Chegar a horas?
Ora, ora.....
Esta discussão sobre a falta de pontualidade nacional leva-nos muito longe. Ou leva-me a mim. Explicando: sou obsessivamente pontual. Detesto chegar atrasado seja aonde for. Detesto o olhar de censura que quem espera nos dirige.
Convém explicar este plural “nos” depois de dizer que tenho a mania (deve ser uma mania, em Portugal) de chegar a horas.
A verdade é que a grande maioria das mulheres que me aturaram e que me têm ajudado a fazer este percurso tem uma ideia muito mais “liberal” da pontualidade.
De certo modo estou-lhes agradecido. Em primeiro lugar, aumentaram a minha auto-estima. Fizeram-me ver quão virtuoso sou ao tentar ser pontual. E ao consegui-lo, apesar delas.
Depois, os atrasos contribuíram fortemente para a minha cultura, ou para o conjunto de conhecimentos mais ou menos inúteis que fui acumulando graças a essas mulheres que tinham uma outra visão dos horários e dos compromissos.
Entrando no assunto: nos happy sixties namorei uma rapariga linda até dizer basta. Era alvo de olhares de inveja que se isso pudesse ser concentrado me teriam trespassado e aniquilado em poucos segundos. Essa namorada (espero que me esteja a ler) era, como eu, estudante em Coimbra (aqui um aparte para o JVC: ó João se lá tivesses tido uma namoradinha destas, nunca mais dizias mal de Coimbra...) e vivia numa casa onde também comia. Isto significa que, nas tardes em que não tinha aulas, ou em que resolvia não as ter, vinha directa para o Mandarim, simpático café na Praça da República (também conhecido por Kremlin na Praça Vermelha..) onde eu a esperava.
Em principio, deveria aparecer aí pelas duas, talvez um pouco antes, dado que na casa onde vivia se almoçava cerca da uma, ou nem isso. Convenhamos, nunca chegou, mesmo quando a tal se comprometia, coisa que ocorria todos dias entre a saída da faculdade e o momento em que os nossos caminhos se separavam. Mais uma vez na Praça da República.
Manas, aquilo eram secas do catorze! Eu tinha tempo de tomar não sei quantos cafés, de falar com sei lá quantas pessoas até ela aparecer radiosa e com ar tranquilo. Durante duas ou três semanas, esperei ali, alvoraçado, ansioso (ai não !!!) e descoroçoado ( o parvo do computador não me deixa escrever assim mas fui ao Houaiss e descobri que está correcta esta grafia...Que descoco o dos correctores ortográficos!) sem saber a que deus me votar. Sou uma criatura paciente, os anos e algumas forçadas estadias em locais “reservosos” durante o chamado Estado Novo, ensinaram-me isso, mas naquele tempo a paciência ou, essa enorme paciência, não se contava entre as minhas principais qualidades. A “eminente crise” que se avizinhava tinha de encontrar “meios de a esconjurar” (esta vai para os desgraçados que, como eu tiveram de ler a marchas forçadas uma enorme quantidade de textos de Vladimir Ilicht Ulianov... os outros que se amanhem ou recorram a um dicionário). E a solução foi-me dada ou sugerida por um par de amigos que a Parca já levou, o João Quintela e o Pedro Sá Carneiro: lê um livro, pá, disparou um deles. Mas coisa séria, avisou o outro. E transportável, pensei eu, coisa que pese pouco, que não seja volumosa e que se possa ler em duas penadas.
A solução ocorreu-me durante uma ida à Livraria Atlântida, na altura a mais bem fornecida de Coimbra. Ali em duas robustas estantes repousavam larguíssimas dezenas de livrinhos da colecção “que sais-je?”, a melhor colecção enciclopédica que conheço. A “qsj” tem de tudo como na botica: pequenos ensaios dos melhores especialistas, redigidos com notável clareza e concisão, cento e poucas páginas com bibliografia incluída, sobre todos os temas que se possam imaginar. Ao que sei já vai em perto de quatro mil títulos sempre com o mesmo êxito.
Munido desses livrinhos, muitos dos quais ainda para aqui estão, enfrentei as esperas aprendendo as mais desvairadas coisas, do urbanismo às cruzadas, do direito romano até à literatura espanhola do século de ouro. Às vezes o assunto era tão interessante que a chegada da namorada me parecia intempestiva!
Os anos passaram e acostumei-me a ter sempre à mão, vá para onde for, um livrinho, pelo menos uma revista, para o caso de... Hoje mesmo, fui por uma lampreia (que estava nem vos digo nem vos conto!....) e, para a hipótese de ter de esperar pelos meus convidantes, lá ia o volume 4 de “os anos da guerra colonial”. Todavia, aquilo é gente boa e apareceram à hora exacta.
Claro que tudo isto, custe lá o que custar à minha camarada “o meu olhar”, não morre aqui. A CG é uma mulher cheia de qualidades. Muitas e recomendáveis. Porém, nesse vasto leque, a pontualidade não entra. Chego mesmo a pensar que ela acha isso uma tremenda falta de educação. Combinamos, ir passar a manhã na foz a ler a jornalada. Apontamos para as dez meia. Com sorte chegaremos uma hora depois. Quando me vê roxo pronto a começar aos gritos ela resmunga que os dias de foz pela manhã são de descanso e que já lhe bastam os outros para ter de dar à perna.
O cúmulo ocorreu com uma excursão que outro desaparecido organizava anualmente. De facto o Aníbal Belo, flor dos notários e dos bons amigos, organizava anualmente uma alegre passeata a Marvão durante um divertidíssimo fim de semana. Ele tratava de tudo, desde os convites até às marcações de hotel. Adorava Marvão, fora lá que começara, os de Marvão adoravam-no a ele, até lhe puseram o nome numa rua, e todos os anos era um grande reencontro testemunhado pelos amigos que ele convocava para esse passeio. Num ano, provavelmente o penúltimo da sua vida, inscrevi-me. O Belo grato, marcou a partida de dois enormes autocarros para o hotel ao lado da minha casa. Vinha gente de vários sítios incluindo de Vila Nova de Cerveira! Adivinhem quem foram as duas pessoas que chegaram em último lugar, com dez minutos de atraso. Quem apostou em mcr e sua gentil companheira, acertou e fará o favor de não se rir de mim que ainda hoje, e passaram vários anos, coro de vergonha.