3 notas contra a corrente (como é costume. E vício!)
A minha querida camarada de blog “o meu olhar” queixou-se do fim do jacarandá do Largo de Viriato. A propósito disso, e na discussão em comentários, afirmou que o Porto é lindo e que a cidade está melhor em termos de vegetação, nomeadamente parques públicos.
Vê-se que a colega é ainda uma mulher jovem. O Porto, excepção feita ao parque da cidade (que se implantou numa zona rural já com extensos arvoredos, convém sublinhar), perdeu árvores e verde que se fartou. A começar pela canalhada sem nome que fizeram á zona da universidade, á avenida da Liberdade e ás praças e jardins circundantes. Que, pura e simplesmente, foram comidos pelo pedregulho austero ou devastados por um designer de quinta categoria que deve presumir de arquitecto. É inqualificável o que se fez ao belo jardim romântico da Cordoaria que mediava entre a Cadeia da Relação e a velha Faculdade de Ciências. Outro jardim que desapareceu foi o da praça Coronel Pacheco. Das árvores que povoaram a praça Gomes Fernandes, antiga de Santa Teresa ou ainda Feira do Pão ou do Carvão, nem résteas. Ruas inteiras perderam as suas árvores. A Avenida da Boavista levou uma carecada. E por aí fora.
Tudo em nome do modernaço, arquitectónico ou não. Escola do Porto, ou não. Abrenúncio!
Mas detenhamo-nos no jacarandá. A Guilhermina gosta e eu (e o meu querido velho colega António Barreto) também. Conviria, porém esclarecer que os jacarandás são uma importação relativamente recente. Vieram do Brasil, como as cerejeiras vieram do Japão. Mau hábito este de importar espécies estranjeiras e de descurar as autónomas. Aposto que 99% dos portuenses não sabem o que é um teixo ou uma faia. Mais de metade nunca terá visto um carvalho e por aí fora. Seria interessante que os poderes locais e municipais que não têm de ter o lucro em mira, pensassem na nossa antiga floresta hoje infestada por eucaliptos e pinheiros. Seria… mas parce-me baldado o esforço de os convencer.
No que toca à beleza da cidade, estamos também conversados. Ou, melhor, desconversados. Eu explico-me: na ânsia de modernidade, a cidade tem sido assolada por merceeiros da arquitectura e derivados que não olham a meios para rebentar com o que fazia a rude beleza desta cidade burguesa. Ruas inteiras, repito, inteiras, vêem as suas casas serem abatidas para em lugar delas se erguerem coisas medonhas que, em obediência ao que julgam tradicional, são revestidas a azulejo tipo casa de banho. Ou, ai o progresso!, a granito polido, a mármore de terceira etc… entre o Campo (disse campo e não praça!) da República e a Igreja de Cedofeita (a velha e não a monstruosidade que lá puseram ao lado, com um campanário que parece um pombal de pombas neurasténicas!) havia uma rua toda ela de casas de dois três pisos, fachadas nobres, boa azulejaria, belas madeiras, janelas à flor das sacadas, enfim, uma rua bonita. Agora já lhe plantaram aquí e ali uns caixotes infames que o tempo já exclerosou. Um horror. O mesmo há-de (já está) acontecer á Rª de Santo António que uma burrada republicana e outra burrada vintecinquista rebaptizaram com o nome de 31 de Janeiro. Esquecem-se estas luminárias, que se julgam progressistas!?, que o santo António além de português, de doutor da Igreja e de intelectual de valia, foi homem amado por multidões de crentes (e eu sou ateu!) e é o patrono amável de amores vários e não demasiado inocentes. Bastaria esse toque, folclórico e pecador, para o converter numa criatura de bem. Mas era-o. Franciscano da corrente mais revolucionária fez mais pelas gentes modestas que todos os republicanos daquela revolta de opereta, daquela aventura tonta que além de produzir vítimas inocentes apenas serviu para glorificar uns revolucionários amadores e dementados.
A cidade tem milhares de ruas e avenidas modernas a quem o nome dos do 31 poderia põr-se. Mas foi a rua de Santo António, uma das que foi cenário da intentona, que rebaptizaram!
Aliás, o mesmo se fez à praça Velasquez (que, dizem, além de grandíssimo pintor, era descendente de portugueses) ao dar-lhe o nome de Francisco Sá Carneiro. Vejamos se fica com este ou se ainda muda para um terceiro. De resto, a sonha rebaptizadora portuense já destruiu mais memória histórica da cidade do que qualquer outra terra que eu conheça. Como o caso já referido da praça de Santa Teresa, por exemplo.
Eu sou apenas um pobre homem de Buarcos que vinha ao Porto a casa dos avós de longe em longe. Só comecei a calcorrear estas ruas lá pelo fim dos anos cinquenta. Nunca achei a cidade especialmente bonita, como, por exemplo, Évora, Lisboa, Coimbra (hoje também destruída). A beleza do Porto era muito escondida: nas casas com quintal, nos jardins onde as flores conviviam com as boas pencas, na austeridade das fachadas só quebrada pelos ferros forjados e pelo azulejo, no sol que se reflectia ao fim da tardinha nas janelas à flor das sacadas. O Porto tinha estilo, tinha personalidade. Tinha carácter. Tinha um fortíssimo travo romântico dado pelos seus jardins fechados, pelas ruas arborizadas, pelos canteiros (que agora são detestados) pelas janelas cheias de vasos, de gatos e de velhas curiosas. E comia-se bem, diabos me levem. Comia-se bem e a todos os preços. Até isso está a ir pelo cano! Foi-se o grande “Comercial”, foram-se vários restaurantes médios de grande qualidade, desapareceu uma multidão de casas de pasto, de tascas onde os petiscos baratos tinham dignidade, gosto e sabor. Em troca abriram umas coisas em forma de hamburguesaria, de restaurante a fingir-se fino, de caça turistas (a Ribeira está inçada deles), enfim, come-se tão mal como em Lisboa (onde todavia subsistem os grandes e caros restaurantes, claro).
A cidade está reduzida a isto. Perde população todos os dias. Todos os dias. As casas caem de abandono. A população envelhece. As industrias desertaram-na. As instituições culturais emigram para a periferia (hoje foi a Sic, o Expresso e a Visão, antes tinham ido o Fantasporto e TEP). Do ponto de vista político já quase não há consulados como também já não há uma Delegação do Ministério da Cultura. Mas temos uma Casa da Música, onde, por acaso, não se pode fazer ópera!
Deus dê longa vida ao jacarandá e, já agora, se amerceie desta cidade. E que uma sementinha de jacarandá aterre no quintal da Guilhermina. E que germine. E que cresça à sombra do gato e do cão e de alguns pardais que por lá façam ninho. E que, num milagroso golpe de vento, alguma semente de teixo, de faia ou de carvalho, para não falar de castanheiro, resolva tentar a aventura de habitar uma cidade que tem perdido a alma.
E que se arrisca a nunca mais a reencontrar.
* na gravura: um teixo. Um milagre! Uma árvore que já cá estava quando os iberos ainda não tinham nascido. Uma árvore que se arrisca a deixar de cá estar.