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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

"Havemos de ir a Viana!"

Castro, 31.08.10



 

São raras as vezes neste blog que eu me sinto em posição tão privilegiada para discutir um tema como o das SCUT's. Não porque me afecte particularmente, mas porque tenho um conhecimento particular das implicações de taxar a utilização dessas auto-estradas, em particular a A28 (Porto-Viana).

Começo por dizer que já vivi no Porto e em Vila do Conde e, não menos importante, a minha companheira é de Viana do Castelo. Vivi inclusive em Vila do Conde antes e depois da construção da A28, presenciei em primeira mão a influência que esta auto-estrada teve na região e devo dizer que não foi pequena. Para perceberem os meus argumentos, penso ser relevante referir mais dois aspectos: primeiro já não moro na zona de influência dessa auto-estrada; e segundo, apesar de ter carta, sou um acérrimo defensor dos transportes públicos.

 

Pode parecer de fácil dedução, perante estes factos, que sou a favor das portagens, no entanto, não sou e são tantos os motivos que nem sei por onde começar. Talvez seja mais fácil começar distante do problema, usando a minha actual situação. Actualmente sou morador de uma pequena grande cidade chamada Guimarães, que por muito distante que pareça do problema é um grande exemplo de vários argumentos contra as portagens. Guimarães é uma cidade fantástica pois, apesar de ter muita da oferta a vários níveis de uma grande cidade, dispensa, sem nenhum constrangimento, a azáfama exagerada e a devoção radical de uma vida em volta de um relógio. Propaganda à parte, um dos motivos da minha paixão por esta cidade parte da vantagem de não estar constantemente dependente de transportes, sejam eles públicos ou particulares. Consegue-se  facilmente atravessar a zona central da cidade em menos de 40 minutos a pé, o meu transporte favorito. Quando tenho que me deslocar ao Porto ou Braga faço-o facilmente de comboio ou autocarro (este último em 50 minutos e o primeiro em mais de 1h30m). No entanto, Guimarães é o pior exemplo no que toca a auto-estradas e as suas alternativas. Senão vejamos, Guimarães é circundada por quatro auto-estradas, sendo os destinos Chaves, Póvoa de Varzim, Braga e Porto. Usemos a auto-estrada para o Porto como exemplo: se eu optar pela utilização da autoestrada demoro menos de 30 minutos, se contabilizar ida e volta com gasolina fica por volta dos 18 euros, sendo 5.4€ de portagens. Usando a "alternativa", a nacional, demoro 1h30m num dia bom de verão sem trânsito, o que, num dia normal de trabalho em hora de ponta ultrapassa, numa estimativa simpática, as duas horas com um custo de 15€ de combustível. Ora bem, não sei qual é a vossa definição de alternativa, na minha perspectiva a nacional não o é, muito menos para uma distância de 50km. Sim, leram bem, entre o Porto e Guimarães vão apenas 50km, que pela nacional demora mais de duas horas.

 

Tudo isto para desmontar um dos principais "argumentos" de que só vai pela autoestrada quem quer e não quem precisa, o que não é verdadeiro pois, se assim fosse, o sector privado não estaria interessado em entrar no negócio das "SCUT's". O segundo argumento, e para mim o mais estapafúrdio, é o de que o automóvel é um "luxo" e assim sendo, se deve introduzir a lógica do "utilizador-pagador". Começando pelo fim, devo dizer que sempre que é evocado este termo "utilizador-pagador", me dá uma certa comichão e irritação que se começa a tornar difícil de "coçar". À vista desarmada, esta lógica até parece ter sentido, utiliza logo paga, nada mais simples e comum no nosso dia-a-dia, a simplicidade com que esta regra nos é apresentada é no mínimo chocante, e no entanto, é com essa mesma simplicidade que se engana muita pobre gente por esse país fora. Como é que uma pessoa cumpridora dos seus impostos ainda tem que pagar saúde e propinas? Bem, isso é assunto para nunca mais me calar.Podem dizer que não se pode comparar educação e saúde com auto-estradas, é óbvio, e não tento fazê-lo, mas, como escrevia à pouco, querem fazer parecer o contrário, que o carro é um luxo. Numa sociedade que só investiu em estradas e perto de zero em transportes públicos, desculpem a minha firmeza, mas é hipócrita afirmar que o carro é um luxo. Não vou ao extremo de afirmar que é um bem de primeira necessidade, mas é um mal necessário, muito necessário para muita boa gente com pouco dinheiro.

 

Outro argumento, que ouço recorrentemente, é o de "mas se eu não utilizo porque tenho que pagar?", bem, isto também era tema para muitas horas de conversa, mas, podemos começar por dizer que, mesmo que nunca tenha utilizado o sistema de saúde ou de educação, isso o tira de contribuir, podemos dizer, mais uma vez, que não se pode comparar estes sistemas com auto-estradas, concordo, mas quem usa esse argumento, mais uma vez, ou é hipócrita ou ignorante, porque, por exemplo, eu que moro em Guimarães e que raramente uso carro, saio prejudicado em muitos aspectos com as portagens. Como? Podia enumerar vários pontos mas, ficando-me pelos mais relevantes, quando uso transportes públicos rodoviários estou a "pagar" portagens, quando compro o que quer que seja aqui em Guimarães, desde o pão até ao peixe ou uma peça de roupa, estou a pagar portagens. Quem sai prejudicado? Quem está na periferia dos grandes centros do país! Até a minha vizinha que pode muito bem nunca ter saido de Guimarães está a "pagar" portagens! Tudo isto me parece um círculo vicioso, em que se tornam dependentes das estradas as pessoas e as empresas e depois taxa-se!

 

Gostava de terminar com uma questão inocente, porque não se ouve, nem um político, questionar o porquê de não ser o Governo a explorar as SCUT's? Eu sei que, neste momento, o governo está dependente de contratos já assinados, mas porque é que chegamos a este ponto?

Estes dias que passam 210

d'oliveira, 25.08.10

Sinais de fim de Verão?

 

Cai uma morrinha ligeira que não molha mas incomoda. Incomoda pouco, convenhamos. O Verão tem sido violento (ah o filme belíssimo de Zurlini!...) e os grandes calores pediam este intervalo. Agora que escrevi “morrinha” deu-me para pensar que, em galego, morrinha é uma espécie de saudade, de nostalgia. Como se esta vaga e húmida névoa quisesse recordar o facto das terras d’além Minho serem sempre verdes e chuvosas. Aliás, um dos melhores romances de Cela (***) uma Galiza onde a chuva não para por mor de um crime não castigado. Não será a verdadeiraexplicação científica da pluviosidade galega mas é, decerto, a mais interessante teoria sobre o assunto.

De todo o modo, o Verão está a começar as despedidas. Antigamente durava até fins de Setembro, primeira semana de Outubro . Até ao começo das aulas, para ser mais preciso. Agora, as aulas começam muito mais cedo e os pais, tendo, uma vez sem exemplo, de adaptar-se aos ritmos dos filhos concentram em Agosto todo o seu Verão. As férias (de Verão se não todas as férias) são Agosto e pouco mais.

Antes que alguém me acuse de saudosismo, devo dizer que sei perfeitamente que as férias de antes eram gozadas por uma minoria. O que não impede que tivessem encanto, provavelmente, no meu caso pelo menos, o encanto da infância e da juventude. É que, agora, o mínimo deslize sobre o passado não escapa ao crivo da critica impiedosa de uns tantos que cheiram, respiram, pressentem, adivinham reaccionarismo em tudo o que se escreve sobre o pré 25 A.

Num país atrasado e conservador como Portugal é fácil este exercício. E a ele se dão com jucunda ferocidade conservadores de direita e sobretudo de esquerda. Uns porque não admitem o seu fraco exercício de liderança, outros porque julgam inaceitável o escrutínio às suas poucas, e pouco interessantes, propostas de “mudar isto”. Há um deficit de esquerda capaz e moderna, de esquerda não fanatizada, de esquerda não ignorante, nessas presunçosas criaturas que choram o jacobinismo republicano, que não perceberam quanto ajudaram a enterrar a hipótese revolucionária e modernizadora que poderia ter existido depois de Abril. Alimentados ideologicamente pelo livrinho vermelho, pela senhora Marta Harnecker e pelos slogans simplistas da 5ª Divisão e dos grupúsculos imberbes nascidos da última chuva abrilista, não perceberam em que país estavam, nem o que, de facto, o “povo” com que enchiam a boquinha inocente onde confundiam a pequena burguesia com o proletariado e a vanguarda com a retaguarda.

Duraram, também eles, um Verão vagamente violento sem a Eleanora Rossi Drago e o Jean Louis Trintignant. Julgaram-se em 1917, como se o tempo tivesse parado no ataque ao Palácio de Inverno e não tivesse havido mais nada depois. Nem a guerra de Espanha, nem a Hungria, nem Praga, nem o “Muro”, nem tudo resto, desde a “revo. cul. na China Pop” até aos cemitérios de Pnom Penh.

Deixemos, todavia, essas etéreas criaturinhas em seu pascigo e voltemos ao Verão. Arde a floresta e, com ela, muita da nossa eventual riqueza. Parece que, neste capítulo dos fogos florestais, existirá mesmo um paradoxo português: em relação à Espanha, à França e à Itália (não sei onde parará a Grécia) a incidência de fogos por cá é incomensuravelmente mais forte.

Confessando-me um “urbanita” viciado e vicioso que não tem qualquer nostalgia do campo, sempre adianto que a floresta arderá mais por abandono das terras, desertificação, florestação à base de pinheiro e (sobretudo) de eucalipto, desinteresse pelas velhas espécies indígenas, incapacidade de gestão rentável das pequenas propriedades perdidas nas serranias, do que pelos incendiários. Um incendiário é sempre útil nestas coisas mas cheira-me que há incendiários a mais nas acusações de fogo posto. Isto para não falar na absurda negligência de uns quantos, no foguetório das milhentas festas que se celebram em Agosto e em mais um par de razões que que também poderão estar na origem de algum incêndio. Fala-se muito (e bem) na falta de limpeza da floresta. Dantes, nos difíceis anos da persistente pobreza, as populações aproveitavam o mato para lenha, para fazer as camas do gado, limpando (e chegando a pagar por isso) a floresta. Agora que já não há população rural (ou quase) que já não se uas lenha vegetal e tão pouco se vai por mato para a cama do gado, é o que se vê: a floresta cresce no meio de um rastilho incontrolável. E arde. Direi mesmo que as medidas de combate a isto irão sempre crescendo em meios, homens e custos justamente porque aumentam ou mantêm-se os vectores sócio económicos acima apontados.

O jornal traz uma notícia interessante: parece que há o projecto de reintroduzir cabras nas zonas transfronteiriças da Guarda e de Bragança e das capitais de província espanholas do outro lado da fronteira. De facto, as cabras comem tudo e cento e cinquenta mil cabras comerão seguramente muito. Por cerca de cinquenta milhões de euros (contemplando a criação directa de mais de quinhentos empregos) parece ser uma ideia com pés para andar. E reanimadora da economia de zonas interiores frágeis e cada vez mais desprotegidas. Se, como parece, os governos espanhol e português já deram o seu aval, estamos todos de parabéns, mesmo os do litoral que abominam o campo. Por uma vez sem exemplo, eis-me a dar os parabéns ao senhor Primeiro Ministro. Sub conditione, claro: que o projecto avance.

E que os amadores de chanfana, de queijo da Serra ou do meramente cabreiro, me acompanhem neste voto de bom vento e melhor casamento.

 

Colaborador(a) Precisa-se

JSC, 25.08.10

8h30 da manhã, a confeitaria está com muita gente para atender e a esplanada está repleta. Apenas uma funcionária a preparar torradas, meias de leite, cafés. A mesma funcionária a levar os pedidos para as mesas. Os clientes a protestarem ou a levantarem-se para irem ao balcão fazer os pedidos e trazerem as chávenas, os pratos com os bolos. Nas paredes, nas montras, letras gordas em  papel A4 pedem: Colaborador(a) precisa-se.

 

Dizem-me que há empresas a fechar segmentos de produção por falta de mão de obra. Dizem-me que em muitos cafés e restaurantes do litoral há falta de pessoal para trabalhar e que alguns fecharam mesmo, por não terem condições para atenderem o maior afluxo de clientes.

 

Passei a estar mais atento nas montras dos estabelecimentos e reparo que nos grandes centros se vê, em muitas montras, a tal folha A4 a pedir: Colaborador(a) precisa-se.

 

O que é que se passa? Será que o pessoal deixou de querer trabalhar? Ou será que o valor que se oferece não compensa a perda do RSI?

As mortes no asfalto

José Carlos Pereira, 24.08.10

A primeira página do “Jornal de Notícias” de hoje incomoda pelo pleno de tragédias que desvenda e pela (aparente) naturalidade com que já vamos tomando conhecimento deste contínuo desfilar de mortos e feridos nas estradas. 

 

Independentemente das razões concretas que motivam cada situação, acredito que a falta de preparação e de educação formal para o acto de conduzir é a principal causa da maioria dos acidentes.

É evidente que também há circunstâncias em que a má construção das vias e as deficientes condições de conservação e manutenção, a sinalização precária, o estado do tempo e outros factores imponderáveis estão na origem dos acidentes, mas a forma como “se está ao volante” é determinante. E isso começa a construir-se nos bancos da escola. Também na estrada, pagamos hoje o preço de termos uma sociedade com um reduzido nível educacional. Com os resultados conhecidos. 

Férias e provocações saudáveis

O meu olhar, 18.08.10

Estive de férias num local maravilhoso. É a quinta vez que lá vou e regresso sempre com vontade de voltar. São 30 kms de praia com um areal imenso e com água tépida e límpida. Grande parte da praia fica no Parque Nacional Doñana, um dos maiores e mais importantes da Europa e cuja visita recomendo vivamente.

Estas são as praias de eleição dos sevilhanos e quase não se vêem estrangeiros. A povoação, Matalascañas, transforma-se num grande centro urbano no Verão. É gente por todo o lado. O aspecto da praia mais central era invariavelmente este

 

 

 

Todavia, para os que não seguiam o carreiro habitual das formigas, como era o nosso caso, bastava andar alguns minutos e a praia que desfrutavam eram tranquila. Esta era a “nossa” praia.

 

É curiosa esta tendência que as pessoas têm de se amontoarem, andarem aos magotes, banharem-se num metro cúbico de água e acomodarem nos seus ouvidos milhares de gritos num só dia. Mais curioso ainda é quando têm a possibilidade, com um pequeno esforço saudável, de desfrutar de toda a tranquilidade que um areal de sonho, quase deserto, pode proporcionar. Claro que no caso, e tratando-se de espanhóis, há que ter em atenção que aquilo não eram idas à praia normais mas sim verdadeiras excursões tipo tribo, com  comodidades  “indispensáveis “ a acompanhar: cadeiras de todos os tamanhos e feitios, toldos, mesas , malas térmicas de diversos tamanhos e formatos, guarda sois e tudo o mais que se torna evidente para quem é espanhol e vai passar o dia todo na praia. Para nós, que temos hábitos simples, ou seja,  o saco com os livros, as toalhas, as raquetes de praia e o baralho de cartas. E já isto tinha que ser negociado entre os quatro para ver quem transportava o quê. Nos primeiros dias também levamos um tapa vento mas despertamos tanta curiosidade, dado se tratar de peça única por aquelas paragens, que optamos pela discrição de um anónimo guarda-sol.

O regresso a casa foi acompanhado de boa música. Uma das músicas fez-me pensar no jogo do Porto que tínhamos visto dias antes, pela Internet, num dos raros locais que dispunha dessa preciosidade. Já agora, também não havia nenhuma loja ou restaurante que tivesse pagamento por cartão multibanco. E lojas multibanco eram apenas duas. Isto para milhares de potenciais utilizadores. Um atraso de vida. A esse nível estamos a léguas dos espanhóis. Mas dizia eu  que uma música em especial me fez lembrar o jogo vitorioso do FCP e gozar com a antevisão do desenrolar do campeonato. E não adivinhava eu nessa altura qual seria o resultado do primeiro jogo do Benfica... Ora a música, como eventualmente já adivinharam, era esta:

 

 

 

(Aos benfiquistas, sportinguistas e outros adeptos cujas escolhas estão longe do azul as minhas desculpas pela provocação…)

 

 

Este regresso à civilização é de curta duração já que continuo de férias e volto a ausentar-me para longe de computadores. Por isso, até breve. Para quem está de férias o meu desejo que elas sejam EXCELENTES!

leitor (im)penitente 62

d'oliveira, 17.08.10

Sobre um documentário dedicado a Jorge de Sena

 

Tenho por aqui todos os livros de poesia de Jorge de Sena, e pelo menos dois de ficção, para não falar de vários volumes de ensaios. Julgo, pois, poder incluir-me entre os apreciadores do poeta e, por isso mesmo, poder julgar se Sena foi ou não injustiçado pelo seu pais e, mais importante, porque mais sério e sentido, pelos portugueses que lêem.

Acontece que há por aí uma ideia peregrina que transforma Sena num perseguido, num incompreendido, num injustiçado, numa vítima de poderes ocultos, de máfias literárias e/ou intelectuais que lhe não perdoariam a grandeza, o à vontade e a independência.

Cita-se sempre o facto de, apesar de ter sido professor catedrático no Brasil e depois numa universidade californiana, a universidade portuguesa não o ter querido aceitar no seu seio. Ao que sei, apenas a Faculdade de Letras de Lisboa terá rejeitado a sua inclusão. Num documentário televisivo de há dias, asseverava-se que fora o Professor Jacinto do Prado Coelho (que não está cá para se defender) que recusara Sena por este “não ser um perseguido político”. Convenhamos que a historieta é pitoresca. Sena não terá sido um activista político ferrenho mas consta que esteve ligado à conspiração da Sé e é notório que escreveu, no Brasil, várias verrinas contra o governo português. Há, como é sabido, um processo dele na PIDE e era voz corrente e geral que se reconhecia (e era reconhecido) no universo oposicionista. Não creio que JPC ignorasse isso, que tivesse o desplante de o negar e que o seu parecer, nos anos confusos do PREC, tivesse vencimento quanto a isso.

Por outro lado, a Universidade Nova convidou-o e, se a memória não me falha, o mesmo ocorreu com a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde Óscar Lopes, seu cunhado foi convidado para professor.

A verdade, quanto a isto, deverá estar no  facto de Sena não poder aceitar um lugar em Portugal por o ordenado oferecido ser, como é sabido, uma miséria. Um homem com aquele desproporcionado número de filhos ver-se-ia aflito para chegar ao fim do mês. De resto, mesmo que em filigrana, isso perpassa no mesmo referido documentário.

A segunda questão que um honesto leitor de Sena deve referir é a sistemática (e não provada) acusação de Sena ser uma espécie de proscrito face aos “aparelhos” culturais do Portugal do Estado Novo. Cita-se a propósito o pequeno e dessorado universo situacionista e a chamada “esquerda”, “dominada” pelo PCP. Conviria lembrar que Sena era cunhado (e amigo, ao que sei) de Óscar Lopes, um dos mais importantes intelectuais comunistas que seguramente o defenderia de alguma conspiração estalinista; que se dava e correspondia com um impressionante número de intelectuais de esquerda; que colaborou activamente em revistas e publicações de esquerda; que traduziu muitos livros para editoras conotadas com a “oposição”. Contra isto parece risível e tonta a acusação de ser um maldito para a esquerda. Quanto à gente do regime, esclareça-se que o facto de não ter ali aceitação explícita não era coisa que afugentasse leitores interessados. E mesmo no reduzido número de escritores conservadores havia quem  o considerasse. Sena participou nalgumas aventuras editoriais de gente não comunista ou sequer progressista (Cadernos de Poesia, por exemplo).

Parece, pois, possível afastar a ideia de conspiração política contra o autor de “Peregrinatio ad loca infecta”. O “anti-senismo”, a ter existido, terá outras causas.

Entre elas, há quem cite, a “independência” de Sena, a sua “irreverência” perante  os estabelecidos na praça das letras. É possível mas não provável. Escritores reconhecidamente irreverentes e independentes houve-os sempre em Portugal e os anos 50, 60 e 70 não constituíram excepção. Aliás, passar uma certidão de “dependência” a uma boa parte dos escritores em actividade nesses anos é pura má fé que, também, não tem base de qualquer espécie. Cardoso Pires, Cesariny, O’Neil, Urbano. Abelaira, Redol, Hélder, Pacheco, Gomes Ferreira, eram acaso dependentes, reverentes e obrigados? Cochofel, Sofia, Cinatti, com quem Sena se correspondias, sê-lo-iam? Francamente...

Há em Portugal um hábito miserável: para levantar alguém tem de se dizer mal de outrem. Sena tem vindo a ser vítima disso. Foi, aliás, vítima disso ainda em vida e, eventualmente, ter-se-á sentido confortável nesse papel. Eventualmente, repito. Inconscientemente ?

No mesmo documentário, má obra, péssima obra, pelo menos para este leitor de Sena, fala-se de um atribulado processo de prémio em que Sena terá visto as suas “andanças do Demónio” ser preteridas pela “A gata e a fábula” de Fernanda Botelho.  A propósito disso, um Saramago, pouco inspirado, teceu considerações infelizes sobre os méritos relativos dos dois escritores. Ao que dizem, o júri terá preferido um romance a um conjunto de contos. A ser assim, cai a acusação. Mesmo se, em edições anteriores, o prémio tenha contemplado livros de contos. Mais uma vez, já cá não anda ninguém que se possa defender da acusação de, neste caso, perseguir Sena. É o mal deste género de documentos: à falta de contraditório, passa tudo: verdades, meias verdades e mentiras.

Que Sena era orgulhoso quase até à arrogância não merece dúvidas. Basta lê-lo em poemas e, sobretudo, na volumosa correspondência que tem saído a público. Que tinha uma alta ideia de si, também não. Em certo momento ajudei Rui Feijó a preparar uma edição da correspondência de Sena com Cochofel. Ambos nos admirámos do cuidado com que Sena guardava cópia dos mais pequenos postais que, a partir dos seus 17 ou 18 anos enviou a Cochofel. Como se tivesse já uma clara ideia da eventual importância desses documentos e os pensasse escritos para um futuro longínquo. Nada disto é pecado mas dá, penso, uma ideia, da representação que se de si próprio fazia. Nesse volume (que não saiu pela mão de Feijó por razões que não recordo) havia também, e muito posteriores, várias considerações sobre temas de literatura portuguesa constantes de artigos encomendados por Cochofel para um Dicionário de Literatura em parte editado. Nelas constam notas e criticas acerbas a adversários literatos que defendiam, mormente sobre Camões, opiniões muito distantes das de Sena. Convém dizer que, quanto a isto, Sena é polémico mas extremamente interessante. Mesmo que se não concorde com as suas teorias camonianas há que referir que, sem ele, os estudos camonianos actuais seriam muito menos exaltantes.

Do documentário (na escassa parte que vi) não me pareceu constar uma desagradável faceta do enorme poeta que Sena foi e é: refiro-me a um volume publicado postumamente (por expresso desejo do autor, ao que sei) e que, sob o nome descolorido e pouco amável de “Dedicácias” Sena trava um último combate contra adversários que já não poderão responder-lhe, ou cuja resposta ele já não lerá. Além de serem desinspirados são grosseiros e passavelmente injustos. Os leitores de Sena obviamente não lerão ou não levarão a sério estas verrinas póstumas que só diminuem quem as escreveu.

E os defensores à outrance de um Sena gigantesco e ultrajado pelos contemporâneos deveriam pensar nelas e talvez perceber a razão de algumas quezílias literárias, e não só, que poderão afectar o retrato justo a que o poeta tinha direito.

 

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