Estes dias que passam 197
Quem mata uma pessoa mata todas as pessoas
Permitam os leitores que o meu título modifique uma sentença hebraica que, segundo creio, se aplica à noção de “justo entre as nações”. De facto, o texto certo é “quem salva um homem salva todos os homens”, se é que cito bem.
Do ponto de vista ético ambas as frases parecem certas. Uma condena o crime, outra exalta a misericórdia. E, aliás, completam-se. Os justos que salvaram os judeus (e os outros todos: comunistas, socialistas, ciganos, mestiços negros das antigas colónias africanas, homossexuais, “untermenschen” – polacos, russos eslavos do sul -) opuseram-se com risco da própria vida aos executores nazis, aos seus cúmplices de todas as nacionalidades (que houve nazis e assimilados em toda a Europa, é bom não o esquecer) e finalmente venceram. Uma amarga vitória, uma vitória sob a sombra de milhões de mortos, mas uma vitória.
Uma vitória porque hoje, por exemplo, podemos falar de Auschwitz com objectividade mesmo se o coração nos pedir indignação, raiva, vingança. Falar de Auschwitz, sessenta anos depois da libertação do campo por tropas soviéticas, significa que não esquecemos. Significa que o peso desses anos terríveis continua a pairar sobre a consciência humana, a alertá-la, a mobilizá-la.
Dito isto, convirá, outra vez, e outra e outra, todas quantas forem necessárias, dizer que se é verdade, terrível verdade, que os judeus foram o alvo principal e absolutamente maioritário das campanhas de extermínio, não menos certo é que outros grupos sofreram perdas atrozes e foram também eles alvo da ferocidade dos nazis (e dos seus aliados). E isto, esta modesta verdade, não pode ser postergada, minimizada apenas por que a tónica anti-semita atingiu foros de fanatismo intoleráveis.
Um bispo polaco foi duramente criticado por ter dito mais ou menos a mesma coisa. É provável que não tenha usado as melhores expressões, ou que tenha insistido no poder da comunidade judaica americana e na sua capacidade para sustentar campanhas de denúncia na imprensa. Mesmo assim, no fundo, o bispo tem razão. Houve mais mortos, muitos mais mortos e todos os mortos merecem ser recordados. A tragédia judaica não fica diminuída se dissermos isto, se dissermos a verdade.
É provável quase certo, aliás, que a única campanha de extermínio sistemática tenha sido a levada a cabo contra as comunidades judaicas. Todavia, a perseguição dos ciganos assumiu características muito semelhantes, mesmo que não tenha sido alvo do mesmo requinte de preparação, não tenha mobilizado os mesmos impressionantes recursos humanos e logísticos nem suscitado o mesmo catálogo de justificações. Mas os ciganos sobreviventes aí estão para nos lembrar que devem muito à sua peculiar forma de viver, a pertinaz e tradicional desconfiança que sentem por qualquer autoridade, e a uma cultura de itinerância furtiva que em muito os ajudou a escapar ao cerco dos assassinos.
Mesmo assim, os grupos minoritários (que á escala de milhões de pessoas são sempre enormes) merecem ser citados. Porque foram vítimas. E porque apagá-los da história ou convertê-los em mero adereço de um cenário infame não torna mais exemplar a Shoa.