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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Estes dias que passam 58

d'oliveira, 30.04.07

Pessimista, eu?

Isto não era para ser assim, mas Deus põe e a televisão dispõe. Eu ia debruçar-me sobre dois ou três casos que agitam a vida nacional mas, de repente, o canal Arte sai-se com um documentário impressionante sobre o saque levado a cabo pelos nazis na Europa ocupada. Parece que Hitler queria homenagear Linz, a sua cidade natal, com um belo museu todo recheado de obras roubadas aqui e ali, curiosa a moral deste vago pintor de tabuletas, isto sem desprimor aos profissionais do ramo que não têm culpa que um borra botas que fez uma guerra inteira sem conseguir passar de cabo, dê mau nome à classe. Portanto, pintores da construção civil, caiadores de casas alentejanas (as únicas que todos os anos são caiadas e de quando em quando mais do que uma vez) pintores de arte & similares (mais estes do que aqueles) e restante público que se diverte com um guache ou aguarela domingueira, isto não é contra vocês mas apenas contra a gandulagem que saqueia museus, galerias à força tout court ou à força de dinheiro.
Íamos que Hitler & comparsas entenderam cevar-se nas colecções públicas e privadas dos países que conquistavam. E das peças de que não gostavam, vendiam algumas e queimavam as restantes (no Museu do Jeu de Paume, gigantescas fogueiras consumiram, Picassos, Dalis, Miros para já não falar na célebre “arte degenerada”). Goering para não ir mais longe comprava com o dinheiro da Luftwaffe os quadros que lhe caíam no goto. Não que eu o censure, para quê gastar os maravedis próprios quando há dinheiro público a pedir para ser arejado?
Nem sei porquê, mas esta história faz-me lembrar aquele líder insular que. em apanhando uma eleição a alcance de tiro, pimba!, desata a inaugurar coisas como se depois dele se esperasse o dilúvio. Também eu inauguraria um porradão de coisas se o cacau fosse alheio. Ao lado deste pequeno idi amin (já sei que preferiam bokassa mas ao que sei já foi usado e eu só plagio os grandes, nunca a equipa da casa, equipa de segunda divisão, convenhamos, pouco entusiasmante, mas esse o nosso triste fado) até parece um gesto de sábia economia o daquele presidente camarário que paga aos seus subordinados ordenados dignos de um marajá dos pequenos. Vivemos uma época de generosidade à custa dos dinheiros públicos que, decerto, ficará para a história. Então não é que, esta gentinha que desgoverna o Porto, está já disposta a abrir mão da negregada linha de metro da Boavista? Isto, depois de fazerem com o dinheiro do supracitado metro um par de obras de “requalificação” da Avenida da Boavista. Agora que o metro já não se passeará por aqui como é que se restitui a massa gasta? Ou, melhor, quem vai pagar? Melhor ainda, iremos nós, mais uma vez, pagar e não bufar? É claro que a fantasmática linha de metro Matosinhos sul- Casa da Música, não é nada perto da linha de “alta velocidade” Lisboa-Porto (de que agora já corre, à boca cheia, que nunca será rentável) ou da outra, ainda mais pindérica e espalhafatosa, Porto-Vigo. Isto de gastar o dinheiro dos contribuintes com esta alegre inconsciência não é, pois, fenómeno insular ou portuense, mas nacional. Até parece que, a cada cinco anos, há nos responsáveis um irreprimível orgasmo gastador. Devem dizer-se uns para os outros, ora vamos lá criar mais um elefante branco. Este proboscídeo albino não saiu da imaginação de Salgari, autor que muito me apraz e que, há dias, foi apontado em letras garrafais como “politicamente correcto” não sei bem porquê, li o artigo todo e nada vi a respeito disto. Às tantas foi o editor, o copy-desk ou lá como agora se chama o “inteligente” da redacção, quem entendeu meter essa bucha para despertar os leitores do letargo que o “Público” agora se encarrega de nos provocar. Este novo “público” não cessa de me surpreender: ainda hoje se comentava o desastroso francês de um colaborador da área musical que inventou para “ombre” o significado de “ombro”. Dava jeito, lá isso dava, mas os franceses são uns macacões e usam ombre para significar sombra, uma chatice para os nossos intelectuais e para estes críticos musicais. No exacto dia em que o provedor dos leitores puxava suavemente a orelhinha carnuda e felpuda do citado cavalheiro, ele voltava à carga com os mesmos erros, mormente “ne me quittes pas” onde o esse do verbo é excessivo e pode mesmo ofender o espírito de Brel para já não falar na canelada na gramática. Ora aí está um sério candidato à gestão pública de comboios metros aeroportos und so weiter.
Eu nem sequer me comovo com estas tretas politiqueiras que tingem de roxo o país, como se estivéssemos condenados a uma Quaresma infinita. Já vi tantas que nem sequer o drama patusco da Câmara de Lisboa me comove. Aquilo é a coisa mais parecida com um jazigo que conheço. Um jazigo desses que às vezes povoam os cemitérios, abandonados de vivos e provavelmente sem poder recorrer aos mortos que guardam. Noutro tempo ainda se poderia esperar um fantasma ou um sinal enviado directamente do paraíso mas agora parece que inferno e paraíso não são sítios mas apenas sensações. Já tínhamos perdido o limbo e agora, sem inferno nem paraíso, ficamos condenados ao desenxabido purgatório que não sei porquê sempre pareceu ser o local onde se tomam purgantes.
E, por acaso, ressalvadas as semelhanças com as canalhices perpetradas pelos fasci di combattimento, às vezes apetecia mandar uma garrafa de óleo de rícino a todos esses figurões que nos malgovernam. O pior era se gostavam, esta gente é insaciável e não larga a gamela nem morta.
Hoje o meu amigo MSP veio até cá a casa dar uma ajuda de carácter técnico e exprobou-me o pessimismo do texto “sixty five” (au bonheur...64). É que às vezes ser português cansa. E muito.


Na ilustração: políptico de Gand, também conhecido por “cordeiro místico” de Van Eyck. Foi uma das obras de arte roubadas pelos nazis.

PS: Alguém conseguirá explicar-me o desaparecimento da fotografia de Rostropovitch que ilustrava o texto imediatamente abaixo deste (estes dias... 62)?

Estes dias que passam 57

d'oliveira, 27.04.07



É difícil destrinçar entre o homem generoso e corajoso e o artista insigne que marcou compositores tão importantes quanto Prokofiev, Bernstein ou Chostakovitch.
É difícil esquecer o artista laureado que, por defender os direitos humanos na URSS, se vê obrigado a emigrar e é destituído da cidadania soviética.
Ouvi-lo era um milagre repetido graças aos novos processos de gravação. Até nisso fomos abençoados nesse terrível século XX que viu alguns dos mais livres serem perseguidos por defender o mais simples direito, o de existir.
Num dia que agora parece longínquo, Mistilav Rostropovitch pegou no violoncelo e tocou Bach junto a um muro que ruía em Berlin.
E essa música poderosa e fluente pareceu a todos quantos o vimos uma torrente purificadora de boa dose dos nossos pecados laicos e liberticidas.
E por um momento, para sempre?, a infâmia daquela construção sinistra pareceu afundar-se, desaparecer conjuntamente com os seus obreiros e com tudo o que de terrível e ignóbil aquilo significava.
Morreu um justo, um enorme músico, um herói e um homem que aspirou sempre a ser apenas isso: um homem numa terra de homens.

Au Bonheur des Dames 64

d'oliveira, 27.04.07
Socorro, que eu já nem sei se publiquei isto! apareceu-me, de supetão, vindo de não sei que catacumbas, este texto provavelmente feito para me lembrar que entrei na velocidade de cruzeiro para nenhures. Algum(a) leitor(a) será tão generoso e de tão boa memória que me possa dizer se "isto" já deu à costa nestas paragens incursionistas?

sixty five!

Então querem lá ver que este que estas pobres linhas vai, dificultosamente, alinhavando no iBook G4 (outra das muitas bizarrias do abaixo assinado) está a entrar na 3ª Idade! In The golden age diria algum cínico mais espevitado se entendesse atrever-se com um ancião ou, melhor, se achasse que valia a pena dar uma canelada no escriba. Qual golden qual quê? Golden só as maçãs, e Deus sabe que não têm graça nenhuma, sabem a serrim açucarado, todas iguais, redondas e brilhantes, todas com ar de quem nunca viu um bicho da fruta, coitadas, nem sabem o que perderam (isto é uma metáfora da canção do bandido que um gajo com 65 pazadas nos lombos vergados, poderia tentar cantar a uma raparigota boa de ver e melhor de apalpar, como dizia o mestre C.J.Cela).
Já me perdi. Voltando ao caso sub-judice: sessenta e cinco calendários já se gastaram em tão fraca criatura. Não é o começo do sexagésimo quinto é o fim dele. Isto é o mesmo que dizer que, quando se fazem 65, perfazem-se! Ou, por outras palavras mais amáveis: já cá cantam sessenta e cinco perfeitos!
Perfeitos, o tanas e o badanas! Ou, em alemão que é mais fino: o Tanhäuser e o Badanhäuser! É que o artista que está a fazer este perigoso número de equilibrista no circo da vida, perante a apatia desconsolada de uma plateia que veio para ver a domadora de tigres e o palhaço rico, de perfeito, pouco ou nada! Em compensação, é uma antologia de imperfeições: canhoto, livre pensador, anarqueirão, leitor omnívoro, péssimo jogador de futebol na praia de Buarcos (ai há quantos anos...), tristonho segundo as marés, olho pingão e chorão, jogador de bridge sem parceiros (vivos) e mais um und so weiter (ah, ah! É et cœtera em alemão, outra vez! Que Kulturra! ) de defeitos maiores e menores de descrição difícil e acentuada indiscrição.
Parece que, entre outros benefícios, a Carris, o SMTPP, a CP e mais uns quantos organismos transportadores, oferecem descontos no transporte deste cadáver adiado. É uma coisa também “golden” que funciona nas horas mortas, como convém. E a TAP?, pergunta-se. Também dará uma abébia nos voos para Paris, Roma, Berlim e Amesterdão? Nem que seja sem direito a estar sentado, ou sentado junto dos camafeus que eles agora arranjam como hospedeiras, livra, que falta de gosto. E logo eu, que me lembro de uns borrachos de primeira que, se calhar, eram notoriamente incompetentes mas que tinham cá um palminho de cara para já não falar no corpinho. Também é verdade que naquele tempo de super-constelations lentos, pesados, barulhentos era mister entreter o pagode com a visão de umas pequenas geitosonas... Ah que vôos esses: dois inteiros dias para chegar à Beira (Moçambique) com escalas admiráveis: Kano, Nyamey, Luanda, Salisburia etc... E o avião a voar a dois. três mil metros e a gente a ver tudo lá em baixo, floresta, savana, deserto, caminhos, rios, manadas, aldeias, sei lá que mais! Melhor!, sei, sim senhor: a entrada do rio Zaire (ou Congo, tanto me faz) no mar! Uma imensa azagaia de águas escuras no azul do mar. Quilómetros e quilómetros de água negra vinda das grandes florestas, do coração das trevas, onde um Kurz invisível tecia o inesgotável novelo do colonialismo selvagem, do neo-colonialismo de óculos escuros, enfim deste post-colonialismo que, por aquelas bandas, se ceva continuamente em morte, guerra, sida e horror, modernos cavaleiros de um inextinguível apocalipse que também não nos poupará.
E perdi-me de novo! Arre que isto é demais! Ou, se calhar não. Apenas outro sinal desses já longos anos que se perfazem, perfeitos só por ironia, imperfeitos por vocação, por caturrice (e ele a dar-lhe) e porque sim!
Já me estou a ver, à beira de um passeio perdido a pensar nem eu sei bem em quê e, Zás!, chega um matulão ou uma matulinha, é igual, vestido de escoteiro e pega-me pelo braço e ala que se faz tarde, depressa para o outro lado da rua se não for para o outro lado da vida. Ai, eu odeio escuteiros, aliás odeio fardas, sejam elas civis ou militares ou desse outro indefinido género como os aventais e demais parafernália maçónica, cuja utilidade nunca vislumbrei, nem a da fardeta aventalóide nem a organização em si mesma, que parece tão ridícula e extemporânea quanto a de uns novos e redivivos templários que agora deram em aparecer, aureolados pelo código davinci ou por outra impostura do mesmo teor, arre, que esta gente não dá tréguas a quem por cá passa amavelmente, com alguma angústia é certo, mas também com um sorriso, ou o esboço dele, uma comoção, várias até, um braço fraterno, o pão e o queijo e o vinho em cima da mesa aberta a quem chegar, quando chegar, a quem entrar e que entre por bem.
Ai amigos meus, escassas leitoras gentis, a quem sempre me encomendei, que fraca viajem fiz. E, no entanto, que de sonhos, de cantigas, de promessas, com que enchi a minha pobre bateirinha (barco mais figueirense não há, proa alta e curva, muito pintada, corpo longo e esguio, leme a condizer) para navegar perto da costa se possível, entregue aos ventos e às correntes em caso de temporal, pouca fé e muita esperança, tanto mar, tanto mar, pouca terra pouca terra, que isto é o destino de quem nasce em terras de Espanha, areias de Portugal, com anunciou o gajeiro lá do mastro real. Que alvíssaras pedirei por tão pouca fazenda trazida de umas índias que já não o eram, para um Restelo que nunca quis? Velho sim, mas de qualquer outra banda que essa!
E, agora, aqui estou metaforicamente tão nu como nasci, mas com muita cicatriz, muitos amigos ausentes e. pela frente, apenas o primeiro dia do resto da minha vida.

A ilustração: "combate de tigres" pelo extraordinário "Douanier" Rousseau. Isto para lembrar um verso de Borges:
...con los años fueron dejandome
los otros hermosos colores
ahora sólo me quedan
la vaga luz, la inextricable sombra
y el oro del principio
....

outros muros

ex Kamikaze, 26.04.07



Entre a vista que, a 25 de Abril de 1974, tinha da janela do meu quarto, em Caxias, e a que se tinha daqui, em Berlim, onde estou hoje, um mundo de diferencas e algumas semelhancas.
Por isso, nem o corpo esgotado, nem a mente cansada, nem o teclado sem acentos nem cedilhas me demovem de vir aqui gritar VIVA A LIBERDADE!

missanga a pataco 10

d'oliveira, 25.04.07

Falemos então, pouquinho mas com alegria, no 25 A. Já aqui contei as histórias que um grupo de amigos viveu desde os dias imediatamente anteriores. Como na nossa escassa, mas total, possibilidade nos entregámos de alma e coração à empresa. Também já referi, há-de ter sido no ano passado, a emoção e a determinação (uma coisa não retira a outra e nas mulheres até parece que ajuda) da Teresa Feijó e da Maria João Delgado naquela madrugada duvidosa em que tentávamos perceber se o dia ia ser de festa ou se dali a pouco estaríamos guiando carros cheios de derrotados rumo à fronteira.
Falo hoje de dois homens já maduros, que tinham visto outras, sempre desagradáveis, mas que nem hesitaram quando fui pedir-lhes ajuda e colaboração, contando o mínimo indispensável e pedindo o máximo (im)possível. Falo de Rui Feijó e de Jorge Delgado.
Que um rapazola, enfim, um tipo de 33 anos (essa era a minha idade) se metesse nestas conspiratas era coisa fácil. Mas eles já tinham passado os cinquenta, já tinham conhecido a prisão e o rosário de coisas de desagradáveis que acompanhava qualquer democrata que desafiasse o poder. Tinham posição, família, negócios, e os anos não ajudavam. Ora bem. Acreditem ou não, nem pestanejaram. É para já, responderam. Com uma diferença: o Rui ficou em pulgas enquanto o Jorge, mais experimentado, disse que o chamassem só quando fosse necessário pois entretanto dormiria o sono dos justos (e ele era-o) dos habituados (idem, aspas, aspas) e dos decididos. E assim foi. Por isso não se meteu às ruas da noite e da madrugada connosco, enquanto o Rui fervilhante dizia que não podia estar em casa.
O Jorge morreu já, deixando entre amigos e conhecidos uma rasto luminoso de um militante critico e ponderado da liberdade. Faz falta, muita falta.
O Rui vai nos oitenta e cinco se não estou em erro, tem os achaques da idade, e dos rins a desfuncionar, da vista já cansada, das pernas que pouco lhe obedecem, mas a cabecinha continua fresca como no primeiro dia. Costumamos falar-nos neste dia, mas hoje ele teve de ir para a sua diálise e sai de lá desfeito. Amanhã também é dia, é sempre o primeiro dia de uma outra coisa que por muito desgostante que esteja, é melhor do que o 24 de Abril de 1974.
E o meu recado é simples: a democracia é coisa que está sempre em obras, o que é uma chatice. Mas mais vale viver entre andaimes do que entre grades sejam de ferro ou tão só tecidas de medo. E é isso que não é fácil de ensinar a quem nessa altura tinha dez, doze quinze anos para já não falar nos outros ainda mais ovos. E todavia foi por eles, para eles que alguns se arriscaram. Não estou a pedir grande meditação sequer um minuto se silêncio. Prefiro mesmo que o dia tenha sido passado como qualquer outro feriado porque isso é o verdadeiro sinal da vitória: viver na normalidade.
E por isso, só por isso, digo in imo pectore: viva o vinte e cinco de Abril, sempre!
a ilustração de hoje: cerejas. Lembrando a velha canção de combate:
Quem te pôs na orelha
essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.

25 de Abril

José Carlos Pereira, 25.04.07
Hoje comemorou-se o 33º aniversário da revolução dos cravos. O Dia da Liberdade foi de novo assinalado na minha terra, Marco de Canaveses. Desta vez sem as parangonas do ano passado, sem as televisões e a imprensa nacional, tanto mais que se havia perdido o “efeito” novidade que as comemorações de 2005 traziam em si. Ainda bem. Marco de Canaveses voltou a ser uma terra normal, que não tem vergonha de homenagear aqueles que lhe trouxeram a liberdade numa manhã de primavera (sim, também estou a pensar no mcr e nos seus tempos de Caxias).

Enquanto autarca em funções senti que tinha o dever de me associar e lá estive, para assistir à inauguração de uma modesta escultura (ou instalação?) alusiva à data e para participar na sessão solene organizada pela autarquia. Actos que, em Marco de Canaveses, também servem para exorcizar alguns fantasmas que ainda por lá pairam.

Farmácia de serviço 31

d'oliveira, 24.04.07
FUI CIEGO
COMO PIEDRA DE CRIPTA HASTA QUE UN DIA
VI EN EL MUNDO LAS MANOS VERDADERAS

NO ERAM LAS MANOS, SINO AQUELA FORMA
DE ESTAR UNIDAs SIN TOCARSE, COMO,
EN EL BOSQUE, LAS HOJAS SORPRENDIDAS
EN LA PROFUNDID Y LA QUIETUD
(Antonio Gamoneda)

A botica anda arredia não porque lhe falhe assunto mas apenas porque o praticante de serviço é um preguiçoso dos quatro costados, distrai-se por tudo e por nada, enfim, a crise da farmácia chegou ao incursões. Hão-de ter reparado que se falou em praticante e não em boticário. E razão não falta: alguém, seguramente um aleivoso, levantou reparos ao diploma que está emoldurado ao lado da caixa registadora. Puseram em dúvida o latim do documento (se calhar queriam Cícero ou Virgílio) o selo branco, a data enfim, uma escandaleira.
O responsável pelo estaminé entendeu recorrer aos tribunais para convencer os insidiosos e lavar a honra, mas até lá louva-se com o título de praticante. É para que conste.
E comecemos pelo princípio como ensinava um insigne mestre coimbrão e de Direito: Beethoven! Esse mesmo o Luís, que Ludwig é nome de incréu ou de aluno de Königsberg (e sabe-se lá que género de universidade será, mesmo com o Kant, pode suceder que ele só emprestasse o nome, já se viu disso, portanto nunca de confiar). Beethoven portanto. Anuncia-se a Integral na Brilliant classics, lá para Setembro. A “abeille musique”, vossa velha conhecida, garante o preço dos 100 (cem) cds: 112 euros. E como toda a gente sabe, não é refugo. São excelentes interpretações entretanto caídas no domínio público.
Quem estiver apressado, tem aí da mesma editora uma escolha (as obras principais) em 60 cd. O preço? Um escândalo: 39.99 euros. Está na amazon.fr
E a pintura? É raro aparecerem aqui dicas mas desta vez aí vão. Em Lisboa na S Mamede está uma mostra de obras recentes de Ana Maria. Vão por mim que, desde os anos oitenta, a fui comprando. É coisa fina! Um desenho minucioso e miudinho, um grande domínio da cor e uma imaginação prodigiosa.
Curiosamente ou não, a Cordeiros, desta vez no Porto anuncia Mário Bismarck, que também fui adquirindo na mesma altura. O surpreendente disto é que foi casado com a Ana Maria... Eu recomendo-o muito também. Por isso tenho dele duas peças na sala. Pela amostra, o Bismarck está muito hiper-realista. E muito, muito bom.
Terceira proposta: no Palácio Anjos, em Algés três exposições sobre a égide do Centro de Arte/colecção Manuel de Brito: Menez por um lado e Ana Vidigal e Ruth Rosengarten por outro.
Uma lembrança comovida do Manuel de Brito, um marchand a sério num pais a fingir.
E terminemos esta viagem com a gratíssima notícia do prémio ao Eduardo Batarda. Desculpem lá, mas é um amigo muito querido desde o nosso longínquo ano de caloiros. O Batarda é todo um percurso de inteligência, ironia, rigor, uma lição. Se vos passar perto uma coisa em forma de livro com o título “O peregrino blindado” da autoria (?) de José Lopez Werner, tradução e adaptação de Batarda Fernandes, edição da livraria 111, 1973, em 200 exemplares numerados de 1 a 200, disparem e abram os cordões à bolsa que agora deve estar por um fartote de maravedis. Se vos propuserem o exemplar 101 não comprem que esse já cá canta. E não fiquem a roer-se de inveja. Eu casquei uma nota preta por ele naquela época. Olho para o bom e um sentido forte de amizade. Nós os de Coimbra dos anos sessenta somos assim, João Tunes! E valeu a pena!
Mais discos: então não é que a Câmara Municipal de Matosinhos editou na sua série “Musica Portuguesa –século XX” o “in memoriam Bela Bartok, op. 126” do Lopes Graça e a “Música para piano” do Jorge Peixinho, com interpretação de Miguel Borges Coelho (isto fazia parte de um sumptuoso saco de ofertas aos membros das mesas do Literatura em Viagem). A CMM que também já se mostrou mecenática com Alvaro Salazar, Cândido Lima, Filipe Pires, João Pedro Oliveira, tudo gente que o praticante de farmácia conheceu nos bons tempos em que trabalhava na Delegação Regional do Norte da Secretaria de Estado da Cultura.
Então esta Câmara é ou não é um escândalo?
Já agora um recadinho para a CMM: ó malta eu aceito de boa vontade os outros discos...
Passemos à livralhada. O que não falta são boas edições portuguesas. Mas só para chatear o indígena aqui vão umas propostas sumptuosas e espanholas: “El corazon helado” de Almudena Grandes, belíssima ficcionista de quem traduzi há pouco (ainda não está no mercado) Los Aires dificiles. A edição é da Tusquets. Curiosamente fiquei a saber que ela é casada com um grande poeta Luís Garcia Montero de que muito gosto. Saiu dele, há uns meses e já cá canta, Poesia Reunida 1980-2005, Tusquets igualmente. E querem crer que mulher e marido andaram juntos um pancadão de semanas no primeiro lugar de vendas?
Outro poeta, prémio Cervantes: António Gamoneda: “Poesia Reunida (1947-2004)” editada pela Galáxia Gutemberg e pelo Círculo de Lectores. Um portento!
Para acabar mesmo, refira-se o nº 242 da revista (também espanhola!) Litoral totalmente dedicada a um outro grande senhor da poesia de aqui ao lado: José Manuel Caballero Bonald: são trezentas e tal páginas lindíssimas com ilustrações fantásticas. A gravura de hoje é precisamente a capa deste exemplar.
O leitor Ferreira estabeleceu-se por conta própria mas jurou-me que continuaria a ler-nos. Está pois no blog ograndetedio-ferreira.blogspot.com. A ler sem hesitação que o David sabe do que fala. Ele pede desculpa pelo grafismo e por não saber pôr ilustrações. Quem achar que é melhor do que eu, digas-lhe como é que isso se faz.
A prima Maria Manuel apresenta na Casa Fernando Pessoa, no dia 3 de Maio, às 18,30 o livro dela e da Ana BenaventeDamas ases e valetes", Teorema. Li a versão de trabalho e gostei. O mítico escultor MSP declarou-se totalmente favorável e bem impressionado.
A Clara Boleo, outra de Coimbra, mandou-me agorinha mesmo um mail a convocar as massas musicófilas para um concerto de Pedro Boleo Rodrigues e Diana Dionísio. É na Casa viva, praça do Marquês 167, no Porto. Uma hora depois há discussão política: “cultura: basta de cereja que é feito do bolo?” Esquecia-me de dizer que isso acontecerá no sábado 28 a partir das 21.30. Ao concerto só faltarei por motivo de força maior, já o resto...

Razões estranhíssimas (castigo divino, punição governamental, asneira própria?) fizeram que isto saísse com gralhas. Estão corrigidas já hoje dia 25, de que falarei brevemente. A gravura de hoje é a própria capa da magnificente Litoral e os versos, claro são de Gamoneda.
Os leitores que desculpem as gralhas e o MSP que faça novo print. Olha, Manecas, foi sem querer.

Au Bonheur des Dames 63

d'oliveira, 24.04.07
Matosinhos: the final cut.

Pronto, já está. Ou, melhor, estará daqui a umas horas mas eu é que não posso dispor de mais uma tarde, a tradução de “Llamame Brooklyn” está à espera e o João Rodrigues pediu-me pelas alminhas que me apressasse. A jovem editora “Sudoeste” (já se deram conta daquele fabuloso grafismo? E dos excelentes títulos já no mercado?) não pode estar à mercê de um tradutor preguiçoso ou a preguiçar, prazenteiro, por Matosinhos. Portanto fiquei-me pelo excelente filme do Tabajara Ruas: “As cartas do domador” ontem apresentado em versão de trabalho a um público numeroso que encheu o auditório. Tive que ir buscar a minha cadeira à zona de café e comigo foram mais uns quantos. Até disse ao Aurelino, esse companheiro de todas as póvoas e agora, pelos vistos, assinante também de Matosinhos, que aquela multidão era por ele. E de facto também era que o Aurelino faz uma perninha no filme do “Taba”. Excelente!
A segunda feira decorreu portanto na mesma toada dos dias anteriores, e deu-me o privilégio de descobrir mais alguns velhos companheiros de Coimbra, dos tempos quentes, imaginem que um deles até me chamou de “terrível mcr!” E depois, candidamente, confessou que tinha feito trinta por uma linha durante a crise... Também pude conversar mais longamente com o António Cabrita, o homem faz tudo e pelos vistos faz bem. Só o conhecia de críticas esporádicas lidas aqui e ali, vamos lá ver se “Arte Negra” (Fenda, ed.) ainda está no mercado. Com o Tabajara foi outro fartote, já nos conhecíamos desde 2004, da Póvoa (e eu já o conhecia desde a leitura de “A região submersa” Bertrand, 1978!!!). O Taba ficou impressionadíssimo com um leitor do que, numa posterior dedicatória, ele chamou “um ovo da minha pré-história!”. É para que saiba! Atenção pois, ao posterior percurso deste cineasta e escritor de que falarei numa próxima “farmácia de serviço”.
Outro encontro entusiasmante: Paulo Bandeira Faria, “as sete estradinhas de Catete”, Quid Novi. Ainda por cima este jovem escritor é sobrinho de um muito querido amigo, de que aqui falei, infelizmente a propósito da sua morte, José Bandeira, crítico de cinema de mérito e camarada das guerras coimbrãs, sócio da Centelha e tudo o resto.
Eu deveria falar de livros mas como calcularão ainda não tive tempo para os ler. A seu tempo se farão pequenas referências, que um livro só precisa disso, e quem quiser crítica pesporrenta e chatíssima que se avie noutra botica. Aqui chama-se a atenção, o resto é com os leitores.
Para quem frequenta estas alegres funçanatas, a coisa acaba por se transformar num excelente reencontro com amigos velhos e novos. Só por isso já valia a pena, mas de facto há mais, muito mais. Isto de descobrir novos livros e novos escritores é para um leitor viciado e empedernido como eu, muito gratificante.
Uma palavra final de louvor para uma pessoa e uma entidade. O Francisco Guedes é meu amigo há trinta anos mas para mim cognac é cognac e serviço é serviço. Estou à vontade portanto para entrar no unânime coro de louvores ao Chico. Ele é um excelente animador cultural. E, ainda por cima, muito profissional. Com o Guedes não há baldas nem xixis nem cocós. Boa malha Chico, boa malha.
E agora a instituição. Eu poderia falar da gentileza das/dos responsáveis de vários departamentos municipais mas até me arrepia a ideia de deixar alguém de fora, que esta malta deu ao pedal e de que maneira! Corteses, alegres, desembaraçadas/os, enfim um must. Para não esquecer ninguém, aqui vai: bela Câmara Municipal a de Matosinhos, que lição que dão a este desastre que se chama Porto. Parabéns, sinceros parabéns.
Isto deveria acabar aqui. Mas não acaba, era o que faltava. Está na Galeria Municipal de Matosinhos, uma exposição de Pedro Campelo. O Pedro há vinte e muitos anos era um traste, um puto reguila que punha cabeças de porco e outras estrepolias na cama dos hóspedes, na minha, vá, que algumas vezes me aposentei e amesendei na casa da Alda Rodrigues, a excelente actriz, e do Zé Campelo. Aquela casa era um albergue espanhol, carregado de livros, belíssimos quadros e música a condizer. Ali recebia-se toda a gente com carinho, alegria e amizade. Com um pequeno inconveniente, as criaturinhas menores pelavam-se por pregar partidas. As vítimas mais habituais, Manuela Sinde, Chico Guedes e eu várias vezes tiveram que desfazer e refazer a cama devido às patifarias daqueles pequenos gandulos. Agora o Pedro está transformado num excelente pintor. Quem diria? Dá um abração ao teu pai e avisa-o que eu se for a Angola lá lhe baterei ao ferrolho com o habitual viático de duas dúzias de ostras. Um gajo encabida-se mas paga ao menos uma simbólica (e tradicional) portagem!

A gravura é de Roy Lichtenstein: "Sunrise".

...

ex Kamikaze, 24.04.07
A apresentação do livro, da autoria da minha boa amiga Maria Inácia Rezola, é hoje, 24 de Abril, no Quartel do Carmo, em Lisboa, pelas 18h00

apresentação de
Ramalho Eanes, J. Medeiros Ferreira e Mário Mesquita


Maria Inácia Rezola, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, doutorou-se em História Institucional e Política Contemporânea pela mesma Universidade. É docente na Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa e integra a Comissão Coordenadora do curso de pós-graduação em Jornalismo, uma iniciativa do ISCTE e da ESCS.
Mais informação aqui.



O leitor (im)penitente 14

d'oliveira, 23.04.07

Pela mão de Verne e Xenofonte
ao encontro dos que se foram
e do que não fui



Um moderador deve ser isso mesmo, moderador. O que, eventualmente, pode querer dizer que o moderador é como o mirone de um jogo de cartas. Está ali, a olhar para os jogadores, a ver as cartas sair, sem arriscar nada mas também sem meter o bedelho onde não é chamado.
Os nossos vizinhos espanhóis tem um dito altamente esclarecedor: o mirone está calado e fornece tabaco.
Isto no tempo em que o tabaco era livre e franco à volta de uma mesa de jogo. Agora, que é politicamente incorrecto fumar, inclusive no meio do deserto, o mirone reduz-se ao silêncio. A menos que forneça caramelos e pastilhas elásticas a um desgraçado grupo de jogadores que não sabem o que hão de fazer enquanto os outros jogam.
Ora eu tenho pouco jeito e menos vontade ainda de deixar os meus jogadores engordar desmedidamente a aviar caramelos como quem dá chupões num cigarro imaginário e aceso.
E depois... depois, acho que um moderador que não arrisca não modera coisa nenhuma ou, no melhor dos casos, modera-se a ele. Daí que, embora assumindo esse papel de anunciar os intervenientes e ocupar-me do expediente (quem fala, quanto tempo, quem é que na plateia quer dizer qualquer coisa) entendi deixar nesta mesa, que muito me honra, um pequeno desafio.
Vamos falar do desejo do desconhecido. Do desejo do desconhecido como um dos temas destas jornadas sobre Literatura em viagem. Da viagem para o desconhecido, do desconhecido como motivo da viagem...
Como programa dá para tudo, inclusivamente para uma pequena tese que me surgiu no momento em que, na quinta feira, enviava via blog uma notícia deste encontro. Quem viaja, viaja por alguma razão mesmo que, no preciso instante de bater a porta atrás de si, não tenha bem certo que rumo tomar. Ou terá?
Há muitos anos já, mais do que os que eu gostaria de contar, li algures um verso de Goethe: Warum gehen wir? Para onde vamos?
E logo a seguir: Immer nach Hause. Sempre para casa!
Este verso persegue-me desde há muito e não é a primeira vez que o cito. Gosto de viajar, de conhecer novos caminhos, novas gentes, outras línguas e outras comidas. Comecei cedo a correr mundo com Júlio Verne e Salgari, depois com London, Conrad, Melville para já não falar na mais exaltante viagem de todas, tão bem contada por Xenofonte de Atenas na sua Retirada dos 10.000.
E é dele que me valho para terminar este pequeno desafio à plateia e à mesa: o desejo do desconhecido não será apenas o desejo de regresso a uma casa, à nossa casa, à casa da infância feliz e descuidada?
Será que Goethe (e os poetas, como se sabe, conhecem as coisas antes de nós) tinha razão, e a viagem, continuamente renovada, não é mais do que a volta impossível á casa de onde partimos, á idade de oiro, ao convívio dos que já se foram e que esperam, num impreciso ponto do nosso passado, por nós?
E por aqui me fico. Não vos trouxe tabaco, muito menos oiro, mirra ou incenso, apenas esta mão cheia de sal, sinal inequívoco da hospitalidade. Sinal de que chegámos, vocês, todos, e eu a casa. Sejam bem-vindos.

Este foi o texto lido pelo vosso amigo e criado na mesa redonda "O desejo do desconhecido" nas segundas jornadas de "Literatura em viagem" em Matosinhos.
gostaria de o dedicar, se é que o mereço, aos meus amigos Liliana Palhinha, Manuel Sousa Pereira, José António Barreiros, David Ferreira e Coutinho Ribeiro, bloggers e leitores, que me acompanharam nessa provação. camaradas, non sum dignus, etc... mas, de todo o modo, muito obrigado.

Na gravura: "Libreria II" de L. Patrignani

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