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La Revolution, nous l’avons tant aimée
“Vai-te! Para trás Sui demónio com cabeça de crocodilo! Fica sabendo que já não tens poder sobre mim pois existo...
( “A saída para a Luz” ou “O Livro dos Mortos dos antigos Egípcios” sec. XIV AD, XIXª dinastia (?), capítulo 23)
(para um velho amigo dos anos de Coimbra em paga de um belo almoço)
Estou diante da televisão. É uma emissão especial. Sobre o Egipto, claro. Como fundo a praça Tahrir onde se acotovelam duzentos mil manifestantes. Um porta-voz dos militares acaba de dizer que o Exército está ao lado do povo e que tenciona tomar as medidas necessárias para proteger a população. Espera-se a todo o momento que Mubarak fale ao país. Através da televisão egípcia que, sinal dos tempos?, transmite da praça, mostra os manifestantes, entrevista-os, exalta-os.
O momento é, convenhamos, histórico. Eu, graças à idade, já estou habituado a estas extraordinárias emissões. Foi o homem na lua, a televisão alemã a mostrar o muro a cair. E antes, os momentos extraordinários do putsch de Moscovo. E a revolta em Bucareste. E os ataques ás torres de Nova Iorque. Não me lembro, ah memória traiçoeira..., se vi o homem diante do tanque na praça Tienanmen em directo. Creio que não, essa escapou, Mesmo se “la Cina é vicina” a coisa pareceria demasiado espectacular. Ver uma revolução em marcha é algo de fabuloso. Sobretudo se ela se vai tecendo da raiva comedida do povo, farto de trinta e tal anos de “estado de excepção”. Trinta e tal anos! Meia vida para mim, quase uma inteira vida para os miseráveis que se amontoam no Cairo, que inclusivamente dormem nos cemitérios por falta de teto e de dinheiro.
Eu sei que não é o momento de relembrar os velhos emblemas duma esquerda que por cá se quer moribunda, em vias de extinção, irrelevante e ainda atordoada pelas eleições presidenciais. Ainda ontem, em Coimbra, com um velho amigo, um velho resistente, um velho camarada relembrámos isso e olhando um para o outro, com a cumplicidade de uma amizade de quarenta e muitos anos, feitos de longas ausências, de não sabermos um do outro mas esperando, com a desesperada ilusão de que fala o poeta, que as coisas tivessem corrido bem e que nós, batidos pela vida, pelos anos, pela crua realidade alimentássemos ainda algum do fogo sagrado da nossa nem sempre fácil, nem sempre feliz juventude.
E algum milagre foi sucedendo mesmo se a barriga (a minha...) tenha uma proporção vasta e conservadora, se os cabelos do meu amigo tenham declarado greve geral e ilimitada, mesmo se os “trabalhos e os dias” tenham deixado sulcos fundos que nada apagará. Ou melhor que só a morte e, sobretudo, os anos que seguirão, farão desaparecer na elaborada democracia do ventre da mãe terra que nos reclamará as carnes e as cicatrizes.
De todo o modo, algo deixamos. Ele mais do que eu, graças a três filhos que, vi com comoção e alegria, o deixam vaidoso e com fortes razões. Mais do que isso, conseguimos expor as nossas divergências e aceitar o facto, como se, em vez de portugueses, nados na velha maternidade de Coimbra com um ano de intervalo, tivéssemos atrás de nós um ou dois séculos de democracia e de liberdade.
Tudo isto me vem ao pensamento enquanto aguardamos que Mubarak faça a declaração que todos esperam. Que se retire. Que deixe o poder. E o deixe incondicionalmente sem armadilhar a instituição presidencial com um vice presidente vindo directamente dos serviços secretos (E sabe-se o que significa serviços secretos neste género de países... ) mesmo se, como no caso, haja muita gente no país que o considere sério e incorruptível. Presidentes subitamente contestados que nomeiam, também subitamente, para um lugar vago desde as calendas gregas um vice presidente, podem estar a querer tentar alguma coisa. E quando o seu poder incontestado e “em estado de excepção” dura trinta anos convém desconfiar de todos quantos o ajudaram durante esse longo período de tempo.
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A agonia do regime “Mubarak” durou toda a noite de ontem (texto de cima), a manhã e a tarde de hoje. Até às seis horas da tarde, hora local. Depois de um milhão de pessoas na rua. Até ao momento em que o vice presidente aparece e, em nome de Allah o Misericordioso, anuncia a partida do ditador e a entrega de todo o poder ao Conselho Superior do Exército.
Parte Mubarak e estão em parte incerta os gigantescos milhões de dólares que o clã familiar detém na Suíça e noutras partes do mundo. Uma soma superior à fortuna de Bill Gates. Convenhamos que para o herói da Guerra do Kippur que “só queria morrer na sua terra” as economias amontoadas ao longo de uma vida de sacrifício e “estado de emergência” não são desprezíveis....
Não sou egípcio. Mesmo se, como é costume, possa haver quem diga que o é. Não é verdade. Nós somos testemunhas. Testemunhas felizes mas só isso. Quem arriscou a pele foram eles, os egípcios e, em primeiro lugar, os cairotas. Homens e mulheres que não desistiram, que venceram o medo, que enfrentaram perigos de que nós, por cá, não temos senão uma vaga, muito vaga ideia.
A ver se isto se repete por outras praças na vasta geografia de regimes monocolores, quase dinásticos (Síria), repressivos e anti-populares. Gostaria de pensar, como a canção antiga afirmava, que a revolução está na rua. A revolução impensável há três semanas venceu temores miseráveis e desculpas hipócritas tivessem elas como fundo o medo da Irmandade Muçulmana ou a anarquia.
De vez em quando é bom viver.
D’Oliveira fecit 11.02.2011 (oh que bela capicua)
*este texto foi escrito entre as 19.45 horas de ontem e as 19,15 de hoje
** o título é roubado a Daniel Cohn Bendit