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Expressiva, significativa, confortável... (ensaio sobre o dissabor)
Permitam-me os leitores que me atreva pelo caminho sempre difícil da retórica política. Não que tenha para tal especiais aptidões ou particular conhecimento mas tão só porque, ao fim de muitos anos de vida cidadã, uma pessoa acaba por perceber o que lhe querem dizer ou, mais importante, o que lhe querem esconder.
Ontem, desde cedo, e diante das câmaras (atentas veneradoras e obrigadas) das televisões que temos, vários próceres socialistas foram destilando com comovedora candura estes (e outros) adjectivos que parecendo festivos apenas denunciavam uma amarga desilusão. Falavam, como é evidente, da maioria que as projecções e, depois, as urnas, lhes tinham concedido.
É mister recuar um pouco, um par de dias, uma semana, maxime, para recordar a alguém mais desatento esta pequena e elementar verdade. Depois de um malogro desagradável nas Europeias, o PS, enfrentou um Verão benevolente ou assim tornado por força de notícias (nem sempre verdadeiras ou nem sempre exactas) sobre a conjuntura económica a que se foi juntando uma natural mobilização de militantes e simpatizantes que perante o desastre anunciando desistiam de queixas e criticas e se uniam para “bater a direita”.
Por seu turno, a Direita, ou seja o ajuntamento inconstante que a dr.ª Ferreira Leite tentava consolidar com menos perícia do que teimosia, engodada pela miragem de uma vitória ao alcance da mão, fez o que se esperava: desatou a calçar os sapatos do defunto a quem ainda ninguém passara, et pour cause, a devida certidão de óbito.
Lateralmente lá se acabou com a incómoda voz da jornalista Moura Guedes e se desviaram (com ampla e inocente colaboração do PSD) os focos da discussão para o TGV e outras bagatelas, terrenos já caminhados pelos fontistas e seus adversários vai para mais de um século. Belém, por seu lado, deu o seu precioso contributo quando permitiu que se remexesse numa historieta que, mesmo se verdadeira, poderia voltar-se contra os seus presumíveis denunciantes.
Tudo isto e as vagas referências à bondade de uma série de medidas anti-crise e o seu (putativo e imediato) efeito já para este fim de ano, alentaram a máquina socialista. Nem sequer faltou a voz da versão salvífica da esquerda apeada do poder (Manuel Alegre a pedir o voto de todos os seus amigos) ou a miragem ainda mais distante de um pai bonacheirão e au dessous de la melée (Mário Soares a tentar colar a Sócrates o fixe da sua campanha presidencial). E foi assim que se chegou à penúltima semana de campanha com uma enternecedora visão de vitória ao alcance da mão. No pior cenário, antevia-se uma maioria confortável (e este adjectivo nunca foi usado, que eu saiba) que significava tão só uma perda de dez a quinze deputados facilmente remediável com um acordo parlamentar. No melhor, nunca confessado, as perdas estariam reabsorvidas ou quase pelas asneiras do outro lado. Um que outro jornal, às escondidas, mas autorizado, referiu o facto, naqueles sibilinos termos da “cassete jornalística”: "o partido socialista ainda não reclamou a maioria absoluta".
E, nesta frase conspícua ia toda uma subtil menção a essa maioria absoluta quase ao alcance da mão. Assim os deuses ajudassem, assim o povo se mobilizasse, assim os descrentes bebessem o cálice da amargura até às fezes.
A Direita e a Esquerda ajudaram à festa na medida exacta em que também nos últimos dez doze dias de campanha tornaram o fim da maioria absoluta do PS num objectivo de campanha, num slogan, num desafio. E isso, desculpar-me-ão, é algo que também não deve ser manejado à toa. Justamente por que se não controlam totalmente os seus efeitos.
Portanto, o PS chegou ao dia da verdade com estes dois simpáticos cenários. As sondagens publicadas atiravam com dez pontos de diferença entre os dois partidos de poder e remetiam os outros três para percentagens que, graças ao método de Hondt, os privaria de muitos dos deputados que afinal obtiveram. Os jornais estão aí ou, se já foram para o lixo, basta ir a uma hemeroteca.
Porém, uma coisa é o que se quer e outra o que se obtém. E a realidade, sempre essa incómoda circunstância, ameaçou, logo ao princípio da noite, com outras maiorias. Com as tais que se foram desembrulhando (significativas, claro, expressivas, por que não?, mas desconfortáveis, sempre).
Portanto é assim: a maioria socialista não conforta, não sossega, não é simpática. Por mais voltas que dê, só há uma alternativa rápida de acordo. A que propõe um bloco central. Todavia, isso, com a dr.ª Ferreira Leite, é difícil e, no PSD, a defenestração do líder é já uma tradição se é que ainda não faz parte dos Estatutos. Os urubus já devem andar a pairar sedentos de carniça e dispostos a matar a “mãe”. Poder-se-á pensar que, afastada a velha senhora, a “tia” chata, apareça alguém pronto a (em nome dum acrisolado patriotismo e da responsabilidade e sentido de Estado, bla, bla, bla) chegar a um acordo “honroso” em que os “sacrifícios”, pessoais e políticos serão imensos mas “necessários” para salvar Portugal de uma situação “incómoda” e exigente.
Tudo vai depender ainda dos resultados das autárquicas, claro mas mesmo que o PPD consiga, caso a caso, reunir todas as suas dispersas e desconsoladas tropas, o simples facto de se estar numa eleição muito local pode não confortar a actual direcção do Partido.
E agora, os outros?
Será que os do Bloco (que num cartaz anunciavam estarem “prontos”) negociarão com o PS? Em que base? Sacrificando o quê? Porém nem a maioria deste nem a fulgurante ascensão daquele juntam os deputados necessários para formar uma maioria parlamentar. Alguém, mais iludido e esperançoso, ja terá alegremente pensado numa “frente popular” juntando a este grupo o PC.
Claro que nem o Bloco nem o PC se mostraram favoráveis a tão extraordinário renascimento de um dos mitos maiores de meados do século passado. Há muito azedume antigo, muitas contas a ajustar, muito divergência inconciliável para que este cenário (pesadelo, já hoje manifestado, de muito boa gente ) tenha algum crédito.
Resta o CDS. Vozes aqui e ali já falam de um acordo. Sempre com o mesmo problema: falta gente. A maioria expressiva, “a grande vitória eleitoral” (Sócrates dixit) e os dois dígitos de Portas também não chegam para garantir uma maioria. Convém lembrar esta antipática matemática aos que recordam (e quão esquecidos estão das consequências) um anterior acordo com os mesmos protagonistas.
Aqui chegados, alguém será tentado a dizer que eu estou a dar o PS como perdedor destas eleições. Conviria ler o que está escrito e não alguma hipotética mas fantasiosa entrelinha. O PS ganhou mas vai ter muito que suar para fazer a vitória render.
E, já agora, vamos a contas.
Todos os restantes partidos ganharam votos e deputados: o PPD ganhou para já seis deputados não contando com os que decerto lhe virão caber com os resultados da Europa e resto do Mundo. (Mais três?, dois seguramente). Também teve mais alguns votos do que na legislativa anterior. É um vencedor? Não. Não pela simples razão de que corria como challenger e aí cai estrondosamente. Está a cinco pontos (e não os dez previstos há dias) do vencedor e a dezoito deputados..... A hora da verdade a ter chegado será para Ferreira Leite essa catecúmena que arrumou a casa com demasiada precipitação e não soube, não pode ou não quis aparecer de facto como alternativa. Bon debarras, como dizem os francius.
O PC cai para quinto lugar mas beneficia da sua implantação centralizada, do seu “esprit de corps” o que lhe permitiu ganhar um precioso deputado e trinta mil votos. É consolador. A noite das facas longas não está para breve lá dentro.
O Bloco ganha como se previa mas menos, bastante menos, ao fim e ao cabo do que o número global dos seus votos poderia fazer pensar. É o método de Hondt a fazer das suas e portanto convém que se não queixe. Foi a jogo e as regras são estas. Onde as suas percentagens estavam em consolidação aproveitou, noutros círculos é como se não o tivessem votado.
Outro galo cantou ao CDS. Há ali muito trabalho politico, muito esforço e, se olharmos aos meios utilizados, à máquina leve e ao estilo de campanha, esta eleição correu-lhe melhor do que bem. Tudo lhe sorriu, (até o malicioso Hondt!) pelo que Portas se pode mesmo permitir “saudar todos os antigos presidentes do Partido, todos sem excepção” (sic!). Ora aqui está um claríssimo vencedor.
E mais, Portas rouba votos ao PS e atreve-se a jogar nas mesas dos novos eleitores deitando por terra uma teoria tonta que dava o bloco como proprietário dessa geração votante. Quem anda neste mundo percebe o fenómeno. É que uma coisa é a juventude minoritária e politizada e outra a juventude tout court que também vota. Os da primeira poderão mostrar alguma simpatia pelo bloco ou pelo PC mas a maioria, pelos vistos, vota com menos arroubo profético.
Voltando á vaca fria: PS que vitória?
Também aqui se arrisca alguma hipótese. O tempo de Sócrates encurtou. E pode encurtar ainda mais se os resultados das autárquicas forem desagradáveis. E para ele, desagradável será, por exemplo, António Costa ganhar Lisboa. Tal vitória ungi-lo-ia como sucessor, à semelhança de Sampaio, como recordarão. Costa não tem sobre si as hipotecas contraídas por este governo, saiu dele a tempo, polemicou o quantum satis com alguns ministros para mostrar que não é um yes-man e, com os limites que se conhecem, tentou e conseguiu uma mini-frente de esquerda na lista para a Câmara. Basta-lhe que Carmona embarace Santana Lopes e que alguns eleitores indecisos mas genericamente à esquerda votem útil. Aí têm um líder para o próximo PS, pronto a servir. Novamente alguém achará que a actual direcção do PS quer perder Lisboa. Não disse isso nem sequer o penso mas no actual quadro, a emergência de um sólido vendedor não conotado com os desaires dos últimos tempos, tem, queira-se ou não, esse efeito. Os militantes querem campeões, foram educados para os quererem, e a baça alegria que ontem nenhuma televisão conseguiu esconder, mostra-o abundantemente. Hoje duas respeitáveis senhoras numa mesa ao lado da minha perguntavam-se para que servia esta maioria. E obviamente rosnavam contra quem não transformou o significativo em confortável ou mesmo em absoluto. Amanhã, mais e mais farão a mesma pergunta.
D’Oliveira fecit
(este texto terminou de se escrever às 11.20 da manhã de hoje. Depois foi o que se viu: o habitual Passos Coelho apareceu –como se previa – e com a candura da inocência desvairada afirma que logo a seguir às autárquicas pede contas. Ora aqui está uma coisa que “ajuda” a campanha do PSD!...
Tiros no pé? No pé, na mão, no peito... e no que mais se lembrarem.)