisbaixos decidíamos atravessar a Praça da República e desaguar no Moçambique (“capital de Angola, é uma homenagem”, dizia o Fontes, seu proprietário). “Os senhores doutores emborracham-se no Mandarim e vêm vomitar para o meu estabelecimento." –outra vez o Fontes (em frase imortal dirigida ao João Amaral que Deus tem e ao Zé Quitério que ainda por cá anda sempre de olho onde se come bem semanalmente à disposição dos fregueses com aquelas crónicas inteligentes e bem escritas. Saravah Zé!).
Cortemos a eito esta digressão para introduzir o personagem desta crónica: o Zé Afonso chegado não sei donde por via de um exame qualquer de Pedagógicas ou coisa semelhante, com um par de poemas a tiracolo e entre eles o “ Meninos do Bairro Negro”. Eu o Jaime lemo-lo em primeira mão aturdidos, comovidos, entusiasmados e mais sete adjectivos que alguma leitora caridosa queira emprestar. Éramos, dizia o Zeca, os primeiros leitores, vejam só! Isto é uma medalha que trago guardada há quarenta e tal anos.
O Zeca não me era inteiramente desconhecido, claro, que Coimbra era uma aldeia, mas, de facto, nos primeiros sessentas aparecia de fugida, porque já dava umas aulas não sei bem onde. Todavia conheciam-se-lhe uns fados, a Balada do Outono, que o meu Pai, coimbrinha dos quatro costados, todo associação dos antigos estudantes lá pelas áfricas, muito faduncheiro, achava de grande qualidade. Ou seja, o Zeca fazia a ponte entre a tradição pura e dura e os novos tempos de que ele seria o grande cantor.
A partir desse momento tive mais uma amigo e o Zeca mais um admirador.
A partir daí fomo-nos encontrando sempre assim, quase de surpresa, num recital, numa vinda a Coimbra, num disco novo.

2 E nisto de discos novos, muito haveria que contar. Por exemplo: anunciava-se sigilosamente um disco do Zeca. O segredo, claro, era manteiga em focinho de cão: meia hora depois cinquenta indivíduos ensimesmados encontravam-se por acaso na Casa Neves, na Baixa, encomendando em voz baixa o disco. A menina do balcão puxava de um caderninho e dizia, igualmente conspiratória: "fica com o nº 96." Porra, pensávamos já há quase cem à minha frente, como é que isto foi possível? E saíamos recatadamente, sob o olhar invejoso dos que estavam na bicha, para ir beber um café à Brasileira. Aí, sempre do lado esquerdo de quem entrava, em mesas carregadas de oposicráticos, bichanávamos: vai sair mais um disco do Zeca! "Já encomendei”, respondia invariavelmente o António da Cunha Pinto, autor (sob o nome de Lionel Brim) excelente de livros que ninguém lê por serem difíceis!!!

3 Uma noite no Avenida, eu e o Anto, nem acreditávamos no que ouvíamos: O Zeca cantava coisas completamente diferentes do que lhe conhecíamos (a formiga no carreiro etc... e o António Lopes Dias, arrepiado, murmurava: "este gajo! Este gajo!" E ia nesta ladainha um respeito, uma admiração, um saber do ofício de poetar que nem vos conto!
E o resto da malta? Pois o resto da malta, passada a primeira e abissal estupefacção, habituava-se, aplaudia e no dia seguinte já cantavam num café, numa república ou em qualquer outro sítio as novas coisas do Zeca. Com naturalidade! Como se sempre as tivessem ouvido. E nisto, de ouvir, decorar, cantar, havia duas criaturas espantosas: o António Mendes de Abreu e o João Nazaré (um morto e saudoso e outro vivo e igual ao que era!). Foram estas duas fadas madrinhas que, num recital fabuloso nos jardins da AAC que recordaram ao Zeca uma cantiga de que ele se esquecera: “...ouvem-se já os rumores , ouvem-se já os clamores...” etc. O Zeca, muito sério só dizia: "Ó pá isso até nem é nada mau!" Previdentemente, eu já tinha o texto escrito, “Toma lá, vê se o não perdes”.

4 Numa manhã ensolarada subia eu a rua de Santo António –desculpem-me lá mas eu prefiro o doutor da igreja mesmo franciscano e santo, à homenagem à revolta do 31 de Janeiro, erro estúpido e trágico provocado pelo voluntarismo carbonário de uns quantos republicanos de cabeça quente. - e dou de caras com o César Oliveira que vinha triunfante: Ele e o Mário Brochado Coelho tinham negociado um excelente contrato para o Zeca com uma editora do Porto (seria a Orfeu?). Se bem me lembro aquilo dava por mês uns tostões interessantes. Pela primeira vez, asseverava-me o César, o Zeca é decentemente pago.

5 Em Junho de 77, estava em Madrid com um par de amigos e militantes de uma coisa passageira que se chamou MSU (Movimento Socialista Unificado) e que mais não era do que a última tentativa de ex-militantes do MES, da LUAR e da FSP de organizarem um grupo político entre o PC e as extremas esquerdas maoístas, trotskistas e similares. Amigos espanhóis falaram-nos de um concerto onde o Zeca seria a grande estrela. Tenho ideia de que terá sido em Vallecas grande zona de concentração operária e emigrante. O Zeca entusiasmou-se com a multidão que era quase toda constituída por activistas políticos de duas boas dezenas de partidos minoritários e autonomistas. Vai daí largou, entre duas cantigas, um par de insultos ao establishment local e português onde um filho da puta rimaria com dois merda. Quando lhe fui falar, o Zé, sempre pundonoroso, perguntou-me se não teria sido excessivo. “Ó Zé deixa-te disso, pá, estes gajos não dizem duas sem um caray e um coño só para fazer de virgulas, pá!”. – “Ai, fico mais descansado!

6 Em Maio de 1983, a Delegação Regional do Norte da Secretaria de Estado da Cultura, atreve-se, no meio de um escândalo murmurado pelos corredores lisboetas, a programar José Afonso no Auditório Nacional Carlos Alberto. Foi a primeira vez que um cantor de intervenção pisou um palco nacional. Só a história do contrato com o Zé daria uma novela. Por ele, estava tudo bem, desde que lhe pagassem um cachet de 30 contos! Mas nós queríamos pagar mais, ou melhor, queríamos pagar-lhe como pagávamos a qualquer artista que vinha ao ANCA. Em resumidas contas, achávamos que deveriam ser pagas as despesas de transporte no foguete e em primeira classe, o alojamento num hotel e as refeições. Espantado, o Zé perguntava se aquilo não era um abuso. Que não dizíamos, é o que se paga a qualquer concertista que cá vem. Obtido com algum esforço o acordo com o Zeca (Olhem que eu não vos quero causar chatices! Isto assim fica caro!) fizemos as contas ao total da despesa, dividimo-la pelo número de lugares do ANCA e fixamos à justa o preço dos bilhetes. Naquele tempo, achávamos que não era preciso ganhar dinheiro. Convinha apenas não o perder. Os dois concertos foram um êxito absoluto. Salas cheias, gente sem bilhete nas coxias, enfim um delírio. O Zeca entusiasmado. Nós já cheios de projectos para os outros cantores. E um balde de água fria: um ardiloso jornalista de um jornaleco miserável conseguiu convencer o Zeca de que o tínhamos explorado. Ou pelo menos de que viera cantar “por meia dúzia de cascas de amendoins” (sic).
Imaginem-me, desvairado, a correr para Lisboa, para dizer duas fortes ao Zeca. Cartas para os jornais, enfim, o habitual. O Zeca já nem se lembrava dos amendoins. “- Ó pá eu disse isso? Não acredito! Mas desminto, queres?”
Que é que se pode fazer a um tipo destes? Convidá-lo para jantar na “Trave” com o Sérgio, o Vitorino, e o Zé Mário que só diziam: nós queremos ser tratados como o Zeca!
E foram.
Nos corredores da SEC os murmúrios indignados subiam de tom. “Aquela gente lá de cima...”

7 Os anos foram passando, o Zeca voltou ao ANCA, nunca mais ninguém falou de amendoins, lá jantávamos, falando disto e daquilo mas a doença ia minando aquele corpo frágil e gasto. Até que um dia, de Fevereiro de há vinte anos a notícia correu. Ou melhor: nesse dia cumpriu-se um antiga ameaça, vivida irremediavelmente por quem ia sabendo daquele mal tenaz que o desfazia pouco a pouco, que o matava lentamente.

8 Vinte anos depois que resta disto tudo? Muita música da melhor que se fez em Portugal. Um par de poemas dignos de figurar em qualquer antologia. A sombra vacilante de um homem generoso que se expôs a tudo. E isto bastaria para justificar o Zeca. Porque é muito, é do melhor que por aqueles anos cinquenta, sessenta, setenta e oitenta se fez.
Não é preciso dizer que o Zeca é maior do que os Beatles porque não é, nem nunca quis ser. Não é preciso dizer que o Zeca é o Bach ou o Mozart português, porque não o é nem o poderia ser. E se ouvisse alguém dizer isso, primeiro rir-se-ia, depois ficaria sufocado e finalmente talvez dissesse, a tempo e com razão, o palavrão de Vallecas em 77.

O José Afonso foi um cometa. Seminal, no sentido em que abriu portas a muitos outros com o seu exemplo, a sua determinação o seu amor pela música a sua imensa bonomia e a sua generosidade ainda maior. Fez-se musical, politica e culturalmente em Coimbra desde os bancos do D João III até à Faculdade de Letras. Bebeu da tradição popular, da Beira aos Açores, da cantiga coimbrã e de alguns ecos do Lourenço Marques onde viveu. Há naquele ouvido privilegiado muita “marrebenta”, muito, ou algum, kwela da África do Sul tudo temperado por uma solidariedade nunca desmentida com a população negra. Há também, queiram ou não, bastante surrealismo, boas leituras, as melhores diria eu, e essas foram sem dúvida adquiridas, pensadas, mastigadas numa Coimbra que, como a tantos, o atraía e repelia.
Para a minha geração, o Zeca foi um porta voz, uma voz de esperança e um apoio absoluto. Não foi beattle nem Mozart. Não sabia, não poderia, não queria sê-lo.
Não o diminuam com essas comparações.

Vai esta em memória de três justos, de três amigos do Zé Afonso e meus: César Oliveira, António Mendes de Abreu e João Amaral.
E com um abraço para alguns vivos: Mário Brochado Coelho, José Quitério, João Nazaré e Rui Pato , grande acompanhante do Zé.

Os artistas da Invicta

José Carlos Pereira, 14.02.07
Lê-se as pérolas destes senhores e não se acredita. O “Público” (agora mais light, mais limpo, com mais fotografias e menos texto, mais adaptado a um tempo em que o tempo escasseia) diz-nos que Luís Filipe Menezes terá dito por aí que José Sócrates foi o grande derrotado no referendo de Domingo, porque a sua iniciativa “foi reprovada por cerca de 80 por cento dos portugueses”. Menezes quer mostrar a todo o custo que existe e que tem ideias para o país, Gaia já é pequeno para os seus sonhos e o Porto está ali tão longe, mas a pressa é tanta que volta e meia atrapalha-se, o pé foge-lhe para o chinelo e o desacerto é total.

Num outro prisma, o mesmo jornal dizia que o notável líder da concelhia do Porto do PS, Orlando Soares Gaspar, admite uma coligação nas próximas autárquicas com o CDS-PP, no caso de Paulo Portas chegar à liderança deste partido e as mudanças se precipitarem. Gaspar está de costas voltadas para os actuais autarcas do PS e as suas preocupações estão já centradas na preparação das listas para daqui a dois anos e meio! E diz que vai exigir o cumprimento rigoroso dos estatutos, para que ninguém brinque com os seus imensos poderes.

Enfim, mais episódios lamentáveis que devem fazer rebolar a rir os senhores do poder instalados na capital. Enquanto a paródia continuar e os protagonistas políticos derem provas destas, o Norte continuará a ser um parente pobre, a definhar e a perder terreno em todos os indicadores de desenvolvimento.

O leitor (im)penitente 11

d'oliveira, 13.02.07
Um metro de estante, um

Foi o meu caríssimo confrade JCP quem, pela primeira vez, aqui chamou a atenção para a colecção “Reis de Portugal” editada pelo Círculo de Leitores. Também não admira: o JCP, aparte o defeito de ser um portista ferrenho, daqueles que vão às Antas (“A Catedral”) e põem como o sócio o filho acabadinho de nascer, tem fortes qualidades: é bem disposto (e isto meus caros é hoje em dia um bem precioso), trabalha desalmada e desinteressadamente na Assembleia Municipal da sua terra, fuma charutos gigantescos desses que ainda são enrolados nas pernas morenas e pecadoras das charuteiras cubanas (e nisto vai um tsunami de pecados os mais variados mas seguramente todos capitais) e é um bom conhecedor de História, disciplina onde se licenciou. Também é um bom garfo e um homem de espírito! Compreende-se melhor o seu entusiástico anúncio da colecção. Aquilo dizia-lhe respeito e vinha colmatar uma forte falha das edições históricas grande público em Portugal.
Ora, agora que já só falta a rainha Maria Iª convém avisar o estimado público, as senhoras e senhores da assistência, as excelentíssimas autoridades religiosas civis e militares de que estamos perante empreendimento digno, mesmo que, num ou noutro volume, se possam apontar fragilidades, discrepâncias e tudo o mais que vos vier à cabecinha mimosa. A verdade é que o portuga interessado, culto e moderno tem aqui ao seu alcance uma boa carrada de história pátria. Exactamente um metro de livros na estante. É obra: um metro de livros, medidos tant bien que mal cá pelo cronista. Já tirei a bissectriz a um par de exemplares e estou a babar-me perante a hipótese de umas férias calmas, muito mar, muito peixe, marisco q.b., umas cervejinhas para aviar esta encomenda. Do que folheei fiquei com boa impressão ainda que tenha a clara ideia de que me irei enfurecer com certas teses aqui e acolá. É bom um leitor enfurecer-se, é sinal que está vivo e não come gato por lebre. De todo o modo, leitoras excelentes, força na história dos nossos reis.

2 Ele há escritores assim, subterrâneos como certos rios no deserto. Volta e meia, dão um arzinho da sua graça, mostram-se, criando um oásis e depois mais uns quilómetros de metropolitano. São escritores, cujo nome, passa de boca em boca, de amigo em amigo, como um segredo só revelado a quem merece. Raras vezes os citam, mas a gente vai de casa em casa e descobre maravilhado e comovido, na estante o livro, os livros do autor em causa. Puxa-se por um e notam-se claras marcas de leitura.
Dantes as leitoras do estilo da avó Dora Heinzelmann (leitora de poetas parnasianos franceses e italianos) punham uma folhinha, um flor seca a marcar o trecho que as comovera. Algumas anotavam a lápis qualquer coisa, como um balão de S. João enviado para o futuro e para outros olhos e outro entendimento semelhantes. A avó fazia ainda mais: na sua letra elegante poetava à volta do trecho, umas vezes em francês outras no espanhol aprendido na Buenos Aires da sua infância. Eu, burro velho mas chorão, comovo-me com estas imperceptíveis marcas, esta herança que ela me deixou e perdoou-lhe mesmo o exacerbado romantismo com que baptizou o meu pai que, claro me pôs o mesmo nome. Tu Marcellus eris, cantava Virgílio (Eneida VI, 861-887) mas não seria este sobrinho favorito de Augusto o causante dos nossos nomes. A avó Dora acharia simplesmente que o nome era prometedor e ainda por cima italiano.
Deixemos este devaneio com a antepassada e voltemos à vaca fria: petas reincidentes, recorrentes. Falo, claro do O’Neil (Alexandre) de que agora saiu uma biografia. A autora é Maria Antónia Oliveira e a acreditar na fotografia, além de inteligente será bonita. O cavernoso Manuel Sousa Pereira já vai quase no fim da biografia e ontem confidenciou-me que estava deliciado. O MSP é bom leitor, valha a verdade, tem bom gosto, mas agora anda a surpreender-me com as leituras avulsas que vai fazendo. Óptimas todas, claro mas bem reveladoras: aliás anunciou-me meio envergonhado que começou a ler o Proust (outro Marcelo!) e “sabes uma coisa, Tio? Estou a gostar!” - Claro Manecas, claro, só um tonto é que não gostaria. Dele e de mais uns tantos, olha, o Musil para não ir mais longe, mas isso fica para outra ocasião...
Leitoras e leitores, façam um favor a vós próprios e rapem do O’Neil (ele mesmo na Assírio e Alvim) e da biografia da Oliveirinha que está bem esgalhada.

3 O novo Público. Estou um bocado embaraçado com a nova apresentação do Público. Valha a verdade que a gente demora a habituar-se, sobretudo se é um leitor desde o nº 1. Para já uma perda tremenda: o Vasco Pulido Valente não consta da lista dos comentadores. Isto é, simplesmente, um terramoto. VPV escreve um português admirável, tem vigor, substância e invulgaríssima qualidade. Eu, volta e meia, fico pior que uma barata, ao lê-lo. Porque o safado com aquele estilo insuperável e aquela inteligência cortante, é um perigo público. Mas, depois, acalmo e penso, cá para os meus botões, que bom que seria haver mais um forte quarteirão de VPV a estragar a festa da mediocridade e da bem pensância!
4 Entretanto, e já que se fala no Público, atenção à colecção que está a sair sobre a história do blues. Muita atenção mesmo que aquilo é bom até dizer chega!

Nota: a minha ex-cunhada nº1, a Zé Albarran, manda-me um mail sentido sobre a morte do Manuel João Gomes, critico de teatro e homem de cultura. Choro com ela esta morte injusta. Como aliás foi a da Luísa Neto Jorge, mulher do MJG e poeta excelente. Ora aqui está outra “subterrânea”. Apanhem-na se puderem e depois façam o favor de me agradecer esta dica. A Luísa sabia o que fazia e fazia-o muito bem. Senão vejam:
a alegria redundando nisso, um no outro, violação
das fronteiras onde poisar vivo.

(in “O Ciclópico Acto”, Paris, Galeria 111, Lisboa, 1972. Ah, ah, ah, está esgotadíssima esta edição maravilhosa que em seu tempo me custou dez brasas! Oferecia-a a mim mesmo pelos meus 48 aninhos).
Ou:
O poema ensina a cair
sobre os vários solos/...
Numa curva delgada e subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
In Os sítios sitiados, Plátano ed. Lisboa 1973

Diário Político 42

Incursões, 12.02.07
Serviço é serviço e cognac é cognac

A máxima que dá título a este postal vem direita dos meios castrenses, que é uma maneira fina de falar da tropa. Eu, que sou um paisano convicto, confesso que sempre achei que a servitude et grandeur militaires não era coisa assim tão despicienda como as “juventudes” partidárias entenderam fazer passar.
De facto, talvez por me considerar herdeiro directo dos princípios da revolução francesa, da ideia da Nação em armas, tempero o meu anti-militarismo com duas fortes colheradas de anti exército profissional. A meu ver, este, especializado, dependendo de voluntários é bem pior que o outro, o que juntava toda a malta durante um par de meses a marcar passo e a aprender outras inutilidades. Aprendia-se também a manejar uma arma, coisa que agora está reservada aos tais “voluntários”. Ora eu sempre pensei que isto de ser voluntário para “carne para canhão” trazia água no bico. Não consigo desfazer-me da ideia que os tais voluntários são gente violenta e por isso perigosa. Um exercito baseado nestes voluntários corre severos riscos de se transformar em casta repressora do civil. Coisa que parece mais fácil se os paisanos, como eu, não souberem sequer dar um tiro de pistola de alarme.
Feita esta introdução para explicar algumas idiossincrasias militares, convém dizer que a antiga tropa, altamente infectada de milicianos e de recrutas à força, averbava no seu especial léxico algumas pérolas dialectais tais como a que dá título ao post. E estoutra, maravilhosa: desenfiar-se. “Desenfiar-se” era ao fim e ao cabo um quiddam baldar-se sigilosamente, pé ante pé, como quem não quer à coisa. Não confundir com “passar à peluda” que apenas queria dizer, ser desmobilizado.
Portanto a tropa à antiga portuguesa, tudo como dantes quartel general em Abrantes: cognac é cognac e serviço é serviço queria dizer que não se devem confundir planos e muito menos misturar o prazer com o trabalho. A frase deve provir do antigo quadro de oficiais porque, o pé rapado que ia para soldado bebia –se bebia – bagaço vulgar do baratinho, vá lá uma ginginha com elas ou uma amêndoa amarga em dia de saída mais festiva. A oficialagem é que se podia dar ao luxo dos brandys Constantino, das “Carvalho, Ribeiro & Ferreira” (fortificante tónico que me foi apresentado por dois amigos em fim de comissão militar nos trópicos.) ou de uma que outra francesice caríssima ou então passada aos direitos. Aliás penso que muita messe militar tinha contrabandistas fornecedores para esses espirituosos mais internacionais.
Continuando: esta chamada da tropa antiga à colação vem apenas para tentar perceber o resultado do referendo sem ter de ler dúzia e meia de páginas dos jornais. Em poucas palavras: O sim ganhou forte e feio. Disto não restam dúvidas de qualquer espécie.
Vir dizer, como arengava um pobre diabo pediatra e parvo que os abstinentes devem ser contabilizados como votos a favor do statu quo antigo ou é burrice supina e incurável ou má fé peçonhenta. E mais perigosa. O anormal pediatra a quem uma tv qualquer concedeu um minuto para regorgitar a asneirola nem sequer se lembrou do voto referendário da Constituição de 33, onde de facto constava que que quem estivesse de acordo poderia não pôr os pés na secção de voto. Mas isso eram manhas do dr Salazar que, coitado, bem se deve arrepelar, ao ver os cretinos que lhe sucederam. Andou um homem quarenta anos a moldar um país, a tentar criar uma elite, a destroçar os oposicráticos com “uns safanões dados a tempo” e aparece agora uma azémola ajaezada de pediatria a burrificar o conceito!
Razão tinha o Joaquim Namorado, quando propunha um Código Civil com um artigo e um parágrafo únicos:
Artº Iº e único: É proibido ser burro.
§ único: fica revogada toda a legislação em contrário.

Infelizmente esta legislação breve não foi acolhida e o resultado está à vista: entram-nos em casa as parvoíces que qualquer cavalheiro sofrendo de dores de mau perdedor entende dizer.
Quem votou, votou e merece todo o respeito pelo acto praticado. Quem não votou apenas –e na melhor das hipóteses – veio dizer: estou de acordo com o que decidirem porque, ao fim e ao cabo me estou nas tintas para o assunto discutido. Ponto e parágrafo!
A segunda consequência do voto parece ser esta: o PS terá de apresentar em tempo útil um projecto de lei que ponha preto no branco, e sem astúcias parolas, este desiderato afirmado pelos portugueses. Claro que tudo isso poderia e deveria ter sido feito há muito no Parlamento mas como já tive oportunidade de dizer aquilo “deveria ser demasiada areia para a camioneta dos senhores deputados”. Pronto, não se fala mais disso e ao trabalho.
A terceira consequência que há a tirar disto é que de 98 até hoje diminuiu o número dos abstencionistas. Ou, se calhar, chegaram seis novas levas de jovens que, mais expeditos que os antepassados, acharam que era altura de nos pormos mais ou menos a par com a Europa, onde ficam a subsistir três únicos representantes do aborto igual a crime. Do aborto tal e qual está definido, com as competentes semaninhas e as condições já conhecidas. De todo o modo convém salientar que quer o sim quer o não beneficiaram deste aumento de eleitores.
A quarta consequência é esta: a Igreja foi desservida pelos seus apóstolos leigos, claramente mais papistas que o papa e, sobretudo menos prudentes que o Senhor Cardeal Patriarca. Com uma sub-consequência: boa parte dos católicos votaram sim. A secas e sem problemas de consciência. A menos que os tais noventa e tal por cento de católicos seja um mero voto piedoso sem correspondência com a realidade.
A quinta constatação é esta: o mapa do não restringe-se ao Minho e a Trás os Montes com umas bicadas no douro litoral e na Beira interior. E, ia-me esquecendo, boa parte do distrito de Aveiro. As grandes cidades votaram esmagadoramente sim e isso fez a diferença. Há um mundo rural cada vez menos visível onde a tradição, a religião, tem algum apoio. E basta!
Uma nota final: foi visível a disparidade de meios publicitários entre o sim e o não, pelo menos no que toca à publicidade pesada, grandes cartazes por todo o lado. O facto das empresas de “comunicação” que trabalharam para o não não terem levado nada pelos seus serviços não chega. Cada um daqueles outdoors custa a bagatela de quinhentos contos antigos e isso foi pago por alguém. A malta do sim ou estava muito convencida da vitória ( e também não era difícil tal convencimento, apesar de tudo isto anda...) ou estava mal de dinheiros porque não esteve à altura neste duelo.
O que permite juntar esta notinha final: o famoso período de reflexão das 24 horas sem propaganda parece perder cada vez mais importância: os cartazes aí estão imóveis mas visíveis a lembrar aos mais distraídos que a propaganda está lá nessas vinte e quatro horas abstinentes e infelizmente por mais um par de semanas como é costume.
Espera-se, com paciência mas também com alguma impaciência que o PS faça o trabalho de casa, se é que já não está feito para que daqui até à aprovação da lei não haja mais um par de pobres mulheres a passar pela vergonha do tribunal e anexos escândalos. Será pedir muito?

surpresa

Sílvia, 11.02.07
sentas sobre mim os olhos quietos,
a cara crivada de perguntas,
e na calma esperas
que eu te diga a verdade dos humanos

não tenho a nas mãos a verdade.

a verdade sobe delirante
pelos elevadores da megalópole,
pela megalomania dos loucos,
e foge de nós.

tenho nas mãos a angústia,
alguma lucidez reservada,
e agarrada na face a surpresa cotidiana
do humano: sua grandeza impensável,
sua insuportável pequenez.



silvia chueire

Estes dias que passam 48

d'oliveira, 11.02.07
763 de pressão, tempo variável

O senhor que conserta barómetros olhou-me muito sério e disse: “Sabe o que tem aqui?” – “Um barómetro –respondi-lhe. – Um barómetro mais velho do que eu, se calhar até mais do que o meu pai, se fosse vivo.” O senhor –repontou-me – tem aqui uma máquina fabulosa. Estas letras PHBN indicam uma marca fora de série. O J.A. Ribeiro Lisboa é apenas o comerciante que os importava. Nunca tinha visto um barómetro destes. Fazia-me jeito para a minha colecção.” “E para a minha - retruquei, a fechar conversa. - É uma herança. Juntamente com um samovar lindíssimo, uma fruteira arte nova e um guache de Diogo Macedo, oferecido pelo autor à minha avó Dora. Coisas que irão para os sobrinhos com a condição de não saírem da família, sabe como é?”.
O senhor dos barómetros sabia. E mostrou-me peças magníficas que, também ele, não venderia por preço nenhum.
Já restam poucos destes homens que atrás de um pequeno balcão trabalham peças delicadíssimas, inventam ferramentas (não estou a fantasiar) e amam o trabalho bem feito. – “Olhe para este astrolábio” – disse-me – tem cento e tal anos, talvez cento e cinquenta. Repare na perfeição da gravação dos décimos de grau, na beleza dos números...”
E nesta loja modesta, da rua Mousinho da Silveira, quase em frente da bolsa, respirava-se (respira-se) um gosto cidadão e civilizado pelo trabalho bem feito, pelo bom gosto. Respira-se orgulho profissional. Quase nem acreditamos que isto é o Porto melancólico e em perda de velocidade. Há aqui eco do velho espírito da cidade burguesa e pouco inclinada à autoridade de bispos ou fidalgos.

2 Senti o mesmo hoje de manhã quando fui votar. Maldisse vinte vezes o sítio para onde me mandaram, tanto mais que da mesma freguesia há aqui a duzentos metro um par de secções de voto. Só que estas são as mais recentes enquanto a velhada onde me conto foi transferida para cascos de rolha. Mas passemos: na escola secundária Maria Lamas (olha houve quem se recordasse dessa grande senhora, dessa figura tutelar da resistência e da democracia!... às dez de um dia de nevoeiro cerrado e sebastiânico havia já muitos votantes. Gente maioritariamente idosa que gosta de cumprir o seu dever cedo e depois descansadamente ir á missa ou até um café para ler o jornal.
E havia nessa centena e meia de pessoas, vestidas com algum cuidado, com o ar sério de quem se preparou para um acto solene e cidadão como é do voto popular, uma gravidade e uma solenidade que comovem o mais pintado. Estas mulheres e estes homens, quase tudo classe média baixa, trazem no olhar a expressão concentrada de quem sabe que foi chamado por um único e irrepetível momento à governação da polis. E por isso, porque sabem isso, o seu ar é sério. A cidadania sabe que esta é a festa possível da democracia e da liberdade. Mesmo que a pergunta que lhes fazem seja mal feita, quase abstrusa, elas e eles sabem. Cabe-lhes escolher e elas e eles não cedem a sua voz ao conforto da casa quente, da cama preguiçosa. São dez horas da manhã, o nevoeiro é de cortar à faca, há mesmo uma chuvisca miúda e massacrante mas elas e eles estão aqui, pacientemente nas bichas das secções, à espera da sua vez. Serão muitos? Serão poucos? Não tem importância: elas e eles estão aqui, serenos, a cumprir um dever cívico. Isto meus caros leitores e leitoras é Portugal no seu melhor. Como é também o senhor dos barómetros, atrás do seu balcão a fabricar uma ferramenta impossível para consertar um velho microscópio feito em Jena na Alemanha há mais de setenta anos. Essa ferramenta que lhe moeu a cabeça durante dias e dias até uma madrugada triunfante (“aí pelas três da manhã acordei e dei com a solução” –contou-me) vai permitir consertar uma velha peça de grande precisão e salvar um pouco, um poucochinho, do passado.

3 A Maria Manuel manda-me uma mensagem brevíssima: o Eduardo é hoje operado. Que seja depressa e bem, desejamos os de cá de casa. Que tudo isto não tenha passado de um susto, secundam a minha mãe e o meu irmão e o resto da tribo lisboeta.
Quem for religioso que reze uma ave pelo restabelecimento do Eduardo, que bem merece. Os restantes, fazemos figas como quem não quer a coisa mas, durante breves momentos, a voz sai-nos embargada pela comoção.
Força Eduardo!
Força Maria Manuel!

4 Depois de votar, fui num salto até à foz. Não que quisesse ver o mar que mais se adivinhava do se via. Fui até lá só para ouvir a ronca. A ronca do nevoeiro da minha infância descuidosa e feliz, em Buarcos, terra de peixeiras e pescadores da pesca longínqua. E por um breve instante, ao ouvir a ronca, vi, claramente visto, com estes que a terra há-de comer, um mulher antiga e grave persignar-se. Nossa Senhora da Encarnação, olha pelos nossos que andam no mar!
E por este incréu comovido à beira água! E pelo Eduardo à espera de um fígado novo! E pelos homens e mulheres que afrontaram o nevoeiro, a morrinha e o frio para votar porque essa é a tarefa dos cidadãos, na Atenas antiga ou no Porto, hoje.

Estes dias que passam 47

d'oliveira, 10.02.07
Correspondência entre dois amigos: os jornais deste fim de semana são abundantes no elogio ao Fernando Assis Pacheco que teria feito setenta anos. E pela pena de Inês Pedrosa, Jorge Silva Melo e Manuel de Freitas vem dizer o que eu sempre soube: que o Assis era um enorme poeta. Isto para mim era verdade desde o primeiro poema que lhe li na Via Latina em coimbra no meu ano de caloiro. Numa corrida pus-me em campo para o conhecer e ele, afável e generoso, lembrou-me que os nossos pais já eram amigos. Acho que também nós o fomos: amigos que só uma estúpida morte interrompeu o dialogo. Em 95 ano da tripla morte do Zé Valente, do Pedro Sá Carneiro Figueiredo e do Assis
Para esquecer as tristezas do presente aqui se dão à estampa mais duas cartas trocadas entre mcr e Assis no ano de 1994, por ocasião da operação do segundo.


À FAMÍLIA PACHECO
(MULHER, FILHAS, FILHO & CÃO
SEM FALAR NO IMPACIENTE DOENTE)



Constou que o vosso exemplar marido, estremoso pai, e afável dono teve que mudar, asinha,asinha, a canalização.

Dele esperava-se (e espera-se...) tudo, mas jamais um aneurisma. Não é doença para um cultor das belas letras e (antigo?...) olhador de mulheres bonitas. Ao que o Fernando metia para dentro esperar-se-ia uma britânica apoplexia (que teve os seus momentos de glória entre os literatos isabelinos..) ou uma aristocrática gota. Agora um sofisma em forma de aneurisma (e ainda por cima rebentado,,,) não passa pela cabeça de de qualquer leitor quanto mais de um amigo já tão antigo!

O único precedente que conheço para a operação sofrida pelo operoso jornalista, conversador impenitente e prolífico cidadão é o de Diogo Lopes Pacheco, matador da linda Inês, a quem Pedro o Cru terá mandado arrancar o coração pelas costas.

Há, porém, diferenças, e de peso! O Pacheco medievo limpou o sarampo (outra doença desaconselhável a quem já passou dos cinquenta...) à barregã do rei enquanto o mimoso Pacheco de que falamos não acerta numa perdiz a dez passos..

Sussuram-me, todavia, que, talvez, tudo isto (o sinapismo em forma de aneurisma neurasténico, as facadas no lombo luso-galego e o que mais vier...) é consequência daquele assado de andaluz à padeiro com que começa o romance do Prada

"Ai o gajo chamusca andaluzes?" -terá perguntado o senhor Deus dos Exércitos a quem se conhece o facataz pelo "cante Jondo"- . -"Entonces que lo jodan bien jodido, cortem-lhe os untos, remexam-lhe bem remexidas as vísceras nobres e demais miudezas que é para o maganão tomar juízo e não se desbocar!".

Como se verifica pelo celeste naco de prosa coloquiado que se reproduz, o criador dos poetas e dos enfermos hospitalizados é raiano, fronteiriço d'entre Melgaço e Ribadavia, terras muito dadas à produção de contrabandistas e "guardiñas"...

Mas voltemos às nossas devoções:
Convém significar -se possível com severidade- ao acamado vate, agora recauchutado, que se lembre da promessa feita, urbi et orbe, de produzir um romance sobre o avô negreiro para já não falar numa antecipadamente festejada colheita de poemas fesceninos que haveria de conhecer a glória da impressão, o rubor de escassas donzelas e o escândalo público, por estes meses mais próximos.

Dizem-me que está sentado e não prostado no leito de dor -boa posição para escrever, ou ditar (caso não queira utilizar o dedinho dactilográfico...), a versalhada licenciosa. Para isso lhe enviei, não faz ainda três meses, farta dose de cantáridas literárias sob o inocente título de "Romans Libertins"...


E agora, que a página se finda e a mão me doi, leiam-me bem cônjuge, filhos e demais clientela do Jazente (boa, esta...) aturem-no como puderem que o homem -se as informações são boas- deve estar com uma dose de mimo capaz de afogar um hipopótamo!

E Saúde (muita)

Vosso amigo Marcelo*

* Fornecedor de vinhos licorosos ao Assis e de aguardente reserva ao pide Fausto



PS
Assis, Velhão

Quem está aneurismático, pelo menos da corneta, sou eu que me esqueci desta página, toda em branco, digo em creme ou lá que raio de cor é esta! Põe-te bom, mano e depressa que o ano se afigura de boa pinta para o tinto e eu tenho em fumeiro um porradão enorme de alheiras (das verdadeiras, oh Assis Chateaubriand como o bife, das veras alheiras d' antanho com sua perdiz, sua galinha, seu coelho, seu porco -claro que sempre levaram porco e o resto...-) para já não falar em salpicões e outros mimos porcinos. O bicho que estas e outras especialidades vai dar era conhecido de uma das minhas enteadas. Foram elas quem sabiamente ajudaram a fazer de um cerdo de 15 arrobas um rosário infindável de acepipes.

Estás na lista das ofertas mais os teus editores -aproveita a ocasião para, se precisares, reforçar a dentição se ela te faltar.

Mais abraços do

Marcelo


Lisboa, 15.3.94

Doutor Subtil,

Conheço mal este papel que a minha filha Ana, a copista do Benito Prada, me confeccionou há anos; e tão-pouco o manuscrito sai a contento por influência dos vapores anestésicos, que deixam traço até no modo de a gente se pôr a mijar, quanto mais a escrever aos amigos. Razões por que peço alguma absolvição. E sigo.
Tem o Doutor Subtil toda a pertinência em falar da vingança divina: desde o princípio que eu mesmo lancei essa hipótese, certo de que o mais modesto destempero feito aos deuses é para pagar dobrado no mínimo. Não me alongo sobre tal item, mas à evidência que fui escoicinhado; resta saber se por Apolo , se por algum comparsa menor.
A marca do coice, vista aos raios X, aconselhou imediata correcção do alveitar. O qual no próprio dia e hora retalhou neste corpinho com toda a sanha, deixando-me um lanho do esterno ao coiso, que é maravilha de ver, e só não ando por aí a mostrar às pessoas porque não quero cair na crónica dos namorados tarados. Quem inventou o Latim Vulgar fottere sabia o que fazia!
Doutor, vossos cuidados são amavios, vossos conselhos ordens, vossas ofertas –em livros e derivados – reparos generosos à minha pouca educação. Tudo vo-lo agradeço, mais a promessa de uma extensão ao fumeiro que não sei como hei-de honrar, pois (ainda os deuses!) devo safar-me algo restringido no capítulo dentário. Deixemos ao futuro.
Aproveito para desejar-vos, a vós e a quem vos aqueceu no último inverno, alegria e força natural. Se olhardes bem, já os passarinhos correm de árvore em árvore fornicando velozes na posição romana: ontem, num breve passeio com minha senhora, foi o que mais vimos em Campo de Ourique. É a Primavera, caro Marcelo! Tenhamos fé.
O abraço certo deste que se identifica
Fernando Assis Pacheco, versejador, copista & fraca figura.

Nota: as referências que se fazem, andaluz chamuscado, Prada etc..., têm como alvo o romance de FAP, "Trabalhos e paixões de Benito Prada". A ler com urgência, leitoras atrevidas!

Au Bonheur des Dames 51

d'oliveira, 10.02.07
Um voto de má vontade mas um voto

Ando nisto há muitos anos para desperdiçar a ida às urnas domingo.
Ando nisto deste que “andar nisto” significava ficar apontado pelo dedo vindicativo das polícias como “desafecto ao regime”.
Ando nisto com bem menor entusiasmo do que há quarenta ou mesmo trinta anos.
Dói-me a cobardia do parlamento, dói-me a cobardia dos partidos, dói-me a cobardia dos cidadãos, mas, mesmo assim, ando nisto.
Horrorizou-me a tacanhez do debate público, as caixas de Pandora que se abriram, a acusação gratuita e malévola que foi lançada (e quase não respondida) pela direita: que a esquerda e os partidários do sim eram pura e simplesmente assassinos.
Dói-me particularmente ver que uma direita acéfala e desmemoriada não perceba que tal acusação se pode virar contra ela: ou não é verdade que com todo o seu arsenal de leis, de polícias de juízes e de prisões, bom ano mau ano, aconteceram quarenta mil abortos clandestinos neste país?
Dói-me ver uma esquerda quase envergonhada fugir ao debate como o diabo na cruz, incapaz de responder à saloíce dos cartazes do “arrepender-se toda a vida”, do pagar impostos para as malvadas abortarem etc...
Ando nisto há muito tempo para, nem que seja por preguiça legítima, deixar de ter a maçada de ir meter um voto desencantado na urna.
Ando nisto há muito tempo para agora, por raiva a um partido socialista mais amarelo do que um carro eléctrico, incapaz e frouxo, deixar de ir votar um sim tristonho e murcho.
Ando nisto há muito tempo para, com o meu silêncio, a minha preguiça, o meu desprezo por toda essa deputadoria que gasta fundilhos e saliva em S. Bento (e se leva muito a sério, todos iguais nos seus fatinhos cinzentos de mau corte, nas suas impossíveis gravatas que nunca acertam com as camisas e muito menos com as peúgas, Jesus que gosto tão pindérico, tão bairro económico do antigo regime... que gente! ) achar que isto não é comigo. É! apesar de tudo é comigo, também.
Ando nisto há tanto tempo que me não posso esquecer que são os calados desta discussão, os excluídos deste debate, os únicos interessados de facto mesmo que, como boa parte dos marchantes histéricos pela vida videirinha, não saibam exactamente o que está em jogo. Ou melhor talvez saibam que talvez não seja necessário ir à “desmanchadeira” ou meter um par de agulhas de tricot vagina acima para evitar mais uma boca, mais uma desgraça mais um sinal inominável de violência.
Ando nisto há demasiado tempo para deixar que as coisas se resolvam sem o meu miserável voto. É só um voto, quase um zero à esquerda mas é também um grito, um uivo, uma vaga ideia de que ainda estou vivo.

Não sei se as minhas companheiras de blog mo permitem mas gostaria de lhes dedicar este texto. As mulheres dizia um certo Mao Zedong, de fraca memória, são a metade do céu. E nisso acreditei sempre, desde que ando nisto...


Um voto que se quer vinculativo

José Carlos Pereira, 10.02.07
Finalmente, terminou a campanha para o referendo de domingo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Já não sobrava paciência para tanto militantismo e radicalismo, numa matéria que, a meu ver, merecia mais recato, mais ponderação, mais discrição.

aqui expressei as minhas razões para votar Sim no referendo do próximo domingo e por isso não vou voltar a esse arrazoado. Julgo, contudo, que seria bom que se registasse uma forte participação dos portugueses neste acto referendário, de modo a podermos validar com força vinculativa a opção maioritária, qualquer que ela seja.

Se os portugueses quiserem efectivamente mudar a Lei vigente sobre a interrupção voluntária da gravidez devem dar um sinal claro da sua vontade aos nossos responsáveis políticos e parlamentares.

Diário Político 41

Incursões, 06.02.07
O pior debate dos últimos anos

Começo a estar farto de ler os jornais. E isto torna-se mais grave porque não oiço rádio há anos e vejo a televisão nacional em dose mais que homeopática. Digamos que já não me lembro de olhar para a SIC e para a TVI, que só muito longinquamente é que me recordo que há o canal 1 e que não passarão de duas as meias horas que dedico semanalmente à 2.
Já sei que isto é uma falta de patriotismo estrondosa, que eu devia ser azorragado três vezes ao dia enquanto recitava padres nossos e salvé rainhas na proporção de 3 para 1. Nasci assim: anti-patriota, feio, porco e mau. Porco não, que tomo banho todos os dias, lavo a dentuça depois de cada refeição e pratico as restantes abluções obrigatórias ou facultativas sempre que necessário. Mas mau e feio não tenho dúvidas. À uma porque no meu tempo os homens queriam-se feios e com pelos no peito. A minha pilosidade é escassa mas enfim, aceita-se pelo que tive de redobrar em fealdade para poder estar bem na pele do macho lusitano, edição da 2ª guerra mundial, mais exactamente último ano do avanço alemão. Depois porque tenho este vício malsão de não tomar por certo tudo o que me vendem sobretudo se embrulhado em papel de lustro verde e vermelho. Nada tenho contra as cores da bandeira republicana mas, sem cair em excessos legitimistas, não a acho melhor do que as anteriores fossem elas quais fossem.
Portanto, e voltando à vaca fria, pouco tenho visto, lido e respigado, sobre o instante problema do aborto. Francamente aquilo para mim nem é discussão que mereça mais de dois bocejos. A questão com que a população se irá defrontar brevemente é algo que desde há muito está nos costumes europeus. E mais que está nos costumes das classes dominantes, nacionais, indígenas.
Direi mesmo que nesta discussão há dois pontos que qualificaria de vergonhosos se não fossem pura e simplesmente escandalosos.
O primeiro tem a ver com a cobardia dos partidos políticos maioritários que, esquecidos dos lugares que ocupam no Parlamento, transferiram a discussão para a praça pública, sujeitando-a a toda a espécie de truques populistas como não podia deixar de ser. O parlamento deu mais uma vez, graças ao PS e ao PSD, mostras de ser incapaz de discutir qualquer coisa que não seja o preço dos genéricos ou a compra de duas fragatas em segunda mão. Esta discussão incumbia aos pais da pátria (Deus nos livre!) a essa tropa fandanga que elegemos à molhada e de quem as mais das vezes não sabemos sequer o nome. Os ilustres par(a)lamentares baldaram-se à discussão com medo do que as “bases” lhes poderiam dizer. E vai daí, toma lá referendo. O referendo é uma instituição sem qualquer tradição que se veja no nosso sistema político se é que de sistema se pode falar. Serve para lavar as mãos e evitar berbicachos.
Uma vez um mal intencionado amigo, o José Luís Nunes, apanhou-me numa almoçarada por ele paga no “Tavares” e disparou-me: E você não gostava de ser deputado? Ia-me dando uma coisa má: então o safado convida-me para comer bem e caro e no fim está-me a cravar para deputado? Fiz das tripas coração e propuz-me pagar a minha parte da refeição desde que o convite fatal não viesse: Ó Zé Luís, por quem é? Eu? A Deputar? Antes um ataque de carraças!
O Zé, aviou mais umas sardinhas de escabeche (ainda estávamos nos entrantes) e concordou: “Não. V não. Era maldade a mais!
Mas sempre me foi dizendo que aquilo de deputar, era tiro e queda. O Parlamento era manso e não tinha uma especial obrigação patriótica para legislar a sério. Isso era com o governo. Ou com o referendo, poderia ter dito se se tivesse lembrado.
Portanto esta finta parlamentar que endossa para as massas, em nome de uma inominável democracia, certas escolhas é truque de segunda que deve ser denunciado.
A segunda questão é ainda mais canalha: a despenalização anda a ser discutida por uma gentinha que se está nas tintas. São as classes altas, “cultas”(?) e educadas quem discute algo que finalmente ocorre entre a ralé, os pobres, os ignorantes, os que desconhecem que em Badajoz há a clínica dos Arcos e na Avª da Boavista do Porto uma outra que também faz anjinhos aos milhares. O Dr Rebelo de Sousa pode dizer tudo o que lhe vier à cabeça mas se olhar para o lado, para as meninas e madames do seu meio, logo encontrará farta dose de idas discretas a essas clínicas, quando tudo o resto falhou desde a camisinha, à pílula do dia seguinte ou o dispositivo intra-uterino.
Nestas classes ( e sei do que falo porque são as minhas e dos meus) o aborto é apenas um incómodo que se paga com umas dezenas de contos, cá ou lá consoante se quer decoro e privacidade ou apenas mais uma operaçãozita.
Um cavalheiro chamado Karl dizia há cento e tal anos que a Europa era percorrida por um fantasma que entre outras maldades advogava a luta de classes, ou pior: a existência de classes. E isso significava interesses contraditórios. Como os de hoje: os ricos cagam postas de pescada mas são as pobres que vão à abortadeira. Os ricos filosofam e as pobres abortam num vão de escada. As ricas viajam para as clínicas e as pobres respondem em tribunal.
Eu não queria, juro, sequer deter-me cinco minutos nisto. Mas o “arruído” dos que chegam aos jornais, à rádio e à televisão, dos mesmos de sempre, trate-se de aborto, de corrupção ou de medalhas para pagar favores, é tal que me surpreendo a vir a terreiro pedindo em nome dos que nem sequer tem acesso a um blogue, um pouco de silêncio. Pela minha parte já disse tudo o que tinha a dizer. Boa tarde, senhoras e senhores.