Enganos de Júdice
Corre pelo canal temático “história” uma espécie de história da crise académica de 1969. E sublinho espécie porquanto, tirada a voz off que pouco ou nada adianta, são participantes três ex-membros da Direcção Geral da AAC, um ex-adversário do movimento estudantil, José Miguel Júdice (com discreta actuação em 69) uma historiadora, Manuela Cruzeiro e Rui Namorado, um dos mais destacados elementos do Conselho de Repúblicas e do “conge” (órgão informal que reunia os que “congeminavam” antes, durante e depois da crise.
Deixando para ulterior discussão o facto de não se ver representada nenhuma das restantes tendências da esquerda estudantil coimbrã, pasmemo-nos com Júdice.
Elevado a porta voz da direita estudantil coimbrã, JM LJúdice deixa três notas todas surpreendentes:
Em primeiro lugar, afirma que a “sua tendência” era a porta-voz dos estudantes pobres que seriam rudemente prejudicados com a greve, dado o efeito que um ano perdido teria nas economias familiares deles e remetendo para as consequências militares a que se arriscavam no caso dos chumbos, isto é para a eventual incorporação no Exército por castigo ou apenas por não terem hipótese de adiar a prestação do serviço militar, concedida até um certo ponto pelas entidades que geriam os recursos humanos e a preparação de oficiais milicianos.
Nada mais falso. A direita coimbrã não era a campeã dos estudantes mais desabonados nem sequer nisso assentava algum dos seus eixos principais de afirmação. Não vale a pena questionar isto, basta remeter os leitores para o interessante (mas parcial) livro de Ricardo Marchi “Império Nação Revolução – as direitas radicais portuguesas no fim do Estado Novo (1959-1974)” (Texto ed., 2009) onde JMJ também aparece obviamente.
A segunda extraordinária descoberta de Júdice é que houve 25% de idas a exame na primeira época. Os restantes elementos citados contrapõem uns mais modestos 15%.
Esta diferença (25 ou 15 por cento) acaba por ser pouco expressiva sobretudo porque o simples facto de haver uma greve maioritária aos exames vitoriosa era uma novidade absoluta e inimaginável no Portugal dos anos sessenta. Se acrescentarmos que esta greve também venceu nas restantes frentes (levantamento das suspensões, não realização de processos disciplinares, regresso a Coimbra de todos os estudantes chamados para o serviço militar, épocas especiais de exames, substituição do Reitor, demissão do Ministro da Educação, libertação de todos os estudantes presos e arquivamento do respectivo processo judicial (coisa bem importante dado haver cerca de trezentos presumíveis arguidos), reabertura da Associação Académica) mais e mais se conclui que a percentagem de adesão à greve acaba por ser pouco importante (sempre e quando se refiram os números acima apontados).
A terceira questão que o actual democrata JM Júdice avança é risível e obscenamente falsa. Alega Júdice que teria defendido nessa época a ideia de que “faria greve no caso dos estudantes entretanto suspensos não poderem ter mais tarde uma época especial de exames para recuperar do tempo da suspensão”.
Júdice parece esquecer-se que a realidade de Maio de 69 era uma e só uma: havia estudantes suspensos, uma associação de estudantes em risco de encerrar, preparavam-se afanosamente processos disciplinares, a pide andava na rua à caça e o ministro Hermano Saraiva eructava impropérios na televisão. Nada, nem ninguém, ministro incluído, poderia garantir, sequer prometer pensar, que em data ulterior e a determinar superiormente haveria exames para os estudantes mais expostos e preventivamente suspensos da universidade. Mais: a história recente desses longos e escuros anos provava exactamente o contrário, estava recheada de suspensões e expulsões de dirigentes estudantis, de prisões e exílios forçados de mobilizações para África e de colocações de jovens cadetes nos batalhões disciplinares, como soldados rasos. Júdice, entretanto, inspirado pela Senhora de Fátima ou mais modestamente pela santinha da Ladeira, vem quarenta anos depois jogar no esquecimento ou na boa vontade de antigos adversários.
Entendi deixar para mais tarde uma eventual critica de algumas polémicas declarações dos restantes participantes neste documebtário. Com duas excepções,porém.
A excelente historiadora Manuela Cruzeiro afirma pasmosamente que com a incorporação de meia centena de dirigentes ou activistas, o movimento estudantil ficara “decapitado” (sic). Se isso se tivesse verificado como é que depois ocorreram todos os sucessos que agora permitem afirmar a estrondosa vitória estudantil? Acaso, a luta coimbrã esmoreceu após a chamada a fileiras daqueles estudantes? Ou foi justamente a persistência da luta dos que ficaram que provou ao Governo a ingovernabilidade da massa estudantil e o fez recuar? Ou, á semelhança de Júdice, acredita em milagres das rosas?
Um segundo ponto também estranho pode extrair-se de uma incompreensível comparação do movimento coimbrão com o Maio de 68 francês: para Castro os estudantes franceses queriam o “poder” (!!!) enquanto por cá e mais modestamente nos ficávamos por uma nesga de liberdade. Eu não sei se o francês de Osvaldo ia, na época mais além do bonjour e das variantes do plural de bijou, chou et caillou, mas ignorar por exemplo Charlety ou os apelos ao PC e a Mendes. parece-me prova de fortíssimo esquecimento. Não há nos numerosos livros então publicados por tudo quanto era gente no “mouvement” (de Geismar a Krivine, de Weber a Cohn-Bendit, sem esquecer de referir a impressionante -e volumosa! - “Generation” de Hamon e Rothman) um único capítulo que conforte a penosa tese de Castro. A menos que confunda o apelo á revolução com a ânsia de poder, mas isso é já com ele.
Agora que se celebra o 25 de Abril já com alguma distância começa a surdir aqui e ali uma outra história menos oficial mas muito imaginativa que vai tecendo novas lendas. A realidade, a crua realidade morre ente o esquecimento de alguns, a inércia de muitos, e a revisão dos mais interessados.
d'Oliveira fecit 25.A.10