o leitor (im)penitente 65
De alguns livros... (e da alegria)
O leitor não tem preguiçado, bem pelo contrário, no que toca a leituras. Nem em compra de livros, valha-me Deus, que ainda não percebi que já não conseguirei ler tudo o que vou acumulando nas estantes. Ainda há dias, em Vigo, foi um ver se te avias... Os diabos dos espanhóis editam cada vez mais e melhor.
Mas fiquemo-nos por cá. E comecemos pelos alfarrabistas, esses alvissareiros vendedores de preciosidades que desapareceram do mercado, às vezes sem ninguém saber porquê. Ainda há pouco tempo, a Sextante editou para a Câmara de Lisboa o catálogo “África, diálogo mestiço” referente à exposição da colecção de arte africana do pintor José de Guimarães.
Como é que não vi, nem sequer me apercebi!..., este livro e esta exposição é mistério doloroso para mim, que às áfricas da minha adolescência me refiro constantemente? Agora ando por aí, desesperado, à caça do livro, encomendando-o em toda a parte e lançando, também, esta garrafa de náufrago ao mar dos leitores. Haverá algum, gentil menina ou cavalheiro conspícuo que me acuda?
Mas voltemos às nossas devoções. Acabei de ler de Dalila Mateus “A luta pela independência (a formação das elites africanas)” que, curiosamente é –suponho – o primeiro dos quatro ou cinco bons livros que DM dedica ao tem das independências das nossas ex-colónias africanas.
Para quem acompanha de perto esta problemática, as novidades não são assim tantas mas a sua sistematização é útil e poupa imenso tempo, além de fornecer bibliografia exaustiva e pistas interessantes. DM, depois, escreveu sobre o papel da PIDE na guerra colonial, os independentistas moçambicanos (utilíssimo!) o despontar da guerra em Angola e a crise (raio de eufemismo!) nitista. Trata-se, na generalidade de textos muito bem documentados que não sacrificam à moda piedosa e hagiográfica que ainda percorre muita da literatura produzida sobre o tema e, fundamentalmente, que separam o trigo do joio. Finalmente, aparece quem refere Viriato da Cruz, quem distingue o notável teórico que foi Amílcar Cabral de outros pais fundadores cuja fragilidade ideológica e/ou política era frágil. E quem relembra Mário Pinto de Andrade, animador cultural, ensaísta notável e patriota angolano. Está por fazer a história das conspirações contra estes homens. Mais passons...
E no capítulo novidades? Comecemos pelas importações. A FNAC perdeu a cabeça e importou duas preciosidades a preços mais que decentes. E japoneses! De um lado “Haiku des quatre saisons” com gravuras de Hokusai, o magnífico. Ai o que eu dava por uma gravura dele! A edição é da Seuil. (+ ou – 20 €).
Outro monstro sagrado, Hiroshige: dele a mesma FNAC apresenta num voluptuoso volume “sur la route du tôkaidô” mais um pequeno estudo de Nelly Delay e um extraordinário (e meço as minhas palavras!) caderno de vistas sobre o mesmo tema que fora editado em 1840 por Sanoki e ilustrado por um pequeno poema (infelizmente em japonês!). Esclareça-se que sob o mesmo nome há cerca de trinta séries de gravuras sempre sobre as mesmas 56 estações.
Aqui chegados, assalta-me uma dúvida. Leitor(es) haverá que se pergunta(m) “e que tenho eu a ver com estas japonices?, mcr esparvoou ou arma-se ao pingarelho?” Nem endoidei nem me faço fino: trata-se leitor(es) de duas peças únicas, lindíssimas, entusiasmantes, fecundas. Descobri em Berlin, vai para quarenta e tal anos, a gravura japonesa e juro que fiquei estarrecido. Já lhes admirava o cinema, a poesia, a arte da jardinagem mas isto ultrapassa tudo o resto. E tem mais uma característica interessante. A reprodução de pinturas através de uma espécie de xilogravura tornou democrático o acesso à pintura através dos múltiplos.
Em Matosinhos, durante a edição deste ano do “Literatura em viagem” (evento que os leitores, no caso de terem tempo, nunca deveriam perder) fiquei impressionado com o depoimento de A. Vasconcelos Raposo, um professor universitário, especialista em treino, ex-fusileiro naval especial já no fim das guerras africanas. Acossado pela memória, por muitos anos de noites brancas (ou vermelhas) e pelo dever testimonial, eis que se lançou a escrever um livrinho que modestamente definiu como ficção: “Até ao fim, a última operação” (Sextante). Não é uma ficção, claro, mas o relato quase a par e passo de uma operação de resgate de presos portugueses nos confins do leste angolano. Não é uma lição de estilo mas lê-se sem enfado. É apenas, com alguns nomes camuflados a descrição da missão de um grupo de combate largado no meio de nenhures atrás de um grupo guerrilheiro que leva prisioneiros capturados. A honradez do discurso, a verdade ddos factos, a preocupação do comandante pela vida dos seus homens, uns escassos vinte militares se não erro, o reconhecimento da dignidade do inimigo (é verdade: também houve disso nas guerras que travámos entre sessenta e setenta e quatro), pertencentes a uma força de elite mal conhecida entre nós (que vivemos sempre a ouvir contar proezas de comandos e de paraquedistas) os que seguiram os acontecimentos com paixão e comprometimento (e risco, já agora). Não vou contar a trama desta escassa centena de páginas mas aconselho vivamente todos quantos querem ainda saber a comprar e ler o livro. Desde já previno algum arganaz mal intencionado que com isto não pretendo branquear nada. Para mim (e para o autor) aquela guerra cheirou mal desde o primeiro dia, Muitos, ou não tanto, tomámos partido, quase todos pagaram duramente essa posição que ia contra (é preciso que isto fique muito claro) a opinião dominante quer a nível popular quer entre as elites políticas de todos os quadrantes. Todavia, a verdade, a dignidade e a honra merecem mais do que a repetição de meros slogans com que durante muito tempo se intoxicou a opinião pública. Os portugueses foram todos implicados durante catorze anos nesta guerra. Mais de um milhão de homens serviu nas colónias. Outro milhão estava lá, lutou lá. As famílias e isso leva-nos para um número enorme, sofreram com a ausência, com os cuidados, com o dia a dia da tropa perdida por aqueles sertões, com os ferimentos e com a morte dos seus. Ainda hoje são centenas ou milhares (ou dezenas de milhares) os que padecem de perturbações de todo o tipo, mormente psiquiátricas, devido aos anos de chumbo. Todos, mesmo os que não tinham ainda nascido, têm direito a saber e este livro, não sendo A Resposta, é seguramente parte dela.
(a propósito: a tv a que temos direito(??) passou no domingo, a desoras um filme Le Passeur, realizado pela Filipa César em que dois incursionistas (Simas Santos e eu mesmo) colaboraram juntamente com Cândida Alves e José Teixeira Gomes. Nessa peça relatávamos como, sem ligação a qualquer central política, sem fazer escolhas entre os diferentes grupos da esquerda, constituímos um grupo informal de passagem de fronteira. Entre 71 e 74 rara terá sido a semana em que não se fizesse um transporte ou, pelo menos, se planeassem tarefas ligadas a isso. Não pretendendo ficar conhecido ou disputar os focos da fama com os actores de telenovelas nacionais, os jogadores de futebol, as tias cascalhudas que enchem as páginas da Gente ou os cómicos e os políticos, Deus me livre! Porém, passar este filme, que obteve o prémio BES FOTO, a horas mortas é condená-lo ao desconhecimento. Exactamente ao contrario do que tem sucedido em vários países onde a Filipa tem sido alvo de homenagens, de retrospectivas e de prémios. Já o vídeo idiota e errado sobre Portugal para finlandês ver, passa a todo o momento para vergonha de todos quantos sabem distinguir entre o special one e Fernão de Magalhães, o navegador, claro, e não a maquineta inspirada noutra estrangeira e que é vendida como a sétima maravilha do mundo...)
*na gravura: uma das estações do Tôkaidô