Diário Político 165
Bandeiras vermelhas à chuva
Avanti o populo, alla riscossa
bandiera rossa, bandiera rossa
avanti ò populo alla riscossa
bandiera rosso lo trionferá
Em tempos que já vão longe, era eu jovem como os meus sonhos, num pais velho como todos os meus pesadelos, futurei que morreria num fim de tarde de um Primeiro de Maio. Teria desfilado pelas ruas com uma mulher pelo braço, teríamos cantado, dançado, feito amor e, à tardinha, velho e cansado, mas feliz, vinha a hora em que um coração manifestamente gasto dava o seu último sinal.
E morria, sentado num cadeirão a ver o mar avermelhar-se pelo pôr do sol e a sentir a vida a fugir sem que isso me desse especial cuidado.
Porque vivera com intensidade e inteireza, porque realizara parte dos meus desejos, porque sentia que deixava um mundo melhor do que me vira nascer. Que eu sou do tempo da guerra e da dor.
Muitos dos meus companheiros e amigos já se foram. Alguns inimigos também. O mundo mudou e está, apesar de tudo, melhor. As pessoas vivem mais, vivem melhor e sabem mais ou, pelo menos, têm essa possibilidade.
Tudo melhor? Nem tudo, nem tudo. A esperança, essa planta tenaz mas difícil, rareia entre nós. Só por teimosia a cultivamos e só por raiva a vemos crescer. Há, como dizia o poeta, um “deserto [que] cresce: ai de quem acoita desertos”.
Morrem-me, entretanto, dois amigos. Um lá longe, na pampa, ou perto disso: Ernesto Sábato, autor genial que me acompanha desde Dezembro de 70 (acabo de ver a data da compra e, aliás, da imediata leitura de “sobre héroes y tumbas” uma edição espanhola apanhada em Vigo, nas férias do Natal). Com Cortazar e Borges eis a minha trilogia magnífica dos argentinos fazedores de mundos.
Outro, o David Lopes Ramos, chegado a Coimbra já eu estava perto de sair. O DLR era um miúdo caloroso, atirado para a frente e apanhou com 69 logo à chegada. Depois já só vi (li) como cronista gastronómico, criado à sombra poderosa e generosa do Zé Quitério, outro dos bons velhos tempos, leitor incomparável, fino ouvido para a música, bon vivant e grande, grande companheiro. DLR era um bom discípulo que se autonomizou à força de usar as mesmas boas virtudes do Zé: independência feroz, bom gosto e cultura segura, nariz para vinhos e sentido da comida. Era leitura continuada, nunca lhe devo ter perdido um texto, às vezes irritava-me mas percebia-lhe o gosto, a avidez pela vida o prazer de comunicar e de partilhar. Vai-se assim, de repente, sem que eu, mero leitor que o não via há anos, esperasse.
E quase num primeiro de Maio, DLR? E com o Sábato? Há bandeiras negras a adejar (bandiera nera è segno di morte, como diz a canção dos battipaglia venezianos que a ela e à vermelha preferiam a bianca, segno di pace... mas não de rendição).
É 1 de Maio mas não parece. A chuva ameaça e os cidadãos devem estar ainda a recobrar-se de vários futebóis gloriosos, do casamento principesco e da beatificação do Papa: demasiadas emoções para quem não sabe que neste dia se celebrava a esperança e a fraternidade. E a liberdade que esta(va) a passar por aqui...
* o texto citado é de Nietzsche, num dos fragmentos dionisíacos.
d'Oliveira fecit, Maio, 1, 2011