Diário Político 131
Derrubar os minaretes...
Ninguém o previa, bem pelo contrário: os grandes partidos desde a esquerda aos conservadores, as organizações das confissões religiosas e um vasto leque de personalidades representativas da sociedade civil davam por certa a derrota da proposta.
Falo, evidentemente, do referendo suíço sobre a proibição dos minaretes. Quem quis pode assistir a declarações de todo o género de instâncias: culturais, politicas, económicas e sociais. Todos sem excepção preveniam os cidadãos da confederação do risco que uma medida tão emblemática poderia representar para a Suíça: queda de exportações; levantamento de depósitos nos bancos; acrescido risco para os investimentos suíços nos Estados muçulmanos; eventual nacionalização ou confisco de empresas suíças nesses mesmos (ou em alguns) países. Tudo isto sem falar no risco interno. Há várias centenas de milhares de emigrantes na suíça, muitos de confissão muçulmana e nada garante que entre eles não existam radicais ou simplesmente pessoas que entendam esta proibição como uma provocação infamante.
Todavia, convirá deixar de lado, sentimentos e indignações, queixumes sobre direitos humanos bem como a restante parafernália com que a boa consciência europeia se alimenta, e perguntar como é que 57% dos cidadãos suíços, mesmo avisados, mesmo condicionados pelas fidelidades partidárias, pelas organizações religiosas (que lá são importantes e respeitadas), resolvem assumir esta posição.
Não tenciono verter aqui quaisquer lágrimas, deslocadas, num ateu, pelos fiéis muçulmanos. Como nunca me impressionou demasiadamente o facto de as confissões cristãs, para nem referir a judaica, não terem direito de cidade na imensa maioria dos países muçulmanos. O Islão é exclusivista, sobretudo desde que, graças ao conflito israelo-palestiniano, se agudizaram as tenções no Médio Oriente. Isso, a guerra imbecil de Bush no Iraque, o despertar do chiismo iraniano, a ferocidade wahabita, as madrassas, a proliferação de movimentações radicais que atingem mesmo países tradicionalmente laicizados como a Indonésia ou a Turquia (que e dirigida por um partido islamista), tiveram como resultado um despertar ou um agudizar de manifestações xenófobo-religiosas de que a AlQaeda não é mais do que um epifenómeno.
Tenho como preocupação outras questões: como é que num pais altamente civilizado, cosmopolita, habituado á diversidade, com um passado de tolerância religiosa, conhecido e reconhecido, consegue haver uma diferença de 14% numa questão destas? Que é que a causou? Onde foi que não funcionaram os habituais dispositivos de prudência, de calculismo, de tolerância que ainda há pouco derrotaram uma outra proposta da extrema direita suíça num referendo?
Será que está, como penso, esgotada a via do multiculturalismo a outrance que uma esquerda anémica e acéfala e profundamente desligada do pulsar da cidade e das preocupações populares, defendeu sem argumentos que não fossem o da autoridade e o da irresponsabilidade?
Fala-se agora das novas regras que a Alemanha quer impor a todos quantos pretendem nela viver. Um comentador do Expresso achava indecente que se obrigassem os candidatos a trabalhar e viver na Alemanha a declarar por escrito que respeitariam um par de regras onde avultava o respeito pelas mulheres, o conhecimento da língua ou o respeito pelos direitos humanos. Parece que o dito sensível comentador acha que a ablação do clítoris, o uso da burka – e tudo o que isso implica de não reconhecimento da mulher – o recurso à charia devam ser valores a proteger pelo Estado alemão. E, por que não, a lapidação das adúlteras, os crimes de honra ou o corte das mãos dos ladrões? Ao fim e ao cabo, são valores culturais ancestrais, ungidos pela tradição e por uma interpretação restrita do Corão.
A populaça, os paisanos, os de baixo, não entende isto. Não percebe o valor do multiculturalismo, atribui a degradação das suas condições de vida aos emigrantes, irrita-se com os gangs dos subúrbios, com a violência gerada por eles e pelas condições de vida onde se alojam. Espanta-se que as leis da república não se apliquem a eles, e que lhes sejam perdoadas, a título de compreensão civilizacional, actuações que foram educados a condenar.
Neste momento, nas televisões suíças reina a confusão. A conselheira federal encarregada dos negócios estrangeiros diz-se triste, chocada, lamenta “as amálgamas entre informação e falsificação” e tenta enviar aos países muçulmanos uma mensagem apaziguadora. Culpa a crise económica mas não parece perceber que tudo isso, esses argumentos, deixam em aberto a discussão. Lembre-se que na Suíça há apenas quatro (entre duzentas) mesquitas com minarete, aliás mudos porquanto não são sequer usados pelo muezzin para chamar os fieis à oração. Lembre-se, igualmente, que não se conhecem especiais manifestações de zelo religioso entre os cerca de quatrocentos mil muçulmanos residentes. E lembre-se finalmente que houve uma mobilização excepcional de votantes. Há anos que não se via uma tão grande presença nas urnas, o que torna mais impressionante a decisão.
Estou a ouvir novamente a “ministra” dos Negócios Estrangeiros. A senhora está perdida e não consegue dizer mais do que “houve manipulação das informações e das informações”. Convenhamos que é pouco e que é alarmante. O resto dos conselheiros federais alinha pelo mesmo diapasão. Estão tristes, compreende-se, envergonhados, idem, e assustados coisa que ainda se compreende melhor.
Não tenho competência ( e ainda menos interesse ou vontade) para dar lições. Porém, não resisto a pensar que conviria rever um par de ideias sobre o modo como concebemos o outro, o estrangeiro. E sobre o modo como o desresponsabilizamos. Não é possível criar comunidades emigrantes integradas sobre outro sinal que não seja o respeito pela constituição do país que acolhe. E isso implica, obviamente, a recusa de tradições que colidam frontalmente com as aquisições civilizacionais que tanto custaram a impor-se na Europa e no Ocidente. O respeito pelo outro só existe se houver respeito pelo que é nosso. E que custou séculos de sangue e de revoluções a conseguir.