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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

missanga a pataco 61

d'oliveira, 21.10.08

Já que estão com
a mão na massa

Daqui a dois anos celebra-se o primeiro centenário da República. Parece que se preparam grandes festejos ou pelo menos é isso que é permitido pensar dada a gigantesca comissão já nomeada.
Nunca fui um especial entusiasta de comemorações deste teor mas percebo bem que haja quem sinta uma imperiosa necessidade de se proclamar republicano. O republicanismo está ainda associado a uma certa ideia de defesa de ideais de igualdade, solidariedade e justiça social. Convenhamos que as coisas nem sempre se passam assim e que a República, mesmo a !ª (1910-1926) andou muitas vezes longe destes desideratos. O Partido Democrático avassaladoramente maioritário durante este período não foi um amigo dos sindicatos, dos trabalhadores para não falar das mulheres e dos camponeses. E para não falar sobretudo do clero, da maioria católica que não só se sentiram atingidos pela perda de privilégios extravagantes mas também pela tenaz perseguição que a ala mais radicado novo regime levava a cabo contra os “talassas”, os monárquicos e os crentes habilmente amalgamados pela propaganda republica numa imensa conspiração restauracionista que, como na fábula do rapaz e do lobo, acabou em 1926 por se tornar real. Ou melhor: o golpe de Gomes da Costa é sobretudo obra de republicanos, como são republicanos muitos dos mais influentes dirigentes do regime que se lhe seguiu.
Devia, julgo, poder fazer-se agora a história desapaixonada desse período com as suas grandezas e... com as suas misérias. Foi isso que um grupo de monárquicos veio solicitar há pouco e é isso que a ética republicana, pelo menos como a entendo, exige. Não se trata de, mais uma vez, pedir umas estúpidas desculpas, que nada significam e que nada resolvem, mas apenas de fazer finalmente a história de uma época que a imensa maioria dos portugueses desconhece e que, por exemplo, um museu como o da república, omite.
Sob pena de, não o fazendo, levar a água ao moinho dos adversários da Republica ( e muitas vezes da liberdade) a quem as roupagens de vítima favorecem.
Há pouco tempo, um desses concursos populares, deu a Salazar o estranho e inesperado título de português mais popular e importante do século passado. Suponho que Afonso Costa nem sequer aparece citado na lista das personalidades marcantes. Isto diz muito sobre o desconhecimento da República.
Consta, porém, que há uma opinião bastante generalizada que remete a história e a critica das misérias da República para os seus adversários ou para “gente do género Vasco Pulido Valente”. Trata-se , a ser verdade, de uma burrice supina seja qual for o ponto de vista que se adopte. À uma, o dever do historiador é a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade. Depois, VPV é seguramente um historiador brilhante irredutível a géneros sejam eles quais forem. Terceiro, voltar a tentar escrever piedosas hagiografias da Primeira República, é um erro palmar que não só não ajuda a comprender a época mas, sobretudo, nos remete para o que de mais torpe e canalha se herdou do salazarismo.
Perceberam ou é preciso fazer um desenho?

Há Luz ao Fundo do Túnel?

JSC, 21.10.08
As dúvidas começam a morder as melhores consciências.

Depois do plano de compra, com dinheiros públicos, dos "Activos tóxicos" que maquilharam Balanços e deram lucro a finançeiros & associados;

Depois de se ter verificado o falhanço das entidades reguladoras e do fracasso das entidades oficias de revisão de contas, incluindo as agências de rating;

Depois dos governos terem injectado biliões e biliões de euros e dólares, para dar "confiança" ao sistema, que levou a que muitos vissem nessa medida "o início do fim da crise";

Depois de banqueiros e executivos da banca terem agradecido aos governos o apoio recebido;

Depois dos principais líderes europeus terem encontrado uma fórmula mágica para "refundar o capitalismo", que foram levar ao Sr. Bush, principal mentor da crise, em retirada de cena;

Depois de tanto esforço e dinheiro público gasto eis que as dúvidas se reforçam e começam a morder as melhores consciências.

O Sr. Brown inventou um Plano para refundar o sistema, que vai discutir com uns tantos países (G8 + dois ou três). Por sua vez, o responsável pelo Banco de Portugal aligeirou regras e critérios contabilísticos a que a banca estava sujeita, para “ajudar os bancos contra a crise”, permitindo que os bancos "respirem" melhor. Ou seja, a “confiança” demora e as medidas paliativas incrementam-se.

Contudo, apesar de tanta medida e tamanho apoio público concedido, o sistema financeiro continua a agonizar e a tramar empresas e particulares, que formam a economia real.

Um conjunto de grandes bancos europeus necessita de mais de 73 mil milhões de euros para reforçarem o seu capital. São os analistas do Merrill Lynch que esclarecem que muito dificilmente os accionistas terão condições para reforçarem os seus capitais, logo, concluem, terá que haver injecções de dinheiro por parte dos Governos.

Notável é os homens da Merrill Lynch já não defenderem que o mercado funcione e cumpra o seu papel. O que eles impõem, agora, é que os governos intervenham, injectem o capital que os accionistas não arriscam e tudo para"tranquilizar os cidadãos".

Como é que toda esta história vai acabar é coisa que não se sabe. Mas tudo parece indicar que o que vem a seguir é muito pior. O sistema financeiro transformou-se num saco sem fundo. Até onde os governos poderão segurar que o pânico se alastre, porque é que isso, só isso, que têm estado a fazer.

orquídeas

Sílvia, 21.10.08













orquídeas

as orquídeas brancas debruçadas
enfileiravam-se
a subir pela haste
-pelo poema-

subiam como palavras
essenciais de beleza.


silvia chueire


saudades, muitas saudades meus amigos...
carinho,
silvia

A D. ROSA

JSC, 20.10.08
A D. Rosa tem existência real. Mãe preocupada com a educação dos filhos. Viúva. Nunca teve emprego certo por conta de outrem. Recebe uma pensão de sobrevivência (não sei se é assim que se chama) que lhe é atribuída e calculada (creio) com base no vencimento do falecido marido.

Recebe abono de família e um complemento da pensão ou RSI. Tudo somado não ultrapassará os 300 €. A D. Rosa faz parte das estatísticas que mostram o forte peso da pobreza no Norte e que o Expresso e outros jornais bem retrataram.

A D. Rosa cultiva umas terras, das quais retira batatas, cenouras, legumes, tomates, maçãs, figos, laranjas e outros produtos que a mãe-terra concede a quem a trabalha. A D. Rosa, também, cria galinhas (e até vende uns ovos e uns frangos) e tem sempre um porco na pocilga, que lhe vai dando os torresmos, chouriços, costeletas e outras carnes. Tudo sem grande custo financeiro, excepto o seu trabalho. A D. Rosa vive numa razoável casa cedida por um familiar e está a construir casa própria num terreno que lhe foi cedido por um familiar.

A D. Rosa não faz vida de pessoa rica, mas vive com conforto e com dignidade que o trabalho propicia. Mas, a D. Rosa faz parte das estatísticas da pobreza.

Sem generalizar, o exemplo da D. Rosa mostra que fora dos centros urbanos, para quem quiser trabalhar o campo, a pobreza que as estatísticas quantificam é qualitativamente diferente da pobreza urbana. É, digamos, menos pobreza, logo mais valor e dignidade humana.

A D. Rosa nada saberá de estatísticas. Estas também nada sabem da vida que a D. Rosa leva.

O leitor (im)penitente 40

d'oliveira, 18.10.08

Ramiro Fonte

Conheci-o na Póvoa ou em Matosinhos já não estou certo nem isso interessa muito. Tinha acorrido à chamada fraterna do Francisco Guedes esse agitador cultural que tem criado pontes entre escritores e público que vão muito mais longe (e muito mais fundo) do que dez Ministérios da Cultura juntos.
O Ramiro era um homem de cultura e de convicções. Dizia alto e claro ao que vinha. Não poupava elogios e não era meigo nas críticas. Fora isso gostava de comer bem, de ler e de Portugal. E de alfarrabistas portugueses, sobretudo de Lisboa, que ele frequentava amiúde, comprando os tesouros que a incúria, a preguiça e o desinteresse nacionais deixavam por aí esquecidos. Sabia de literatura portuguesa mais do que 99% dos portugueses. Lia os nossos (e dele) autores com paixão, com rigor e sempre surpreso. Ah que dias (aliás noites...) de conversa! E que paixões comuns, o Raul Brandão, por exemplo...
Combinámos mil encontros numa das minhas vindas a Lisboa. Mas eu esquecia-me sempre de trazer o cartão com o número de telefone dele... Agora já não serve.
Morreu subitamente em Barcelona. A notícia caiu-me brutal no El País de domingo passado. A Laurinda e o Manel Simas quando chegaram ao café viram-me com cara de caso. Falei-lhes nele e na falta que vai fazer. Depois fui até casa, escrevi um texto curto mas a internet falhou quando o tentava "postar".
Hoje, a Maria Manuel Viana manda-me um mail com a fotografia e o poema. E perguntava-me se eu já sabia. Sabia mas, com a vinda para Lisboa, e mais três futilidades, esquecera o post adiado. Sai este à pressa e que os deuses da internet permitam que siga. Não se diga que o Ramiro desaparece sem uma notícia mesmo breve mas sincera. Lembrem-lhe o nome. era galego, poeta, e amava a nossa literatura como muitos de nós a não amamos.



Promesa

Quizá fuesen mejores
nuestros corazones cando eran frágiles
y algún golpe de mar, o la noche de júlio
pudieran abrir las calladas heridas
que ahora, y para siempre, llamaremos nostalgias.
Quizá fuesen mejores cando eran
cual regatos ligeros o lluviosas tardes
que mojaban la infância y partian
un domingo común; un valle abierto,
imensos arenales, aquel balcónn
detenido en la presencia de pulidos gerânios.
No eligieran barcos para partir lejos;
ni la brisa liviana de un verano
para que los apagase, con su fuego insumiso.
Semejantes a los hombres, desearon
a los árboles antiguos de esta tierra.

(in A Origen das Espécies 12/10/2008)

Au Bonheur des Dames 145

d'oliveira, 17.10.08

Confiança, dizem eles...


Ai minhas manas e leitorinhas!... então não é que aquela gente da finança, alta, média ou baixa, que são todos iguais, valha-os Deus, agora insiste que nós, os do montão, os paisanos, os ignorantes, as massas, devemos fazer mais um esforço e ter confiança, mostrar confiança nas bolsas, nas medidas governamentais, na responsabilidade dos banqueiros, na grandeza dos empresários, na honestidade dos correctores de Wall Street!
Então não deveriam ser eles a confiar, a investir, a comprar as acções que estão pelo preço da uva mijona, a “rastos de barato” como diria o falecido presidente do Clube dos Trouxas, meu venerado Rui Feijó que, como Jesus Cristo (apud Pessoa, em heterónimo) não percebia nada de finanças? Então hei-de ser eu, um Zé Ninguém, que não tem cheta, que hei-de ir a correr comprar acções da Telecom, obrigações da Galp, investir, inverter, arejar uns carcanhóis que antecipadamente algum banco misericordioso (como todos os bancos que se prezam sobretudo os dos sub-primes, super merda) me emprestará a juro razoável (segundo o onzeneiro) tomando como garantia a minha casa, os meus livros, a minha carcaça (de bem pouca valia, dada a idade e os estragos de uma vida crivada de erros meus, má fortuna e amor ardente)?
Hei-de ser eu, armado em Durão Barroso mais loquaz e mais interveniente (agora a criatura desdobra-se pelas televisões e anexos como se tivesse contribuído com algo mais do que um espesso silêncio para a resolução (???) da crise), quem deve tirar as castanhas do lume, já que é tempo delas, valha-nos ao menos isso, ainda hoje comprei uma dúzia no Chiado (chiça que as castanhas estão que fervem, até pensei que me tinha enganado e que estava a comprar “marrons glacés e não um honrado produto nacional e transmontano que pelo preço deve ter sido lavado em petróleo já refinado e embrulhado em seda natural, daquela com que se faziam umas saudosas gravatas Michelson’s que só se vendiam também no Chiado numa lojinha pequena e caríssima mesmo ao lado da Bertrand: vão lá e vejam os preços para saber quanto é dura a vida dos ricos e dos tipos que têm a mania de usar gravatas diferentes das da deputadagem, da ministeriagem e da empresariagem indígenas... )?
Já me perdi, o que até nem é mau porque assim devo assemelhar-me aos nossos capitães da indústria (eu ia a dizer cavalheiros de indústria mas se calhar eles não percebiam e já não estou para "dar pulos á margarida" como diziam os romanos, quem quiser perceber que vá ás fábulas latinas que eu não tenho tempo nem paciência para traduzir o meu estafado humor em terceiro grau...) que também andam por aí desnorteados, a fingirem que isto (a crise) não é nada com eles. E se calhar não é. A chuva quando cai não é para todos mas apenas para os que não tem gabardina nem chapéu de chuva. Ou seja: eles poderão safar-se mas nós vamos ser como o mexilhão quando o mar bate na rocha (Eu estou a ver a minha companheira de blog, a Sílvia que anda fugida, à nora com estes idiomatismos ((cfr. Dicionário Aurélio, 2º edição, pag. 913)) portugas, a tentar entender esta língua fugidia que nenhum acordo luso-brasileiro alguma vez consertará, pensando que o mcr endoidou definitivamente como era de prever mas não de lamentar.), nós vamos ser lixados, como é tradição, costume, hábito, fado, vida.
Eu gostaria imenso de dizer, como o velho professor de Candide que tudo corre pela melhor no melhor dos mundos, mas como todos sabem, nem Voltaire acreditava nisso. Aliás, acreditava em poucas coisas, o velho sacaninha, e por isso aí o temos janota a fazer galhardamente 300 anos, a espantar os dignos de espantar-se, os que ainda se surpreendem, os que são curiosos, os que gostam de saber e não se satisfazem com frases feitas, narizes de cera, proclamações altissonantes e outras balivérnias.
É por isso, por me sentir mais próximo do velho Senhor do que destas imitações de intelectual que por cá pululam, saltitantes e excitadas, que me sinto intranquilo e não me converto à novíssima moda do hossana à Europa (enfim desunida) ao governo que me vai aumentar a pensão, e aos senhores deputados que votaram rapidamente e em força o aval aos bancos. Não que não seja necessário que o é, mas provavelmente votar só isso será pouco, muito pouco. Precisa-se de outro paradigma, de outra vida, de outra responsabilidade. Remeto-vos, leitoras conscienciosas, para o belo post de JSC aí em baixo. Ele diz bem o que eu só toscamente consigo murmurar.
E, para fechar em beleza, um conselho baratinho: corram, voem à livraria mais próxima e comprem o último Herberto Hélder. Na editora já esgotou mas ainda hoje o vi em duas ou três livrarias, mormente numa pequena livraria do Centro Comercial Palmeiras em Oeiras. Ora aqui está um profissional que não deixa os seus créditos por mãos alheias. Mesmo tendo uma pequena loja num pequeno centro comercial, não deixou de encomendar o Hélder. Precisamos de muitos livreiros como este. Ou como uma certa Liliana Palhinha em Faro onde existe uma coisa linda e divertida: Pátio de Letras. Entrem e vejam. E bebam um copo enquanto compram um livro e folheiam outro. E falem com a senhora livreira. Além de bonita é inteligente e simpática.
São pessoas destas que me fazem pensar que nem tudo está perdido.

Inconstitucionalidade é irrelevante!

mochoatento, 16.10.08
O artigo 74º, nº 1, do RGCO estabelece que o prazo para interpôr recurso da sentença judicial condenatória proferida em sede de processo contra-ordenacional é de 1o dias, sendo a tramitação posterior determinada pelo Código de Processo Penal.
Assim, o prazo para o recorrrente é de 10 dias e para a resposta do Ministério Público de 20 dias.

O Acórdão 27/2006 do Tribunal Constitucional declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do referido artigo 74º, nº 1 do RGCO, na medida em que fixa para o recorrente um prazo inferior ao recorrido Ministério Público.

Qualquer pessoa conclui que o prazo de recurso passou a ser o fixado para a resposta do Ministério Público.

Note-se que a declaração de inconstitucionalidade é na parte em que fixou prazo inferior ao Ministério Público. Não foi declarado inconstitucional que o MºPº tivesse prazo superior (neste caso, a conclusão seria a redução do prazo para 10 dias).

Estava estudando este problema, quando descubro um acórdão do Tribunal da Relação do Porto que é lapidar: afinal, o prazo de recurso mantém-se em 10 dias. O acórdão do Tribunal Constitucional que declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral não tem efeitos a não ser no caso concreto!!! E outras afirmações extraordinárias ....

A ler e reler!

Nítido Nulo

ex Kamikaze, 15.10.08
A obra de Virgílio Ferreira, goste-se mais ou menos dos seus escritos (ou de alguns dos seus escritos, que são muitos e de diversa natureza) constitui, inquestionavelmente, património cultural português a preservar e manter vivo - leia-se, disponível para leitura.

No entanto, das 32 obras editadas pela empresa que detém os direitos de publicação, uma das quais incluída no Plano Nacional de Leitura, estão esgotados ou indisponíveis ... 32 títulos!!! Ou pelo menos assim consta do site respectivo... pois afinal, segundo me acabam de informar telefonicamente, há alguns (poucos) títulos reeditados.

Como acabam de dar à estampa manuscritos do espólio do escritor, correspondentes a um diário que escreveu, com algumas interrupções, entre os 26 e os 32 anos , apetece glosar a célebre frase e gritar bem alto: PUBLIQUEM 33!!!

E se não publicam/reeditam, que haja alguma entidade responsável pela cultura neste país que - à falta de mecanismos legais de injunção neste particular - faça uma oferta irrecusável e adquira os direitos de publicação! Sairia certamente mais barato que uma só saison de Allgarve, pelo menos tendo em conta a regra do custo/benefício, sendo este extensível agora a todos os portugueses e não só aos allgarvios e certamente também mais perene, não se evanescendo num qualquer "sonho de uma noite de verão" ...

Au Bonheur des Dames 144

d'oliveira, 15.10.08


Citar o que se não conhece para falar de coisas mais ou menos comuns.


Uma senhora jornalista do Público entendeu titular um seu texto sobre a guerra do alecrim e mangerona do casamento homossexual assim: do Capital ao Kamasutra.
Quem distraidamente ler o título poderá pensar que a criatura terá lido ambos os calhamaços e poderá mesmo ter-se enternecido: coitada: tão nova e à pega com aquelas duas desconformidades.
Pela parte que me toca, li apenas o livro 1 do primeiro e boa parte de uma versão, eventualmente truncada, do segundo numa edição espanhola e sigilosa vai para mais de quarenta anos. Aliás “O Capital” e depois os “Grundrisse” na velha 10-18, sucederam-se aos textos mais curtos e clássicos que qualquer universitário de esquerda que se prezasse tinha de ler. Isso, um par de Lenines, o nefando “Materialismo Histórico” do Zamora, algum Lukacks, muito Lefebre, “A origem da Família” e alguns tomos de História (desde o Soboul da Revolução Francesa, até ao Hauser da Historia Social da Literatura e da Arte, com passagem por Plekanov e mais uns tantos) faziam parte da corrida (da maratona) de obstáculos com que um filho da burguesia se ia tentando transformar em revolucionário.
Em boa verdade, a maioria, a imensa maioria, não lia nada disto. Limitavam-se a uns livrinhos e a muita romançada “realista e social” a começar por um Jorge Amado (tão excelente autor!...) que caira na esparrela de publicar uma coisa horrenda chamada “Os subterrâneos da liberdade” e a acabar num par de autores soviéticos que não chegavam aos pés do Gorki. Na literatura indígena usava-se e abusava-se da má poesia panfletária esquecendo sobretudo a boa. Era o ar do tempo.
Voltando, porém, à senhora que ocupa a última página do Publico, estou em crer que se baldou quer ao Capital quer ao Kamasutra. No que só teve bom gosto, convenhamos. Todavia, ao ler-lhe a prosa desconexa, fica-se com a ideia de que ela pretende passar por leitora dos dois textos.
Não se vê como depois de os ler, se os leu, venha agora falar da passagem da leitura de um para o outro, ou seja do mais moderno para o mais antigo, caracterizando a pequena turbamulta pró casamento dos homossexuais em adeptos do Kamasutra (???!!!) em oposição a uma mais antiga gentinha devedora do Capital.
Eu sei que estas fórmulas bombásticas estão na moda. Basta ser atrevido e pensar que nenhum leitor lhe sairá ao caminho. Mas de vez em quando um velhadas ranzinza salta para a arena. E vejamos: a senhora resolve falar do rapto de Aldo Moro pela rapaziada das Brigadas Vermelhas. Foi um crime e mais do que isso uma burrice e um desafio que nenhum Estado toleraria. Porém, ao descrever a prisão de Moro, diz-nos que por um lado os brigadistas queriam forçá-lo a ler os clãssicos marxistas e revolucionários e que Moro, “obviamente, os tinha já lido. A gente pasma. Eis que Moro que não era inculto, também petiscava na gamela revolucionária. Não consta e, após uma breve volta a livros e textos da época, não vejo sinais disso. Que dois revolucionários patetas entendessem dar um clister de Gramsci ao preso, não duvido. Que ele soubesse vagamente duas ou três coisas do antigo dirigente comunista não me custa. Mas ler o que se chama ler? E o Marx? E o Lenin? Quiçá o Mao ou até o Stalin? Isto para só referir os pesos pesados ou os que passavam por o ser.
Eu sei que uma lenda persistente põe Moretti a explicar Marx, de livro em riste, ao prisioneiro. Mas outras e muito fiáveis fontes atiram por terra esta historieta que terá (para alguns) alguma graça mas que não resiste a uma leitura dos factos, da época e do que se conhece do carácter dos intervenientes.
Nos anos sessenta, a direita não lia Marx e a esquerda também não abusava. Podiam comprar os livros que aliás pululavam em tudo o que era livraria e editora, sobretudo nas editoras conservadoras mas com espírito capitalista. Mas ler, o que se chama ler, népia. Eu suponho que a senhora jornalista não era ainda nascida nesses anos de chumbo, ou sendo-o já, teria muito verdes anos para poder com segurança vir atirar estas ao pagode. Sempre lhe diria que mesmo no seio do poderoso e estruturado Partido Comunista Italiano, Marx era um quase desconhecido (tirando o Manifesto, claro e mais dois ou três breves opúsculos). Disso mesmo se faziam eco os críticos que mais tarde vieram a fundar Il Manifesto e e escrever as famosas “200 teses”. E nos restantes países ocidentais a coisa andava pela mesma situação. A imensa maioria dos quadros e dos militantes fazia gala de muito tarefismo, muita devoção, e pouquíssimo estudo. Os autores citados acima e muitos outros eram pascigo de meia dúzia de intelectuais, com pouca autoridade no meio partidário, suspeitos a mais das vezes ( e nem sempre sem razão) de heterodoxia.
A segunda parte do redundante texto que venho citando dá aos adeptos do casamento dos homossexuais (e aos que não se lhe opõem como é o meu pobre caso) uma fama de perseguição a outrance da moda e da modernidade e um singular penchant pelo Kamasutra.
E este também não me parece ser texto muito divulgado entre os lusitanos. Excepto na versão “BD” de Manara ou nalguma edição resumida, como já disse. Parafraseando um velho amigo, o “Kamasutra” é um livro pitoresco mas cansativo. Um manual de ginástica dificultoso e, finalmente, pouco útil. Excepto para as entorses e outros desastres sempre possíveis a quem se atrever a tentar levar à prática algumas das menos difíceis posições.
Conta-se, e esta é para terminar, que um inocente erro tipográfico na primeira ou segunda edição do “Ulisses” fez aparecer uma criatura em que Joyce jamais pensara e que, aliás, não cabia naquele dia fatigante mas genial. As edições foram-se sucedendo, o erro ter-se-á mantido até ao ponto de aparecerem algumas sábias e copiosas teses universitárias sobre essa esboçada e entrevista criatura que há uns anos desapareceu quando se resolveu finalmente expurgar o Ulisses da patina de erros, virgulas e demais postiços. Não sei o que sucedeu aos autores das teses, reputados estudiosos da obra joyciana. Provavelmente estarão a discutir a teoria do valor e a mais valia com Moretti e o fantasma de Moro. Antes isso do que pregarem a homofilia.