Au Bonheur des Dames 267
Claro! É isso mesmo!...
Sempre, ou pelo menos desde que fui um relapso aluno de catequese na risonha vila de Buarcos, soube de um saber feito de estudo e sacrifício da carne, que o pecado, mormente a luxúria e seus derivados, eram perigos absolutos não só para a nossa alma imortal mas também para partes diversas do corpo transitório que a envolve.
Não recordo bem os exactos males que correspondiam a cada acto de concupiscência e confesso que, nesses longínquos tempos, andava mais entusiasmado com o berlinde e o pião do que com a “chamada da carne” pelo Maligno (Va de retro...).
Lembro, isso sim, que o senhor prior nos terá dito que era mais fácil sair-nos o bacalhau, o cabrito e o ornitorrinco tudo em três rebuçados de meio tostão comprados na mesma feliz ocasião do que um pecador entrar no reino celestial. Expliquemo-nos: nesses tempos felizes e inocentes, havia uns coleccionáveis que se vendiam com uns rebuçados baratos, péssimos para a saúde mas óptimos para o paladar. À parte vendiam-se umas cadernetas manhosas onde era mister ir colando as imagens que iam aparecendo. Fundamentalmente as colecções eram três ou quatro: jogadores de futebol equipados a preceito, bandeiras de todo o mundo (a cores) e animais ( a preto e branco ou a cores). Normalmente vinham dentro dos papelinhos que embrulhavam os citados rebuçados mas depois, o progresso alucinante que se vivia no post guerra suprimiu miseravelmente as guloseimas e fornecia as figurinhas dentro de carteiras.
Na colecção em apreço, a dos bichos de todo o mundo, as figuras mais cobiçadas (o Rui Lucas que me corrija se estou enganado) eram os três animais acima citados. A miudagem, com o espírito empreendedor que sempre se lhe reconhece (e que, nessas épocas de escassez, era agudo) passava longas horas a trocar figurinhas, estabelecendo uma complicada teia de cotações que nem a mais sofisticada bolsa é capaz de reproduzir. Aliás, nesse tempo, trocava-se tudo, os já citados berlindes (e os cotadíssimos “abafadores”) piões, fisgas, lápis de cores e outros objectos de levado valor entre crianças irrequietas, entre eles uma maravilhosa arma chamada “estoque” que consistia num tubo de cana onde corria um êmbolo feito do mesmo material. Com isso disparavam-se projecteis feitos de casca de laranja (roubada e comida no acto) com a boca do “estoque” ia-se recortando a casca inútil” e pimba, “estocada” no companheiro de assalto ao pomar.
Tudo isto para falar dos pecados da carne!...
De facto, quando o confessor nos perguntava por isso, ficávamos atrapalhados. A puberdade andava longe, por um futuro a que chegaríamos depois da quarta classe ou até mais tarde, dependendo se éramos maus ou bons alunos. Os mistérios da carne eram ainda mais absolutos que o da Santíssima Trindade.
Anos depois, já os piões estavam guardados num qualquer baú de velharias e os berlindes perdidos, lá começaram a falar-nos nos perigos da masturbação. Parece que esse perigoso mas divertido exercício tinha nos seus praticantes um efeito terrível: surdez! Quando mais intensa fosse a manipulação mais depressa nos caía em cima o silêncio opressivo. Tenho ideia que essa ameaça medonha era ineficaz. Digamos, para não sairmos deste campo, que nos entrava por um ouvido e saía, mais apressada, pelo outro...
Com o correr dos anos e dos humores a coisa foi-se tornando mais diversificada e interessante. Os pecados da carne apareciam mais diversificados e, custa-me dizê-lo, mais atraentes. Os castigos eram anunciados mas quem é que pára a “juventud divino tesoro”?
A imaginação fértil das igrejas, sejam elas quais forem, não era dique capaz para a enxurrada libidinosa que nos percorria. Os conselhos médicos também não resultavam nesses anos difíceis e primitivos. As doenças venéreas lá se iam curando e a sida era desconhecida. Todavia, a sexualidade desregrada (e eu nunca vi tal coisa seguindo as nobres regras da cavalaria ou do boxe) nunca suscitara a ameaça que na gravura (enviada pelo sempre frenético JVC) se descobre.
Parece que nesse Médio Oriente, subitamente prodigioso e em movimento, um clérigo (e não dos menores, visto ser ayatola e imã da importante oração das sextas feiras em Teerão) chiita afirmou que as relações sexuais ilícitas são a causa provada dos sismos. A coisa começaria com as mulheres (no Irão, nom de Dieu!) atrevidamente vestidas a suscitar na gens masculina um aumento da produção de testosterona. Uma vez alcançada a velocidade de cruzeiro desta última, zás, catrapás!, aí vai disto. Actos sexuais ilícitos à fartazana, num desafio lúbrico á paz dos pasdaran e dos mollás! Pior ainda se for á sexta-feira, atrevo-me a pensar esperando que por esta impiedade menor não me caia em cima uma fatwa medonha.
Claro que, isto, esta descoberta de incalculável alcance militar era tremenda. imaginam um pais qualquer a exportar para o território inimigo um aguerrido exército de amazonas dispostas ao sacrifício supremo de perverter a juventude ingénua da terra assaltada e por isso mesmo a destruir pela fúria genésica cidades e aldeias do odiado adversário? Muito mais barato que as bombas termonucleares e, sobretudo, muito mais insidioso.
Mas desenganem-se os que pensam que estas coisas são fruto de mentes enlouquecidas pelo deserto e pela visão aterrada de burkas e véus tentadores. Nos Estados Unidos (o Grande Satã) progridem as campanhas de virgindade até idades francamente desinteressantes. Há Estados, ou mesmo condados e cidades onde imperam leis extraordinárias. Não posso, agora, encontrar o recorte onde, preto no branco, se proibiam certas variações sexuais (que o decoro me impede de referir, pelo que terão de recorrer aos vossos catálogos pessoais de fantasmas) mesmo se praticadas no recôndito do lar, longe das vistas do público. E a coisa dava pena de prisão!!! Como é que se descobririam os pecadores é que me faz espécie. Não que não saiba que há, sempre houve, em toda a parte “espreitas”, (que nas américas se chamarão Peeping Tom mesmo se este personagem fosse ,sobretudo, o curioso da lenda da Lady Godiva. Na Europa culta e mais sofisticada, chama-se voyeur e desde a belle époque, se tem por uma das belas artes amatórias. Eu, educado na praia de Buarcos, não vejo nessa inútil tarefa nenhum interesse mas parece que vai prosperando, ainda que sob a forma de leitores das revistas do coração. Confesso que não me toca a ideia de saber quantos orgasmos - e como – sacudirão as nossas socialites. Antes: tremo só de pensar que elas os terão. Estão a ver aquelas peles esticadas por vinte cirurgias e dez botoxes a serem alvo de um espasmo? Credo! Abrenúncio!)
Voltando ás nossas devoções: a brilhante elucubração do clérigo persa não é assim tão mal pensada. O sexo, mesmo o clássico, foi sempre algo de ameaçador. No Egipto antigo havia várias regras a observar sobretudo quanto ás posições. Por exemplo, se a lide amorosa ocorria durante o dia, só era permitida uma posição que vedasse a ambos os participantes olhar para o sol. Para Osíris, para ser mais correcto. E de tal modo isso foi imposto que por todo o Médio Oriente se falava da posição egípcia. No Ocidente, vá lá saber-se porquê a posição do missionário foi a mais canónica e recomendada. No primeiro caso, o egípcio, temia-se que o equilíbrio cósmico fosse afectado pelas criaturas fornicantes. Não sei se previam um sismo mas à cautela... Na literatura erótica fala-se muito da sensação orgásmica que se traduz por sentir o mundo mover-se. Será que o raio do chiita tem razão?
E o velho conto grego da greve ao sexo, artimanha feminina para parar a guerra incontrolada feita pelos homens não quererá, de forma mais elaborada e superior, dizer quase o mesmo? Porque é que o sexo desperta assim tantos demónios, tantas profecias tremendas, tanto medo?
Estou velho. Já tenho direito a desconto nos museus e nos comboios. Confesso porém que à falta de vergonha ainda devo acrescentar outros e péssimos sentimentos: não resisto a uma cara bonita, e comove-me sempre (e falar em comoção é ser comedido mas prudente) a visão de uma mulher. Será que é por isso que o palerma do imã das sextas feiras refere o perigo do temor de terra? Por mim vem de carrinho, estou-me nas tintas e pronto a arriscar. Se isto não é uma encapotada forma de assedio sexual ás leitoras então já não sei o que é.
este texto vai para os rapazes da minha geração, a saber Zé CP, Vítor M. João VC e Rui FL (estarei errado, meus amigos?)
A ilustração foi cedida pelo irrequieto (ia a dizer libidinoso mas isso não se faz) JVC