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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Au Bonheur des Dames 50

d'oliveira, 06.02.07
A honra, a amizade, exemplos de vida

O sénior Heinzelmann chegou a Coimbra para frequentar a Faculdade de Medicina nos meados dos anos trinta, provavelmente em 36/37 ano em que, segundo ele, não houve caloiros por via da guerra de Espanha. Esta de não haver caloiros no nosso ano de caloiro é "calista". Nunca ninguém foi caloiro em Coimbra por razões variadas, fantasiosas e fortíssimas. O Oliveirinha, meu colega de curso trinta anos depois, afirmava convictamente que, no nosso ano, não houve caloiros porque tinha sido o ano da grande revelação. Descansem as leitores que não é do 3º segredo de Fátima que lhes falo mas tão só do aparecimento em filme inominável, do seio atrevido da Brigitte Bardot, um esplendor, Jesus, Maria, José! Que pedaço de mau caminho era a BB nesse ano soturno em que aportámos à Coimbra de lavados ares! E logo nós, caloiros (caloiros não, primeiranistas!...) bisonhos a contas com o frio cortante dos invernos conimbricenses, as trupes, a lonjura de casa (nanja para mim que, vindo de um campo concentração colegial, aquilo parecia o paraíso em mais feio mas mais livre) e os apertos financeiros que eram moléstia juvenil mais forte que o acne.
Não sei se as leitorinhas gentis e perversas (ai o que eu gosto dessa perversidade, agora que caminho para a idade canónica!) passaram por estes apuros monetários quando andaram pelas universidades. Naquele tempo podia haver muito rock’n’roll, muito Domenico Modugno (“nell bli dipinto di blu”), muita balada coimbrã, mas o carcanhol (o taco, o pilim, o cacau, enfim o que lhe queiram chamar) era escasso. Mais escasso que a passagem do cometa de Haley e tão etéreo como ele. As famílias davam pouco e de má vontade, e a rapaziada suava forte e feio para chegar ao fim do mês (ao fim do mês? Ao fim da quinzena e já era bom).
Bem, depois de me ter perdido pelos ínvios caminhos da agonia financeira, eis-me de volta ao Heinzelmann sénior recém-chegado a Coimbra nos idos de 36/37.
Filho e neto de gente do vinho do Porto, conservador q.b., amante do desporto e da cantilena coimbrã, Heinzelmann sénior lá cumpriu o cursus honorum coimbrão com algum aprumo. Namoros, os possíveis, muito andebol, muito fado à noite, às meninas e aos gatos, uma breve passagem pela república “Penúria Constante” e um largo leque de amigos que incluíam alguns porto-riquenhos escapados da Espanha em plena guerra civil. E muita liberdade, que ele também passara pelo colégio Almeida Garrett, ali à praça Coronel Pacheco. Os tempos eram agitados, uma geração de jovens rebeldes assentava arraiais no neo-realismo, nos amanhãs que cantam, na aliança intelectuais-proletários e na oposição a Salazar. Heinzelmann sénior passou por tudo isso incólume. Vinha de meios conservadores, gastava a sua energia no desporto, nas ceatas com amigos e no gargantear faduncho coimbrão pelas claras noites da dos lavados ares.
Formou-se com uma nota suficientemente decente para poder ser convidado para assistente de um conhecido professor da Faculdade de Medicina e um dos pilares mais activos da nova ordem salazarista. Um convite destes, para quem acaba de se formar, quer casar e ser independente, era o paraíso. O convite porém vinha com uma condição sine qua non.
O impetrante havia de cessar relações, de resto não especialmente calorosas, com um companheiro de casa, tido por oposicrático, reviralhista e comunista (GVB dão-se só as iniciais do candidato a preso). Heinzelmann sénior (um conservadorão na expressão bem humorada de Joaquim Namorado que foi quem me contou esta historieta pela primeira vez) espantou-se com o pedido. GBV não passava de um colega ligeiramente mais novo, vivendo na mesma casa, com quem de vez em quando jogava uma bilharada, comia uma sardinhada na época dela, ou escorripichava um copinho de amêndoa amarga depois de alguma serenata dificultosa. A vulgata coimbrã: companheiros de casa, vagos amigos, nada mais do que isso. Cortar relações com um fulano assim parecia por um lado extraordinário por outro ridículo. Heinzelmann sénior desejoso de preencher o lugar de assistente do “grande professor” mas também de saber a razão de tanta sanha, pediu explicações. Que lhe foram dadas. O GVB é comunista!
Heinzelmann sénior ficou varado. À uma porque nunca percebera essa evidência. Depois porque era a primeira vez que se sabia colega de uma tal aventesma vermelhuça e comedora de criancinhas cruas. Finalmente porque, para ele desportista e cantor, coimbrinha dos quatro costados (Viva a Académica, efe-erre-á etc..) aquilo parecia-lhe contrário aos costumes académicos e à ruidosa e alegre solidariedade da Academia.
Foi para casa matutar. A prebenda assistencial daria para aguentar os primeiros tempos de casado, algum filho, estabelecer nome, criar freguesia, fazer a especialidade. Cortar relações com GVB, as poucas relações episódicas e meramente circunstanciais, poderia não ser coisa grave. Terá perdido o jantar (e logo ele pessoa de forte apetite!) e a noite, varando-a a pensar na vida, no mundo e no futuro.
Conhecendo, como conheci, Heinzelmann sénior e a sua pouca inclinação para a metafísica, avalio bem o que terá sido essa noite de Walpurgis.
De todo o modo, a verdade é que pela manhã, barba feita e vestido com o melhor fatinho, Heinzelmann sénior apresentou-se ao ilustre, grande e magnânimo professor, que o recebeu com a bonomia habitual.
Foi curta a entrevista. Heinzelmann comunicou pesaroso que não podia aceitar o convite dada a condição infamante com que vinha envolvido. O Grande Mestre bem lhe terá dito (Joaquim Namorado, sicut) “mas ó homem de deus V. nem sequer é grande amigo dele!”.
É verdade, respondeu Heizelmann sénior, mas sou meu amigo e daquilo que diariamente vejo ao espelho e isso me basta para não me atrever a ver-me de outra maneira”.
E assim se cumpriram os fados: Heinzelmann desterrou-se para uma pequena cidade costeira e, a pulso, começou a sua vida de João Semana. GBV curiosamente acabou por ir para a mesma cidade e com mais um par de médicos lá se foram encontrando aqui e ali até que a morte os juntou a todos sob a areia volátil que recobre a memória do mar e dos filhos.
Que trazem esta pequeníssima historieta de Heinzelmann como brasão familiar agora passada a croniqueta.
Vai esta em memória de RS, FT, GVB e MHCR médicos e amigos. E para os filhos deles. E para os filhos dos filhos...


Nota: GBV só soube destes acontecidos vinte e tal anos depois. Entretanto, tinha, como se deve, sido preso um par de vezes. Quis pôr à filha o nome de Natália mas não lho permitiram por ser muito russo. A rapariga acabou por ficar Olga!

Au Bonheur des Dames 49

d'oliveira, 03.02.07

Iniciação ao bridge
Já por aqui me lamuriei da crise que grassa entre as civilizadas criaturas que se dão ao honesto prazer do brigde, jogo de cartas assaz interessante que tem honras militares (já lá iremos) civis e revolucionárias (de que também se falará). De facto, ando muito falho de parceiros tanto mais que já me não apetece frequentar o bridge de competição, coisa para rapazes mais novos e mais dispostos a estudar do que eu.
Comecemos pelo óbvio: o mundo divide-se em duas categorias: os que gostam de jogar cartas e os que não. Não vale a pena dizer: bem eu não sei, nunca joguei, talvez se me ensinarem... Nada disso. As cartas é coisa que se ganha ou perde entre a meninice e a adolescência. Claro que se começa pelo princípio, como muito bem se ensinava, na nunca suficientemente celebrada Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra: o doutor José Carlos Moreira, ou outro por ele, dizia que o direito romano tinha começado por não existir. Como as cartas, tal e qual.
As criaturas pequenas começam por aprender a bisca lambida, o burro, o burro em pé, o diabrete, o bom dia senhorita, os reis e rainhas. Depois passam aos primeiros trabalhos práticos: a sueca. Jogo de parceiros, de gestos, de sinalefas, enfim o princípio da malandrice. A partir de um certo momento há sempre alguém que propõe começarem a jogar o king que é uma coisa que não é carne nem peixe. Conta-se que um rei inglês (Jorge III ou IV) burro que nem um portão de quinta adorava jogar mas que não atinava com o bridge (aliás com o whist, um antepassado) pelo que se facilidade em facilidade lá arranjaram uma coisa que tinha um bocadinho de tudo e, sobretudo, não era a parceiros: o king. O rei que ainda por cima era parvo não percebeu que sem um parceiro a ajudar a coisa ainda era pior mas parece que praticou durante longo tempo o dito cujo jogo baptizado em sua honra. Quando a adolescência vai alta entra-se na batota. Na jogatina a dinheiro: lerpa, sete e meio, montinho, vinte e um real (black jack), burro americano e póquer.
A partir desta idade, os caminhos divergem. A maioria dos jogadores de cartas ficam pelos jogos de azar ou pela sueca. Um grupo relativamente pequeno ingressa nos altos estudos: bridge e póquer. A malta do póquer é maioritária, claro. Os do bridge, raras vezes saem disso mas quando saem dão uma mãozinha no póquer.
Portanto um jogo de parceiros. Jogo em que há um leilão para se determinar o naipe que vai ser jogado, e uma fase de carteio. Não vou ensinar mais nada porque não é para isso que aqui venho. Basta pois dizer que o bridge, por razões que me escapam, tornou-se um jogo razoavelmente popular em todo o mundo excepto em Portugal onde é considerado de elite.
Eu aprendi a jogar vendo o meu pai e os amigos. Como mirone. O mirone diz um provérbio, está calado e dá tabaco. No meu caso, sentava-me caladinho e encolhido ao lado da paternidade, não abria a boca e ia aos recados. Vai dizer ao bar para nos trazerem mais uma rodada. Vai buscar um maço de cigarros. De vez em quando findo o jogo perguntava a razão de ser de uma jogada e havia sempre um parceiro generoso que a explicava.
O que nunca entendi foi o facto do meu pai, excelente criatura aliás, fazer o grande número do incendiário. Eu explico. O pater-familias era um fumador convicto. Sentava-se à mesa de jogo, punha o cigarro ao canto da boca, dava cartas. Depois de tirar uma fumaça punha o cigarro no cinzeiro da esquerda, abria as suas cartas para as ordenar e zás rapava de um cigarro que acendia. Os três parceiros davam-se cotoveladas. Entretanto, umas vez arrumadas as cartas por naipe e por valor, o pai punha o cigarro no cinzeiro que mão solícita e mal intencionada lhe estendia. Mais uns momentos e pimba, terceiro cigarro na rampa de lançamento, isqueiro e fumaça forte. Nesse momento já tinha três cigarros no activo. Dava conta da distracção e tentava que ninguém reparasse fumando ora um ora outro ou o terceiro. Os parceiros ou seja o parceiro e o par adversário estrepolinhavam de pura alegria silenciosa. Eu torcia-me todo, não por solidariedade com o autor dos meus dias mas feito com os maus. Um pagode.
Convém talvez acrescentar que os meus esforços e o meu silêncio eram premiados pelos outros parceiros que me pagavam coca-colas (isto passava-se em Lourenço Marques, claro) canada-drys e outras mixórdias como prémio à minha falta de carácter.
Entre esses parceiros, havia um que nunca esquecerei quanto mais não seja porque era o padre mais porreiro ( o termo exacto é esse: porreiro) que conheci. O padre Cruz. O capitão capelão Cruz. Ou o “reverendo”, o “padre nosso”, e mais uns quantos nomes que os parceiros lhe iam arranjando. Um capelão militar das duas uma: Ou é uma criatura detestável e cacarejante ou um tipo que a sabe toda e que, conhecendo como ninguém os ínvios caminhos do Senhor, aguenta tudo, come mais do que o sargento da manutenção militar, bebe mais do que um major de engenharia (ai não sabiam? Eu que frequentei a família militar durante esses anos moçambicanos - o meu pai era médico e na altura era o capitão médico que fora reorganizar os serviços de saúde militares na colónia. O bridge abria ás cinco em ponto da tarde – como no poema de Lorca! – e fechava noite mais que cerrada.). Foi por isso que descobri que os oficiais do corpo de engenheiros eram sem qualquer espécie de dúvidas os maiores beberrões de qualquer guarnição. Pior: bebiam várias espécies de álcool em proporções diversas, com excepção de um tenente coronel de engenharia que mudava as bebidas consoante a hora. Se bem me lembro só entrava no whisky, às cinco da tarde, hora dizia-me ele do five o’clock tea. Às sete em ponto começava a época do martini (com azeitona!) que se prolongava até à sopa. Ou melhor em vez da sopa. “A sopa, dizia-me ele, faz-me azia!”. O resto do jantar era passado a vinho branco do Reno (“muito digestivo” sic ibid.). Depois do jantar, o brioso militar passava a um tête-à-tête com uma garrafa de fine Napoléon que lhe servia de calmante. Uma garrafa inteira entenda-se. E cheia. Ou melhor cheia até ele a abandonar vazia e imprestável. Hora em que, sempre segundo o seu estrito código de conduta, recolhia a quartéis!
E a cerveja? Esta pergunta, pelo que tem de caviloso, deve ter vindo do meu amigo Carteiro que anda fugido desta casa há demasiado tempo. Todavia responde-se. A cerveja era uma bebida franca usada só de manhã e excepcionalmente até ás cinco da tarde. A partir daí serve o calendário acima anunciado.
Tudo isto vinha a propósito das virtudes militares necessárias para se desempenhar o espinhoso cargo de capelão militar. O Capitão capelão Cruz era de facto uma excelente pessoa, por quem tenho enorme ternura e de que me recordo com saudade. Adorava jogar bridge e por altura da Quaresma oferecia ao céu um sacrifício digno de um rei: parava de frequentar o pano verde durante os dramáticos quarenta dias. A gente via-o passar de largo pelo clube militar sem se chegar sequer ao pátio redondo para onde dava a sala de jogo.
Os malandrins que com ele jogavam, ou seja todos, com a ajuda pressurosa do meu irmão e minha, passavam a vida a convidá-lo “Padre não quer dar-nos a bênção à sala de jogo?”, “Clérigo, andas fugido?”. Ou a pior de todas: “Padre Cruz não me diga que não joga por estarmos na Quaresma?”.
O pobre Capelão sofria horrores às mãos dos amigos. Não queria mentir mas não se atrevia a confessar que aquele era o sacrifício que oferecia ao patrão que jurara servir.
No sábado de aleluia, a coisa atingia o auge da crueldade. Nesse dia, aviada a missinha da manhã bem cedo era o ver o Padre Cruz fagueiro, sorridente, olhos a brilhar de excitação a aproximar-se do desalmado grupo de bridgeurs que com ar falsamente desenvolto começavam a inventar pretextos extraordinários para atrasar a sessão de jogatina. Que ainda era cedo, que queriam ir à praia, que tinham de levar os miúdos não sei bem onde, que estava calor(!!! Esta era infame!) que isto e que aquilo. O pobre capelão mortificado por quarenta dias de abstinência passava do vermelho ao verde e daí ao cinzento e daí à faísca. Mas vocês estão-me a gozar? E a coisa terminava antes que lhe desse um fanico que o Padre Cruz era de compleição robusta e passível de um enfarte. E a vida voltava ao seu trâmite habitual entre os cigarros semi-fumados do meu pai, as explosões do Padre Cruz e as piadas maliciosas dos outros parceiros, a minha dócil quietude só quebrada pelos recados que mandavam fazer. Até que o dia chegou em que faltando um quarto, os parceiros viraram-se para o meu pai e perguntaram “Ó médico achas que o miúdo pode dar uma mãozinha enquanto não chega mais ninguém?” A paternidade puxou doutro cigarro, do isqueiro, tirou uma fumaça que consumiu quase meio “Gazela” (era a marca dele nessa altura) e disse-me: “Aguentas-te?” Achei que sim! Então senta-te em frente do Clérigo, que para ti é, e será sempre, Senhor Padre Cruz e não me envergonhes!
E foi o que fiz.

Morreu há dias o coronel Mário Vasco Oliveira. Não jogava bridge. Era só mirone. Foi juiz militar e nesse cargo era de um cuidado e de uma honradez infinitos. Depois começou a estudar história militar e também aí surpreendia o seu brio e bom senso. Era o último de uma série de amigos de meu pai que foi quem partiu em primeiro lugar. Provaram-me mesmo antes do 25 de Abril que podia haver militares de carreira sérios, dignos e honrados. Mesmo que não jogassem bridge.

Marcelo, o aborto e a mulher

O meu olhar, 03.02.07
Marcelo Rebelo de Sousa é um homem hábil na palavra. Pena é que use essa habilidade para mascarar a realidade, para embrulhar as suas razões com palavras subtis e enganosas. A sua mensagem de apelo ao voto no Não é, para além de um poço de contradições, um imenso desrespeito pelas mulheres.

Refere ele que a pergunta do referendo é mentirosa já que, apesar de perguntar se concordamos com a despenalização, o que quer significar é liberalização. Se fosse despenalização ele, Marcelo Rebelo de Sousa, concordava, fosse até às 10, 12 ou 18 semanas (!), agora liberalização, não.

Este argumento que os defensores do não estão a desencantar é um paradoxo. Ou seja, o refendo é para despenalizar, mas eles votam não, mas querem despenalizar. É os chamados dois em um, mas que no caso é nenhum. Aliás, veja-se o que aconteceu após o último referendo relativamente à despenalização: nada. É o que nos espera se o Não voltar a ganhar.

Por outro lado MRS defende que se trata de liberalização porque depende da livre escolha da mulher. E, segundo ele, porque decide a mulher um aborto?
“Porque sim”
“Sem nenhuma razão justificativa”
“Por um incómodo momentâneo”
“Por uma depressão ligeira”
“Por um estado de alma ligeiro”

Repare-se que nem sequer é um incómodo constante, ou uma depressão pesada, ou um estado de alma carregado. Não, é tudo ligeiro. Como certamente é ligeira a imagem que este homem tem das mulheres.

Como é possível pensar que uma mulher possa tomar uma decisão destas com ligeireza? E, mesmo considerando que há pessoas para tudo, dê-se, pelo menos, o benefício da dúvida às milhares de mulheres que abortam clandestinamente por ano neste país, relativamente às razões que as leva a tomar essa decisão tão dolorosa.

De acordo com um estudo efectuado recentemente sobre o Aborto em Portugal para a Associação para o Planeamento da Família, onde foram entrevistadas 2000 mulheres dos 18 aos 49 anos, verificou-se que:

14,5 % dessas mulheres fez interrupção voluntária da gravidez;
38,8% tinha menos de 20 anos;
A grande maioria o fez apenas uma vez ( 83%);
73% fizeram-no até às 10 semanas;
21% dessas mulheres engravidou por uma falha do método contraceptivo;
46,1% não estava a usar nenhum método contraceptivo;
70,2% não recebeu nenhum conselho sobre contracepção após o aborto;
64,5 % não teve nenhum acompanhamento médico após o aborto;
20% teve complicações pós aborto;
85% realizou o aborto em Portugal.
43,8% fez o aconselhamento para a decisão com o marido/companheiro e 17,2% com familiares.

Este é o quadro da clandestinidade. Este é o quadro das decisões “ligeiras”. Este é o quadro que se manterá se a lei não mudar. Com a manutenção da lei actual, quem está desamparada nessa decisão fica ainda mais desamparada porque a porta que lhe é aberta é a da clandestinidade, sem qualquer tipo de apoio ou enquadramento.

Vou votar SIM no referendo porque considero que não temos o direito de criminalizar nem tão pouco de julgar e porque considero que é tirando o problema da clandestinidade que melhor o podemos conhecer e intervir adequadamente. Votar Sim é ainda um acto de tolerância.

Quanto ao MRS, deixemo-lo com as aligeiradas e insultuosas reflexões que faz acerca das mulheres. Isto para não lhe perguntar sobre o seu próprio processo de tomada de decisão. Pela amostra, deve ser bem mais aligeirado…

Au Bonheur des Dames 48

d'oliveira, 01.02.07
Efeméride! Sorrindo entre lágrimas!
Setenta anos! O Assis faria hoje setenta anos! “ai, rapaz, como o tempo passa!” (obrigadinho O Neil por me permitires esta evocação sem ter ar merdoso de tópico!). Para celebrar a efeméride – e já que não posso estar hoje com o Manel (Valente) o João (Rodrigues) as a pachecal família (aposto que estão lá todos, bebés incluídos e cão!) na Casa Fernando Pessoa, por via dum resfriado cabrãozinho que parece que vai mas não vai, desabotoo dos meus “arquivos implacáveis” (ora aqui está uma citação de que o Fernando havia de gostar. Haverá leitor capaz?) uma carta do poeta e respectiva resposta. Decerto que alguma leitora mais arguta virá dizer que já leu parte da história no falecido “O jornal” (secção Periscópio) mas sempre lhe repontarei que não leu a minha parte mesmo que triste e mesquinha. Ora toma lá que já almoçaste!

1. carta circular de FAP

Lisboa, angustioso Fevereiro de 1985
Caro Fulano
Você acaba de ser escolhido sem computador, por simples palpite, como um dos 108 mais que prováveis beneméritos para o repatriamento do estudante brasileiro Paulo Ricardo Ribeiro, adiante designado PRR. A história de PRR é tão melancólica que mereceria dois sonetos de Soares de Passos. Ei-la:
1 em data infausta de 1984 viajou de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, para Lisboa, destinado a um curso de Comunicação social na Universidade Nova. Esse erro custou-lhe toda a massa que tinha! 2 Aqui chegado, constataria que o dito curso estava a milhares de milhas marítimas do seu desiderato, pelo que, vendo entretanto uns míseros e poucos escudos desaparecerem por evaporação, decidiu partir de regresso à bem amada (Pátria). 3 instado o Consulado do Brasil a ajudar na operação, baldou-se e 4 o mesmo fariam a Varig (...) o telerromance “Chuva na Areia” e o ayatollah Khomeiny (que ofereceu mesmo porrada e água a jarro ao impetrante).
Resta quiçá pedir 1000$ per capita a 108 ricos homens, infanções e similares (a passagem custa 108.000$ ...), gente em cujas mãos bentas jaz a solução deste probleminha. Caso contrario PRR regressará a nado!
No momento presente PRR aguenta à base de comidas suaves, tendo inclusivamente mastigado a agenda dos telefones, que porém lhe deixou um sabor – citamos – a couve lombarda.
O mote é: seja cristão, não perca a ocasião!
Contribuições (mil!) para.... cheque, please, dentro de uma folhinha de papel , because of tentações.
Tá?
Trata das relações públicas e esportula o seu sob a forma de 108 selos, o infinitamente grato
Fernando Assis Pacheco

2. mcr esportula e responde

Porto, dadivoso mês de Fevereiro de 1985
A Dom Fernando Assis Pacheco, escrivam da Casa da Índia, em Lisboa
Não Vos sabia, Senhor, mesário da Casa da Suplicaçam, prebenda bem pouco pecuniosa pelo que entendo de Vossas boas novas ora mesmo chegadas a meus paços de S. Eugénio de Castro.
Porque é matéria de melindre e urgência, aqui Vos mando ordem de pagamento sobre meus abastados onzeneiros que nessa praça de Lisboa têm valia e aceitaçam. Mil morabitinos, em tempo de quebra de moeda, pouco é para quem, como este Vosso criado e admirador, pretende ganhar o paraíso e a excelente companhia de Santos, Apóstolos e demais Doutores da Igreja.
Menos é ainda se tivermos em linha de conta que se trata de enviar para a selva natal um indígena das Terras de Santa Cruz que nosso parente Pedro Alvares descobriu para El-rei.
Temo-me porém que os bons ensinamentos que nesta terra cristianíssima esse Paulo recebeu se percam em terras de grandíssimo pecado como me dizem ser as dos antípodas para onde ele seguirá se os restantes cavaleiros e demais ricos homens abrirem generosamente a bolsa. De todo o modo eis-me gostosamente dador pedindo em troca que uma vez chegado à Capitania do Rio de Janeiro, vá o impetrante de jornada aos santuários de Ipanema, Leblon e Barra e que nesses lugares louve os seus benfeitores contando sua gesta a todas as donzelas que vir, demonstrando o seu carinho e gratidão por nós, impondo-lhes as suas (dele) mãos como se de nossos membros se tratasse.
Vai a ordem de pagamento dirigida a Vós, porquanto a nós, fidalgos da Ribeira de Lima é imposto o anonimato em importâncias inferiores a cinco mil morabitinos.
Aceitai meus respeitos e não olvideis que esta é a época da lampreia nesta invicta e sempre leal cidade para a qual vos convida o vosso sempre mcr

3. FAP na crónica já citada espantava-se de ter recebido resposta positiva ao seu pedido de mais de 75% dos contactados entre amigos, conhecidos, desconhecidos que ele estimava e etc... Há tipos assim: a mim o que me espanta foi que uma minoria não mandasse o cacau. Às tantas esqueceram-se, ou as cartas foram dar a sítios errados, ou se perderam as respostas. PRR chegou são e salvo à pátria e para oitenta mânfios como eu ficou uma bonita história para contar, vinte e dois anos depois.

O Fernando morreu em finais de Novembro de 95, com 58 anos. (Já lhe levo sete de vantagem) num ano que começou com a morte do Pedro Sá Carneiro Figueiredo em Janeiro e meou com a do Zé Valente em Agosto. Há anos assim: desastrosos! Vai esta croniqueta em memória deles três. Fazem-me uma falta do caraças!

Pelo Sim

José Carlos Pereira, 01.02.07
No próximo dia 11 de Fevereiro votarei Sim à pergunta que é colocada no referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas. Voto Sim, tal como fiz no referendo de 1998, porque entendo que essa é a melhor resposta para o problema humano e social do aborto em Portugal. Voto Sim, mas confesso a minha dificuldade em compreender os excessos de campanhas e manifestos sobre a matéria em apreço. A moldura penal da interrupção voluntária da gravidez sujeita a bandeiras, arruadas e manifestações? Francamente, não me vejo a participar em eventos desses. A reflexão e a tolerância devem predominar sobre as excitações e os radicalismos.

Julgo que ninguém de bom senso defende o aborto e, portanto, não é a apologia do aborto ou a sua liberalização que estão em jogo. O que se pretende com a aprovação da pergunta submetida a referendo é deixar de classificar como criminosa, despenalizando-a, a mulher que, por sua opção, interrompe a gravidez num estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Votar Sim é contribuir para mudar a lei actualmente em vigor, que não foi suficiente para limitar o número de abortos clandestinos, praticados em condições miseráveis e humilhantes, sobretudo nos meios mais desfavorecidos. Votar Sim é também privilegiar a maternidade consciente, desejada e estruturada. É esse o sentido do meu voto. Um voto que também exige ao Estado o reforço dos mecanismos de informação e planeamento familiar.

Confesso que a barreira das dez semanas encerra em si mesma algumas incertezas. Tempo a mais? A menos? A mulher que interrompe a gravidez às dez semanas e um dia já comete um crime? Aqui, são os limites técnicos da lei a impor um limite temporal. Os próprios médicos dividem-se nesta questão, conforme a respectiva especialidade. Os geneticistas e os cardiologistas têm um entendimento que os faz enfatizar a existência de vida logo nas primeiras semanas, enquanto os neurologistas entendem que não faz sentido falar num ser humano antes das dez semanas, uma vez que ainda não existe sistema nervoso central ou cérebro.

No entanto, o referendo do próximo dia 11 não foi convocado para julgar princípios morais e/ou filosóficos. Do que se trata é, tão só, de viabilizar uma alteração ao código penal no sentido de despenalizar o aborto nas primeiras dez semanas de gestação. Como bem disse Vital Moreira na RTP, algum de nós é capaz de acusar como criminosa uma vizinha, uma amiga, uma familiar que decide interromper a sua gravidez? Adaptemos então o código penal ao consenso moral que já hoje se faz sentir na nossa sociedade.

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