Perdi!
Costuma dizer-se que, na hora da derrota, o perdedor está sozinho. Nem sempre. Neste caso, o Manuel Alegre sabe bem, com um saber de cinquenta anos de amizade, que ao lado dele, sem ser visto, estava este inútil cronista. Se ele perdeu, eu também perdi. Perdi porque o apoiei. Perdi porque não tive a força, nem a coragem, nas diversas vezes em que nos encontrámos, de lhe dizer, cara a cara, coração nas mãos, que o nosso tempo se esgotara. Que as condições da primeira eleição nunca se repetiriam.
Claro que, desde o dia em que nos reencontrámos, depois da primeira eleição, na morte de um amigo querido e comum, o Rui Feijó, muita coisa mudou. Se por essa altura ainda era crível uma segunda oportunidade, ela foi consumida pela voragem dos últimos dois, três anos.
Não quero, agora, revolver a faca na ferida mas é mister que se lembre a todos, a todos mesmo, que o apoio titubeante de uma parte do P.S. (por ventura a mais forte mas a menos influente em termos de país e povo) não trazia nada de novo ou de mais ao candidato que sozinho ficara a 30.000 votos de uma segunda volta.
Identicamente, o apoio do Bloco não trouxe nada de diferente ou de substancial à candidatura. Na primeira vez, em quem é que poderiam eles votar? Em quem votaram?
Eu, sem querer culpar o bloco, sempre adianto que o seu apoio a Alegre poderá ter funcionado para muitos moderados como um revulsivo. Refugiaram-se em Nobre? Votaram em Defensor? Em Coelho? Abstiveram-se? Foram dar um passeio à hora de votar?
Não sei. Sei que não votaram em Alegre, como os números e os mapas distrito a distrito, concelho a concelho amanhã mostrarão (escrevo às oito horas da noite deste domingo que não gostarei de recordar).
Claro que a crise, o desempenho governamental nela, os sacrifícios impostos aos portugueses, a desilusão pela prestação dos socialistas nas instancias de poder, poderão (puderam, seguramente) afastar forte percentagem de eleitores. Alegre, quisesse ou não, estava colado ao Governo do seu partido, às acções e omissões e erros desse Governo, coisa que, há cinco anos, e em circunstâncias substancialmente melhores, não ocorreram.
Claro que a inventada candidatura de Fernando Nobre, um ex-apoiante de Cavaco, tornado mediático pela AMI, “roubou” votos. Não só de socialistas, e é conhecido o empenhamento de Maria Barroso e dos dois medíocres descendentes de Soares nela, mas consta à boca cheia que o ex-Presidente da República, Mario Soares (ao contrario da coerente e digna intervenção de Jorge Sampaio) mobilizara todos os seus amigos para a candidatura de Nobre. Pena foi que, já agora, não lhes tivesse oferecido um par de ideias. Nobre, fora a patética mensagem contra os “políticos” e o “sistema” nada mais trouxe. Como pensamento político fica atrás de Coelho ou Defensor de Moura, esse pitoresco político municipal que se tomou por um mons parturiens. Pariu o seu ratinho e para mostrar coerência, mas não educação, muito mesmo qualquer apregoada virtude republicana, entendeu não cumprimentar o Presidente eleito... Feitios...
Consta, também, e em Portugal os boatos são mais evidentes que as certezas, que os Presidentes que disputam a reeleição nunca perdem. Como verdade científica, a coisa parece-me duvidosa mas até agora foi sempre assim. Façamos de conta que é um “costume constitucional”.
Cavaco Silva, conseguiu ainda uma outra extraordinária proeza. O actual PSD/PPD tem pouco, ou nada, de cavaquista. Boa parte dos seus antigos companheiros de jornada estão fora por boas ou más razões, ainda que todas elas reconvertíveis à mesma causa.
A sua magistratura “de influência” foi quase sempre irrisória ou passou despercebida. Esteve com o Governo na imperícia com que este lidou com a crise. Não apoiou sequer, a fiel governanta que nos primeiros tempos tentou salvar o que restava dos escombros do governo Barroso- Santana Lopes. Deixou-a cair (ou ser derrubada) sem um suspiro, uma palavra, uma mágoa. A criatura Passos Coelho não é por si criada ou teleguiada e não se percebe no vago e confuso discurso desta qualquer referência aos temas fortes do cavaquismo.
Todavia, viu o partido unido atrás dele e conseguiu que o mesmo acontecesse com o CDS. Longe vão os tempos em que Portas, então jornalista influente, “cadilhava” sem descanso (e muitas vezes sem qualquer réstea de razão...) o consulado absoluto de Cavaco.
Também, ó fraca memória cidadã!, ninguém veio explicar essa verdade incómoda que foi o segundo mandato de Cavaco como Primeiro Ministro e a política despesista que praticou. Era preciso ganhar uma terceira vez mas Guterres (que também não foi avaro, valha a verdade) estragou-lhe os cálculos. Também, ninguém veio recordar, a extraordinária maneira como, subitamente, Cavaco saiu do Governo e deixou o pobre Fernando Nogueira entregue aos bichos, isto é ao voracíssimo apetite dos barões social-democratas e a outras bichezas menos recomendáveis, enquanto os socialistas pacientemente afiavam as facas e Soares, em fim de mandato presidencial, alimentava voluptuosa e conscienciosamente as famosas “forças do bloqueio”.
Os comentadores já anteciparam todas as explicações para a vitória de Cavaco. A famosa estabilidade, o medo do desconhecido, o perigo duma aliança entre as esquerdas mais façanhudas sob a égide do poeta (um poeta? Por Deus, já bastou Pessoa ter a chave do cofre...), do romântico (?), do votante desalinhado que trazia amargos de boca aos colegas de bancada, as hesitações e o arrastar de pés de muitos próceres socialistas (lembrem-se Campos ou Vital para não ir mais longe. Esta gente é adepta da famosa máxima “morra Sansão e quantos aqui estão”.
Há na política indígena, mas não só, uma ideia tremenda de “Götterdamerung”: já que é previsível uma derrota então que arda tudo.
(Por alguma razão, nas europeias, não levaram o voto, Não são de confiança!).
Todavia, tudo isto não retira o que acima afirmei. Perdi esta eleição. Perdi-a por todas as razões, incluindo o facto de ter sido membro da honrosa Comissão de Honra de Alegre. Éramos muitos? Isso diluía responsabilidades políticas? Diminuía a importância e o significado político deste órgão? Não interessa. Ao aceitar integrar esse grupo, comprometi-me a festejar comedidamente a vitória e a associar-me total e absolutamente na derrota. O Manuel Alegre não esteve, não está e não estará sozinho? Num canto suficientemente próximo tem esta mão amiga e fraterna com ele. Por tudo o que foi e é. Pelos nossos anos antigos e quase esquecidos. Pelos combates que juntos travámos. Pela esperança que sempre nos incutiu. Pela companhia que os seus versos me fizeram em aus momentos na prisão e na angústia e no medo de ser preso.
Eu perdi estas eleições.