Diário político 136
A ver se nos entendemos...
Todos os regimes precisam de justificação. E de celebrações. Portugal não foge à regra e também não é por isso que o gato vai às filhoses. convirá porém, justificar o justificável e celebrar com tento e bom senso. Quando há algum tempo se começou a falar do centenário da República, fui assaltado por um receio. Lembrei-me, não sei porquê, dos famosos “centenários” (1140, 1640 e 1940) a que não tive a honra de assistir por uma razão simples mas definitiva: ainda não nascera. Tenho, todavia, uma copiosa documentação dessas festividades e isso me chegava para justificar os meus receios quanto ás festas “republicanas”. Quando soube que tudo começaria pela glorificação do 31 de Janeiro (a que pomposa mas tolamente se chama “revolução”) fiquei esclarecido. O 31 foi um pronunciamento, sem pés nem cabeça, uma imprudência sem justificação e uma derrota previsível. Nem o Partido Republicano defendeu aquilo. Uma dúzia de mortos, uns centos de presos, algumas poucas condenações para um fogacho que durou, se não erro, três horas.
Mas deixemos a pobre e deslavada efeméride e vamos às celebrações. Hoje o jornal “Público” trazia duas largas páginas sobre um primeiro balanço da “República” (a de 1910-1926). Recolhia as impressões de um punhado de historiadores, dos mais em vista, sobre o período. Descontando, desde logo, Rui Ramos que desafina do coro geral de louvores babados mas que não se contém e acha que os primeiros anos do regime foram obra da extrema esquerda jacobina, o que me parece manifesto exagero, os restantes depoentes lá dizem que sim e que não. Ora vejamos o lado do não porque, como se verá o sim limita-se a bem pouco. Toda a gente condena a violência da perseguição à Igreja (e como poderia ser de outra forma?) ou o reinado de terror das “milícias populares que, às ordens do Partido Republicano (“Democrático”) perseguiam com firmeza todo e qualquer opositor a Afonso Costa.
Com a excepção de Amadeu Carvalho Homem, todos criticam a exiguidade do corpo eleitoral, a falsidade do sufrágio universal, limitado a uma meia dúzia de burgueses das cidades, afastando não só as mulheres mas a maioria esmagadora dos homens por analfabetismo ou falta de recursos. Só ACH, segundo o Público acha que o regime republicano garante o sufrágio universal (mas não aquele regime de 1910-1926, supõe-se). E só ele acha que a entrada na guerra foi um sinal de colaboração com as potencias democráticas. Não sei onde meterá o desastre que foi essa intervenção, a impreparação das tropas mandadas para o matadouro, o desprezo a que foram votadas, para não falar de um outro sinal bem preocupante (foram para a guerra apenas os que se não puderam escapar, coisa aliás evidente pelo exemplo a contrario de Jaime Cortesão e mais alguns republicanos notórios que assumiram a causa do combate e marcharam para os campos da Flandres. O resto, nem piou e ficou a guardar a retaguarda...).
Manuel Loff que critica Rui Ramos pela sua tese anti Republica, não deixa de acentuar que a Republica “não fez as reformas sociais e económicas nem a reforma agrária, não promoveu um desenvolvimento industrial significativo e não mudou a natureza das relações sociais em Portugal”. Reconhece aliás que “a entrada na guerra agravou a situação económica”. E critica a politica anti-operária dos dirigentes da 1ª Republica, referindo as deportações de sindicalistas para as colónias. Fernando Rosas, admirando as figuras da 1º República e sobretudo os que resistiram ao Estado Novo refere que a Republica “não democratizou o país”, alem de cometer os dois erros fatais: atacar a Igreja e meter o país na guerra.
No texto em questão, fala-se na “mobilização do proletariado fabril” convenhamos que a coisa há-de ser lida com mais cuidado. As organizações sindicais nunca deram um aval pleno à agitação republicana. Os socialistas criticavam a base social republicana, mais lumpen por um lado e pequeno burguesa por outro. A tropa de choque republicana era constituída por o que Fernando Rosas chama a “plebe urbana de Lisboa , artesãos, pequenos comerciantes, caixeiros, lojistas, modestos funcionários públicos, estudantes, marinheiros, cabos e sargentos operários oficinais e fabris”.
As centrais sindicais depressa entraram em confronto directo com o regime do Partido Democrático e, sinal claro, mantiveram-se impassíveis quando ele caiu.
Boa parte do imenso apoio que a Ditadura do Estado Novo teve deve-se justamente ao rosário de falhanços da 1ª República. Falhanços esses que tiveram outro sinal evidente: o desastre das intentonas contra o Estado Novo. O “reviralho” conseguiu organizar uma boa dúzia de conspirações e levantamentos. Todos faliram com relativa rapidez não só por que reflectiam as divisões entre os caciques do deposto regime mas sobretudo a sua inata e indelével desorganização, a sua incapacidade em mobilizar as massas populares, o seu atávico conservadorismo.
Salva-se desses dezasseis anos de fraca memoria um punhado de leis e medidas desde o divórcio à educação que, em certos caso, foram posteriormente amputadas pelo Estado Novo.
Não deixa de ser curiosa esta súbita febre comemorativa de uma época que pouco ou nada trouxe ao pais e muito menos à enorme massa dos seus habitantes. E digo habitantes, porque não foi a 1ª República quem lhes deu o estatuto de cidadãos, a não ser no papel. O que é escasso. Demasiadamente escasso.
Não se confunda, contudo, o sentido do que vem de ser dito. A monarquia em 1910 não existia. Estava morta e à espera de uma certidão de óbito. Que lhe foi passada por um grupo de revoltosos entrincheirados na Rotunda, ás ordens de Machado Santos (que seria assassinado por pistoleiros a soldo sabe-se lá de quem). Ainda hoje há quem se espante com o êxito da revolta. Parece que a ninguém ocorre que a tropa monárquica nem se mexeu. Mais tarde Paiva Couceiro nas suas correrias mobilizou mais gente e mais aguerrida do que os inexistentes defensores do trono de D Manuel II.
E em 1926 repetiu-se o sainete. Não houve um tiro, um gesto, um desafio contra a marcha pacífica de Gomes da Costa. A 1ª República morria num silencioso chilique, atacada por todos lados e desprezada pela inteligentsia.
por d'Oliveira, republicano não praticante