A ver se nos entendemos...
A senhora Merkel, de quem não sou especial apreciador, provocou uma onda de alta gritaria por vir dizer algo que todos dizem, baixinho e confidencialmente. Terá dito, aliás com várias atenuantes e contrapesos, que o multiculturalismo tem os seus dias contados na Alemanha. Que falhou redondamente; que longe de integrar os emigrantes os torna mais sós, mais isolados, num ghetto, político, social e linguístico, de que dificilmente escapam; que isso, esse isolamento (de que fui atenta testemunha na minha última e longa estadia na Alemanha) os torna mais frágeis diante dos patrões exploradores, dos racistas de todo o género e da multidão indiferente que com eles se cruza; que, por conhecerem imperfeitamente, ou muito mal, a língua do país passam ao lado de oportunidades que outros mais desembaraçados, e aliviados do peso exagerado de culturas nacionais, aproveitam.
Em França (cfr. Le Nouvel Observateur nº 2395), um sociólogo (Hugues Lagrange) que se dedicou durante anos a estudar diferentes comunidades emigrantes lança um embaraçoso aviso sobre as dificuldades dos emigrantes do Sahel, o índice de criminalidade juvenil na cintura das grandes cidades e especialmente de Paris. A coisa provocou um forte burburinho, várias contestações entre o emocional indignado e o científico mas o facto aí está. São, sempre segundo o NO, dezenas ou centenas de quadros estatísticos aterradores ou, pelo menos preocupantes.
O “outro” sempre causou surpresa, constrangimento quando não receio. O estrangeiro foi sempre alvo de discriminação no meio para onde viaja. Na velha democracia grega um estrangeiro tinha por força que se acolher ao instituto da hospedagem para poder continuar a ser livre. Na longa história europeia, os estrangeiros eram confinados em bairros próprios, pagavam tributos especiais e eram alvo de forte vigilância.
A democracia actual (pelo menos na sua versão ocidental, europeia) não admite esses constrangimentos, proclama urbi et orbe a aceitação do “outro”, tanto mais que, dadas as baixas taxas de natalidade, boa parte dos países ocidentais precisam de mão de obra barata. Precisam de gente para fazer o que os europeus já não querem fazer: varrer o lixo, servir à mesa, construir as nossas casas, aguentar o ritmo brutal das linhas de produção industriais.
Acresce, sobretudo no Ocidente, o peso de um século de colonialismo quase sempre brutal, o remorso e uma ingénua tendência em acreditar na bondade natural das culturas exógenas.
De tudo isso, e muito mais, se forjou um modus vivendi estranho e irrealista. Proibimos aos nossos filhos brincadeiras barulhentas mas não nos atrevemos a denunciar uma sessão nocturna de batuque no quintal vizinho. Achamos insuportável (e muitas vezes é-o) o sino da igreja a dar as horas, as meias horas e os quartos de hora mas o apelo do muezzin da esquina amplificado por alto-falante, cinco vezes ao dia, é natural e quase desejável. Feiticeiros, magos, bruxas e outras profissões que vivem da crendice não são tolerados ou, pelo menos, são malvistos. O mesmo não se aplica à curandeira africana que pratica a excisão das meninas quase à vista de todos. É verdade que há uma maioria de países que (graças aos protestos das ligas feministas) a não permite mas também há quem (e basta ir a Inglaterra e ao Canadá) a defenda como uma natural manifestação de certas culturas africanas. A proibição da burka tem chocado com os defensores dos direitos humanos, dos apóstolos do véu infame, veste que não consta absolutamente (e que constasse, digo eu...) do Corão.
O multiculturalismo assenta na ideia confusa de total e universal reciprocidade. E do cosmopolitismo entendido como verdade e prática universais. O que obviamente não é o caso. Ora façam o favor de tentar erguer uma igreja (de que pessoalmente não necessito) numa boa trintena de países muçulmanos. Ora vejam o que se passa quando uma ocidental anda sem véu no Irão. Ou decotada. As boas alminhas gentis europeias afirmam que isso é ofender “os costumes”, a “moral”, a “religião” desses países. Acaso a poligamia não ofenderá os da Europa?
Um emigrante, e nós portugueses sabemo-lo bem, só se safa no país que o acolhe falando a língua local. Há até quem assevere que a nossa badalada propensão para línguas vem daí, desta fatalidade que nos empurra para fora do torrão pátrio. Um conhecido ensaísta criticava os portugueses e o seu escasso apelo ao culto das raízes dizendo que nós rapidamente nos adaptamos e integramos no pais de adopção. E lacrimejava por não termos nos Estados Unidos a mesma vigorosa presença de irlandeses, italianos, polacos e não sei quem mais. Em duas gerações, a herança portuguesa vai à vida. Já o mesmo diziam os críticos do século XIX sobre os “brasileiros”: em meia dúzia de anos, adoptam o sotaque que nunca mais perdem mesmo se regressados à pátria madrasta.
Vejamos agora, melhor, o que se passa na Alemanha: Os emigrantes são oriundos de um farto quarteirão de países. Há portugueses, italianos, cabo-verdianos, polacos e outros povos de leste, magrebinos, asiáticos sobretudo chineses mas também indianos e turcos. Os italianos brindaram a Alemanha com mais umas dezenas de palavras que já são de uso corrente (fazendo lembrar a enxurrada de termos franceses trazidos pelos refugiados huguenotes) e não consta que causem especiais problemas, mesmo se há quem diga que alguma mafia lá chegou. Os africanos, minoritários, que gozam da nem sempre merecida fama de atletas ou de músicos de rap, passam despercebidos mesmo se a cor obviamente os denuncia. As comunidades asiáticas – que tradicionalmente têm fortes dificuldades quanto à língua – são quase invisíveis. Os restantes europeus, portugueses incluídos, não despertam curiosidade. Restam os turcos. Mais de metade da comunidade emigrante é de origem turca. São três ou quatro milhões. Vem dos confins da Anatólia, de mistura com os curdos. Uns e outros estão no centro das atenções e das acusações. Que não se integram; que mantém os costumes ancestrais, incluindo ao detestável costume de castigarem impiedosamente as mulheres da família que se relacionam com alemães (o que prova que, pelo menos neste ponto, turcos e curdos reagem da mesma (estúpida) maneira; que não falam a língua; que são já tantos que vivem em comunidades fechadas com alguns dos homens como únicos intermediários; que praticam um Islão profundamente reaccionário. Etc., etc...
A chanceler Merkel não ignora isto. Sabe, até por vir do Leste ex-comunista, mais conservador e mais xenófobo que os antigos territórios da RFA, que a explosiva natalidade destes emigrantes os faz parecer uma ameaça. Vai daí, com uma mão, declarou o Islão uma das religiões pilar da nova Alemanha (a par do judaísmo e do cristianismo). Propõe o reconhecimento dos diplomas estrangeiros (medida que tornará mais fácil a integração das comunidades indianas) e sugeriu novas regras de acolhimento para os Gastarbeiter de que tem falta urgente. Todavia, com a outra, manteve todas as reservas ao multiculturalismo. Coisa natural numa política claramente conservadora, aliás. Mas coisa também visível em muita esquerda. Sobretudo naquela que é oriunda de países com farta emigração.
Objectar-me-ão que, por exemplo, a França foi sempre um país que recebeu emigrantes. É verdade mas nunca em quantidades tão grandes, em tão curto espaço de tempo. Mais: durante séculos esses emigrantes não tinham outra hipótese que não fosse a de tentar rapidamente integrar-se. A lei e a sociedade à sua volta não lhe permitiam desconhecer a língua e as normas legais que regulamentavam minuciosamente a vida em França.
Só agora, pelos vistos, é que se considera intolerável exigir a um estrangeiro o mesmo que se exige aos naturais da terra. Em nome de uma cultura que não lhe evitou o exílio (que o não protegeu na própria terra...)
Desde o despertar dos nacionalismos (século XIX) e, sobretudo a partir do desmantelamento dos estados multinacionais (anos 18-20 do século passado) ou da implosão da URSS nos anos 90, para já não falar no drama jugoslavo, fortaleceu-se a ideia do coesão nacional. Que aliás tem os seus primeiros passos na Revolução Francesa, no centralismo republicano, na unificação linguística e na supressão do costume local.
É bom é mau? É assim. Pedir, agora, de lágrima ao canto do olho, a aceitação do multiculturalismo, num mundo que em boa parte lhe é hostil, releva da mais pueril ingenuidade. Como ingénuo (para não usar expressão mais contundente) foi a ideia que lhe deu forma. Sem fortíssimas políticas inclusivas, sem criar os mecanismos de regulamentação social que separem de forma clara e segura a herança cultural dos desastres da ghettização. não há multiculturalismo que nos valha. Sem o respeito à lei do país hospedeiro, não há migrante que não esteja em risco. Por muito multiculturalismo que se assuma.
É que este, ainda por cima, é muitas vezes, senão quase sempre, a frouxa desculpa da indiferença. Deixem a plebe emigrada nos seus territórios fechados governar-se como entender. O isolamento e o ensimesmamento tornam cada um dos seus membros mais frágil perante a agressividade do mercado do trabalho. Se as coisas ultrapassarem o patamar do perigo, uma varredela para o pais de origem resolve o problema. E com o acordo da comunidade nacional ultrajada pela ingratidão dos recém chegados.
A resposta ao problema não pode pois ser esta condenação virtuosa e abstracta da chanceler Merkel mas apenas e só a afirmação de que os valores essenciais da “república” e da democracia são para cumprir, que os mecanismos de inclusão hão abranger obrigatoriamente todos, que contra as leis nacionais não pode haver recusas baseadas em especificidades de cariz religioso ou tradicional que claramente ofendam o que normalmente decorre dos direitos humanos a que, com dificuldade e sacrifício, as democracias europeias chegaram.
A esquerda que nasceu da incorrecção política, da dúvida, do questionar não pode agora sem mais vestir os véus da vestal da bem pensância e do rousseauismo a toda a custa.
Ou como dizia Nietzsche:
não o teres derrubado ídolos;
teres derrubado a idolatria em ti,
foi essa a tua grandeza.
Este texto há-de ser lido com duas precauções: não se referem judeus nem ciganos (que fartamente povoaram alguns textos anteriores...) por que entendo dever eventualmente dedicar-lhes textos autónomos. Os (mal) chamados problemas judeu e cigano (duas comunidades que estiveram sempre na mira dos Estados, das polícias da reacção e da populaça à solta) tem séculos de existência, deram origem a perseguições infamantes e vis, e atingiram o seu clímax durante os anos 30/40 do século passado. Convirá acrescentar que no toca ao elo mais fraco, os ciganos, as coisas nunca melhoraram significativamente e podem, agora, até ter piorado. Os ciganos tem tudo contra eles desde o nomadismo até ao facto de não haver um Estado nacional que, à semelhança de Israel, os possa defender. Pior: nos países onde são mais numerosos as autoridades não só os desprezam como também os perseguem.
A segunda precaução é esta: os juízos de facto são isso e só isso. Usei toda a informação disponível para referir apenas situações conhecidas. Pessoalmente, como já terei deixado entrever, sinto-me tributário (e grato) de várias culturas, mormente as africanas (que aliás também não estão em alta nos países lusófonos...) e não me concebo cidadão de um pais sem ciganos, judeus, ucranianos, brasileiros e farta dose de africanos. Negros, entenda-se, pretos para deixar de lado o politicamente correcto que só embaraça quem é visado. E ameaça ou, pelo menos, impõe um pudico véu de hipocrisia sobre a realidade da pele.
*na gravura: máscara Epa
D’Oliveira fecit 18-10-2010