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Nós e os outros ou Os bons e os maus
Tenho um imenso gosto em ler dois colaboradores do Público. Escrevem bem, pensam melhor, e o seu português é, mais que impecável, bonito. Apreciá-los não significa, porém, que dê por certo tudo o que defendem. E presentemente, se é que os não li com demasiada ligeireza, parece-me notar neles um descaso surpreendente sobre o que se passa no mundo árabe. Um jura que aquilo não é uma revolução, coisa que só algumas criaturas efémeras entenderam tonitruar. Que os media tenham seguido estas buliçosas inventoras do pensamento prêt-a-porter não justifica que este tenha pés para andar. Chamar a atenção para isso é saudável mas daí dar uma cabriola para a impossibilidade de modificações revolucionárias e de cariz democrático no mundo árabe ou mesmo no mundo islâmico parece-me preconceituoso. Isso mesmo: preconceituoso.
O mesmo se aplica ao artigo do outro que radica no Islão a incapacidade desses países viverem em pleno uma vida democrática.
Convém fazer uma declaração de interesses. Não tenho grande apetência pelas maravilhas que alguns descobrem na civilização árabe. Não gosto, aliás, detesto os tiranetes que por lá fizeram carreira, as selvajarias da aplicação das normas da charia (a charia é em si mesma uma abominação) acho insuportável os tchadors as burkas e os véus mesmo curtos e tirante Omar Kayham, Hafiz, (ambos persas mas muçulmanos) As mil e uma noites, Naguib Mafouz e Ali Ahmad Said (Adónis) poeta sírio libanês que merecia o Nobel, não aprecio a sua eminente cultura. Também não gosto da música e menos ainda da cozinha. Gente que não come porco e não bebe vinho poderá ser respeitabilíssima, decerto que o é, mas não me desperta simpatia. Deve haver em mim, que sou do litoral, um profundo sentimento contra a pirataria histórica dos magrebinos que assolava a costa. Portanto: nada me entusiasma nestes países, naquela religião e nas políticas que por lá esboçaram.
Todavia, o direito á liberdade, à igualdade e à fraternidade são, para mim, pilares essenciais da vida (política e não só). E é disso que se trata.
Não sei se estas explosões em cadeia, esta não tão repentina (mas não tão surpreendente) fúria contra os governos infames da Argélia, da Líbia, do Egipto, da Tunísia, do Yémen e dos outros, desembocarão numa sociedade mais igualitária, mais livre, mais aceitável a meus olhos e empedernido (e não arrependido) ocidental e europeu. Espero bem que sim, mas não sei como, quanto tempo, o processo ora iniciado vai (ou não) trazer ao Magrebe e ao Médio Oriente uma forma mais sã, mais convivente de vida.
Na Europa a coisa demorou o que demorou. Foi uma sangueira tremenda mesmo nos países mais pacíficos. O ódio durou gerações e ainda há, hoje, gente que vomita de ódio à simples menção da palavra democracia.
A separação da Igreja e do Estado (que ainda não acabou realmente mesmo na Europa da União) deu origem a lutas medonhas, a assassínios em massa, e o que, até hoje, se conseguiu não esconde (não devia esconder) a reacção da Igreja (e não só a Católica, está bom de ver. Relembremos a Grécia actual, para não ir mais longe nem mais fundo. E bem preciso era mas deixemos para outra altura o registo do que se passa.)
Não convém também, já que falámos de duas “religiões do livro”, esquecer a terceira. De facto, neste xadrez sem regras, é bom recordar que a famosa democracia israelita comporta uns cidadãos de segunda, mormente árabes, nados e criados em Israel. E que os assentamentos ilegais em territórios ocupados são uma forma encapotada (ou nem isso) de aumentar continuamente o já ilegalmente aumentado espaço nacional israelita. Também considero inaceitável (e vi isso há escassos dias num dos canais temáticos da televisão) a ideia de que aqueles territórios foram objecto de um contrato entre o Deus de Abraão e os judeus. E que isso, essa bíblica promessa, seja fundamento legal para a existência de um país que desapareceu em meados do século II DC e que foi ressuscitado em 1948. E que assentou essencialmente numa região, a Palestina, habitada maioritariamente por árabes de obediência islâmica, drusa e cristã. Havia também um pequeno núcleo de judeus ortodoxos na zona de Jerusalém. Com a emigração, forte a partir da Declaração Balfour, começou a haver um aumento de população judaica que, não obstante, nunca foi maioritária, mesmo com as ondas de refugiados posteriores ao fim da 2ª Guerra.
Conviria perguntar, mesmo correndo os consabidos riscos, se uma nação nascida deste singular contrato entre Jeová e os judeus do século. XII AC, que mantém territórios alheios sob ocupação militar, que permite que cidadãos seus, nascidos em território seu, não desfrutem dos mesmos direitos dos cidadãos de confissão judaica, é de facto uma democracia. Ou se a religião judaica na sua forma mais ortodoxa é mais propensa à democracia do que o Islão. Ou se ambas são menos democratizáveis do que o Cristianismo tal qual se concebia no século XVIII. Ou, indo mais longe, se há na organização interna da Igreja Católica algo que, de perto ou de longe lembre a democracia.
Ou, até, se a Igreja aceitou sem fortíssima resistência (desde pegar em armas à excomunhão) a separação dela e do Estado.
Poderia continuar neste rosário de perguntas toda a noite. Decerto que isso incomodaria os leitores, mas que querem? A mim o que me incomoda é o subtil racismo que reserva para o Ocidente a possibilidade de uma vida melhor e deixa aos árabes o inferno na terra. E que se consolem com as huris no outro mundo prometido pelo Profeta...
na gravura: inscrição que diz:Não ha outra divindade senão Deus e Maomé é o seu profeta