Au Bonheur des Dames 260
A dr.ª Helena anda com falta de imaginação?
Imagino o transe por que passa quem nos jornais detém uma página fixa. É que, de vez em quando, não há assunto ou, havendo-o, não se consegue decentemente pegar nele. E sem assunto, não há artigo. E sem artigo, não há pagamento. E sem o cacauzinho, o pão fica sem manteiga.
É uma angústia! Já Eça justificava, num texto miraculoso, um qualquer arraial com que brindara o bey de Tunes. A página branca, a maldita página virgem, ali especada e a inspiração (como a erecção...) longe, nos antípodas, a banhos...
Deve ser por isso que volta que não volta (cfr au bonheur 222) a dr.ª Helena Matos puxa do chinelo vingador e aí vai disto: porrada na geração de sessenta! É o mal de já não haver um bey em Tunes.
À falta de tão repugnante quão exótica criatura, HM resolveu armar-se na viva reencarnação da Padeira de Aljubarrota e destroçar a já minguada hoste da geração de sessenta.
Eu que atingi a maioridade no ano de 1960 sempre tive uma dificuldade para saber quem é que pertence aos “sessentas”. É que não é assim tão óbvio. Os sessenta, uma década no papel, podem ser mais ou menos anos. Por exemplo: entre nós poderiam ter começado com as eleições de Delgado em 58 e terminado com o advento de Caetano. Ou com o 25 de Abril, por exemplo. Noutras latitudes as coisas poderiam ter outras fronteiras. Na França talvez tenha sido o fim do conflito argelino aunciado por De Gaule a começar um tempo que vai morrer em 1968. A década de 60, na Tchecoslováquia morre exactamente nesse mesmo ano, esmagada pelos tanques russos. E na China? Terá começado com o grande salto em frente e morrido na hecatombe da revolução cultural? E na Itália, os atentados, a violência, o caso Pirelli, as brigadas, a morte de Moro? E na vizinha Espanha? Será o franquismo enovado pelo Opus, o começo da violência da ETA ou o bunker final do regime que definem as suas fronteiras?
Em todos os restantes domínios, as coisas passam-se da mesma maneira, falemos de Saussure, de Levi-Strauss, de Marcuse ou do estruturalismo.
Deixemos, porém, estas questões e passemos aos fantasmas que atormentam a alminha gentil da dr.ª Helena.
A excelente senhora estará mesmo convencida de que todos os males que afligem a pátria, a mátria, o mundo e arredores se devem aos cavilosos agitadores façanhudos que em sessenta calcorreavam apressados ruas e praças das cidades universitárias tentando subtrair os jovens e frágeis lombos às coronhadas da polícia de choque? É que, caso ela não saiba, aquilo era mesmo uma minoria. Por cada Manuel Alegre que surdia num poema ou numa emissão da rádio clandestina, havia um quarteirão de Cavaco Silva, para já não falar de idêntica proporção de Freitas do Amaral e restante comandita. Isto para não falar sos senhores Américo Amorim, Belmiro de Azevedo e outros pais da pátria e capitães da indústria. Claro que a dr.ª Helena não se lembra. Não viu, não viveu esses penosos anos. Alguém lhe disse, vingativa e solenemente: Leninha, aqueles ali são bolchevistas. Comem crianças ao pequeno almoço quando não conseguem ferrar o dente num prato de caracóis. São ateus e embusteiros. Querem levar o país mimoso à desgraça e venderam as colónias aos americanos, aos russos, aos cubanos, aos chinocas e a mais um par de criaturas sinistras que agora são associados à cleptocracia dominante naqueles cafundós por via dos bancos, das companhias petrolíferas da diamang e sei lá do que mais.
E aqueles eram apenas a minoria, os que apanhavam na tromba, os que desertavam e os que não, os que andaram pelas áfricas a morrer e a matar e ainda hoje sentem na pele o ardor das chanas quentes, das lânguas pútridas, do mato espesso e traiçoeiro, da morte e do medo. Mas a Leninha, nova, felizmente para ela, nova e mulher, idem aspas, não está para estas coisas. Os maus são esses que se calhar nunca falaram em “escola inclusiva” e nas bacoquices com que um post-modernismo bem mais recente parece fascinar alguns meigos espíritos todos muito posteriores à década dos Beatles, dos MAnfred Mann e dos Beach Boys. E dos Dylan, dos Brell, dos Brassens. Ou do Zeca Afonso e colegas.
As modas culturais e políticas de que HM fala, com ou sem razão, com ou sem azedume, foram-se criando e madurando em tempos bem mais longos, atingiram o auge bem mais tarde, têm adeptos e defensores da idade da adorável senhora que, à falta de um infiel ismaelita e truculento, entendeu recomeçar a nova cruzado do ocidente contra o inimigo interior que vai, pela lei da vida (e da morte, claro, sobretudo da morte) desaparecendo.
D. Leninha, queriducha, vá bater no Sócrates que bem merece, no Passos coelho que é igual, no Santana que adora violino, no dr. Cavaco que não tem dúvidas nem hesitações, nos jovens troublions do BE que em sessenta nem projecto eram e deixe-nos morrer em paz. Já nem somos assim tantos. Conceda-nos, como às baleias, ao lince, e aos rinocerontes, o estatuto de espécie protegida.
Vai esta para Mª José Carvalho, Vítor Miragaia, José Correia Pinto João Vasconcelos Costa, António Horta Pinto, José Mattoso e Maria Assis, leitores a amigos e testemunhas desses anos de vinho e rosas, de chumbo e suor, de mágoas e esperança.
E bom ano, quand-même.
* na gravura: conspiração campestre a favor da música inclusiva, digo da escola...