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mcr à solta na Torre do Tombo
Pois é, queridas leitorinhas, fui pelos meus processos políticos (ou pelos processos com que me quiseram armadilhar) à Torre do Tombo. Devo dizer que fiquei satisfeito com o serviço prestado e com a qualidade dos funcionários com que contactei.
Já o mesmo não posso dizer do alvo das minhas pesquisas. De facto por lá jaziam cinco processos, um boletim e dois RGP. Sabia de um outro que está na minha mão, e que foi saqueado na Delegação da PIDE do Porto pelos meus amigos que quiseram entregar-mo em mão. Será brevemente entregue à Torre do Tombo.
E aqui começa a incongruência: como é que um processo iniciado em 71/72 no Porto não tinha a competente cópia em Lisboa? E, já agora, como é que nos elementos de informação constantes nesse processo faltam notícias de outros processos anteriores?
A PIDE, já aqui o disse mais de uma vez, era uma organização tentacular mas muito mal estruturada. Aquilo era um labirinto onde se perdiam peças processuais importantes mas nunca as pequenas se iniciais. Um exemplo: no ano de 1961, um punhado de estudantes enviou à direcção do jornal “O Templário” (de Tomar) um manifesto protestando contra a suspensão do seu suplemento literário “Labareda”. Nesse documento pueril e inocente, avisava-se a direcção do jornaleco, que “o povo lhes pediria contas pelo seu acto censório e anti-cultural”. Nada, pois, de importante. Ora ocorre que, em todos os processos que consultei e mandei digitalizar, esta facécia está citada, com forte acompanhamento de fotografia, informações sobre a morada etc.
Por algumas vezes fui intimado a ir à Delegação da PIDE de Coimbra onde me fizeram pequenos interrogatórios que, se bem recordo terão sido reduzidos a escrito. Que é deles?
O mesmo ocorre aliás com uma busca e consecutiva intimação para a PIDE do Porto? Onde está?
De uma prisão em 1969 há uma pequeníssima menção onde se explica que depois de mais de uma centena e meia de preopinantes, estive preso à ordem da Polícia Judiciária (que foi o organismo designado para reprimir a greve académica de 1969) mas nada mais consta.
Todavia num outro processo é referido o meu nome e é reproduzido com assinalável exactidão uma discursata minha numa Assembleia Magna. E as outras?
De uma prisão em 1971 (que é referida) só há notícia das datas de entrada e de saída da cadeia de Caxias. Onde estarão os autos de perguntas, a ordem de prisão, as informações que a motivaram, a transferência de Coimbra para Lisboa, o auto de busca em minha casa, o auto de apreensão de quase uma centena de livros e documentos etc, etc.?
Num processo de 1973 (em meu poder) referem-se diversas recolhas de informações sobre a minha pobre pessoa. Por onde andam já não digo as informações da bufaria civil que nos traía, mas, pelo menos, o restante tipo de conclusões do agente ou da brigada onde elas terão forçosamente sido recolhidas?
Sei que diversas reuniões clandestinas da malta da Centelha foram delatadas por uma pessoa que a elas assistiu na qualidade de familiar de um dos membros da editora. Onde pára isso, o respectivo processo e as restantes averiguações a latere?
Claro que há várias respostas possíveis: uma é que, em vários casos, é outro o titular do processo, e a documentação a mim respeitante (actividades e restante documentação) não foi ainda - ou nunca será? - transferidqas para os diversos processos individuais em meu nome. Outra, igualmente provável, é que no caso de actividades ocorridas em Coimbra (Editora Centelha, Associação Académica) haja dossiers próprios e que pela sua especificidade não tenham sido incluídos nas centenas de páginas que conferi.
A terceira (de que eu mesmo sou involuntária testemunha) é a do roubo de processo a esmo que ocorreu sobretudo em Lisboa.
Há também que referir que no seu último dia, a PIDE destruiu milhares de ficheiros (sobretudo de informadores e materiais conexos). E teria também destruído processos recentes ainda em fase investigativa.
Também é verdade que eu mesmo me esqueci de ler um processo cuja requisição de consulta fora entretanto mandada corrigir. Fica para a próxima se a houver.
Finalmente, quando se disponibilizou ao público o acervo da PIDE pode não ter havido um cruzamento de dados completo e eficaz fazendo ficar esquecidos, na montanha de processos, muitos dados que deveriam ter merecido cota e referenciados a um nome. Será assim?
Eu, como já disse, sempre entendi que grande parte do êxito da PIDE derivava de confissões extorquidas aos detidos fossem elas “confirmações” de outras denúncias ou testemunhos mais graves (que os houve e muitos). O trabalho de investigação propriamente dito era claramente rotineiro, vivia do acaso e da sorte (de bambúrrios) e o serviço de documentação e apoio só era eficaz no caso do peixe graúdo. E mesmo assim...
Aliás, posso também testemunhar isso, sobretudo no que toca às suspeitas que levaram à minha detenção de 1971: a PIDE pela voz grosseira e pouco eficaz de um certo inspector Tinoco, queria à viva força relacionar-me com as actividades políticas desenvolvidas em Paris por um amigo meu com quem eu me encontrara e jantara por duas vezes. Justamente porque não tinha relações políticas de qualquer aspecto com ele não se tomaram precauções conspirativas nenhumas. Pois foi isso que, ao fim de muitos e penosos dias de “estátua” e “sono”, me foi atirado à cara. Tiro na água! Respirei aliviado e a partir daí fui atirado para uma enxovia de Caxias (mas com vista para uma nesga de mar e outro tanto de auto-estrada o que já me parecia um bálsamo) onde continuei esquecido de Deus e dos homens.
Por onde param mais estas sombras do meu passado?
É verdade que, fizemos, quase todos, sempre, o possível por ocultar dos olhos intrometidos da polícia e dos seus miseráveis colaboradores tudo o que se relacionava com a nossa actividade política clandestina. Estas falhas que agora verifico podem ser a prova evidente dos nossos cuidados, da nossa diligência e, por que não?, da nossa inteligência. Mas, mesmo assim...
Refira-se também uma lei celerada que, no intuito de proteger direitos humanos, “expurga” meticulosamente toda e qualquer referencia a informadores ou, na sua impossibilidade, pura e simplesmente retira do processo a documentação que poderia identificar o “bufo”. Ou seja, essa lei protege os bandidos e consagra o dever dos perseguidos políticos continuarem sem o saber a frequentar os seus delatores!
Daqui a dois três meses terei em meu poder, devidamente digitalizados, mais um par de farrapos do meu passado. Será então altura de com mais cuidado e tempo, tentar perceber um pouco como era o monstro das mil cabeças que mitificámos e que provavelmente nos mistificou.
A latere: o “boletim” a que acima faço referência diz respeito a meu pai e ao fim de três paginas conclui que “nada consta em desabono” do excelente senhor. Pudera! Para desabono já lhe chegava ter os dois filhos perseguidos, fichados e, no caso do meu irmão, julgados em Tribunal Plenário e condenado a dois anos de prisão pena que foi suspensa embora ele já tivesse passado um ano à espera de julgamento.
E uma curiosidade: nesse boletim consta um nome como de alguém que o consultou. Não reparei se isso ocorre com os restantes documentos que já referi. Que é que a Lúcia P. quereria de mim, de nós ou do excelente médico MHCR ? No improvável caso de esta nota lhe chegar basta perguntar-me: à polícia e aos costumes disse nada mas a ela direi tudo.