Louvor e simplificação de Ricardo Salvat
qui demanava
avui unes paraules
que l’acompanyin?
Llums en aquest seguici
de la mort caminada.
Não sei se alguma vez aqui falei de Ricardo Salvat. Do professor, do encenador, do homem de teatro Ricardo Salvat. Desse mesmo que, num turvo dia de Abril de 1969 foi expulso de Coimbra onde exercia de Director Artístico do CITAC. Com ele, aliás, foi também expulso outro grande homem de teatro. Luís de Lima que na altura era o encenador do TEUC. Expulsos porque testemunhas incómodas da crise académica que então grassava.
Ricardo Salvat chegou a Coimbra em finais de 68 e fora-lhe atribuída uma difícil tarefa: substituir Victor Garcia, um argentino genial que provara em vários palcos europeus a sua altíssima qualidade. A este “derroche de talento” vinha substituir-se o austero Salvat, evangelista de um outro modo de fazer teatro, profundamente influenciado pelo teatro documental e ainda tributário de Brecht.
Todavia, e nisso reside, porventura, a generosidade e entrega da juventude, Salvat rapidamente conseguiu interessar os amadores de teatro que o tinham convidado. E começou pelo que sendo o mais fácil era também o mais difícil. Ensinar, em escassas semanas, um pouco do que sabia de História do Teatro, da qual era já um reputado especialista.
Coube-me a mim a tarefa gratificante de ser o “sebenteiro” do Professor. Munido de um dicionário de catalão-castelhano, de alguma audácia e amparado pela gentileza de Salvat lá fui eleborando as folhinhas resumo do curso de teatro. Que foi um êxito!
Entretanto, íamos preparando um espectáculo “Castelao e a sua época” baseado na vida e obra do grande autor galego. Salvat trabalhara num projecto semelhante em Barcelona (“Adriá Gual i la seva época”) e a sua disciplina, o seu fervor (e a nossa absoluta disponibilidade) começavam a dar frutos. Ao mesmo tempo, pegando numas traduções de Paulo Quintela de poemas de Brecht e na “Excepção e a Regra” do mesmo autor ia organizando com a nossa entusiástica cumplicidade um espectáculo alternativo que escapasse à sanha da Censura.
E, last but not the least, para a preparação dos espectáculos trouxe a Coimbra alguma da melhor gente que conheci. Cito apenas dois, ambos galegos, e agora justamente famosos: Luís Seoane e Xesus Alonso Monteiro, figuras proeminentes do novo galeguismo, da oposição activa ao franquismo e expoentes duma “inteligentsia” ibérica de que andávamos muito arredados.
Foi também por ele, que soube a história da dissidência de Jorge Semprún e Fernando Claudín e também por directo testemunho do caso Padilla. Detenhamo-nos um pouco aqui:
Herberto Padilla, poeta cubano. Com a revolução regressa do exílio nos Estados Unidos e começa a trabalhar na “frente cultural”. Ao contrario de muitos outros intelectuais cubanos, esteve no estrangeiro, conhece gente e não acredita que a revolução transforme em pão e rosas tudo o que toca. Não é um crítico, muito menos um dissidente. É, se quisermos, um independente. Que não lê a cartilha dos novos donos da literatura cubana. Concorre ao Premio Casa de las Américas com “Fuera de juego” e ganha. Simultaneamente, e é aqui que entra Salvat, o prémio de teatro é atribuído a Anton Arrufat por “Los siete contra Tebas”. O júri que, por maioria, lho atribui está constituído por Ricardo Salvat, Adolfo Gutkin e José Triana que o designam e por Raquel Revuelta e Juan Larco que votam contra. Não vale a pena comentar as pressões a que os três primeiros foram submetidos para evitar a vitória de Arrufat. Como no caso Padilla, o texto é publicado mas não é posto à venda e muito menos encenado. Como no caso Padilla virão as perseguições. Com uma diferença: Arrufat, não obstante todas as humilhações por que passa, recusa-se a emigrar. A sua persistência (e a sua inteireza...) tiveram frutos tardios. Continua crítico mas o Poder não conseguiu evitar que lhe concedessem o Premio Nacional de Literatura.
Estes dois casos, sobretudo o primeiro, porque Padilla se tornou um caso de repercussão internacional, mostraram os limites da “revolución de los barbudos” e marcam o inicio da critica internacional à falta de liberdade na Ilha. Salvat, testemunha directa, não o ocultou mesmo que as suas críticas fossem nesse tempo cuidadosamente ponderadas e feitas en petit comité. Sou testemunha (não creio que única) dessas preocupações, desses cuidados e dessas angústias. Como também o sou das incertezas e discussões ue em espanha se geraram depois do caso Claudin.
Ricardo Salvat morreu ontem. Quarenta anos depois de ser expulso de Portugal sob o labéu de perigoso agitador que, verdade se diga, de facto era. Agitador de ideias, inconformador, homem livre, arauto de um teatro que a turbulência dos tempos fez desaparecer. De um teatro que, aliás, pospunha o seu próprio desaparecimento. Ainda que só esporadicamente tenha acompanhado o que ele foi escrevendo, e escreveu muito, fico com a ideia de que ele tinha clara consciência disso. No notável livro (no prelo) que José Oliveira Barata dedica à história do teatro universitário, Ricardo Salvat é chamado “o pedagogo”. E foi isso que ele acabou por ser ao longo dos últimos trinta anos. E um respeitado professor, um critico generoso e consciencioso, um velho sábio.
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cerques un nom inútil,
per aturar-te?
Sabrás millor quin era
pel nom, el secret últim
de qui va precedir-te?
Tan sols un home.
• poemas de Salvador Espriu: poema XI in “Setmana Santa” e XXIX in “Cementiri de Sinera". Eis a minha tradução:
1. quem é que hoje pedia alguma palavra que o acompanhasse? Luzes nesta comitiva da morte caminhada.
2. Procuras um nome inútil para te deteres? C Será que com ele conseguirias conhecer o segredo de quem te precedeu? Foi apenas um homem.
** na fotografia Ricardo Salvat e mcr, Coimbra, 1969