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Carta 2ª a um cavalheiro alegadamente meu amigo
Esta carta não vai para Garcia.
Vai para Pereira. Pereira, só, ou MS Pereira, vá lá. Mas nunca Garcia Pereira, esse sorumbático guerrilheiro urbano que advoga furiosamente e milita devotamente no Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses, vulgo MRPP, isto é movimento reconstrutivo do partido do proletariado. Proletariado que, em seu tempo, se revia em Arnaldo de Matos, seu primeiro grande guia e educador do povo. Mais proletário do que Arnaldo, só Matos. Ou Durão Barroso, claro! Absolutamente proletário. Por fora e por dentro. É por isso que a Europa está onde está. Com Barroso ao volante, não há outro caminho senão este. O da proletarização total! Os chineses que se cuidem! E os norte-coreanos!
Havia muitos proletários no MRPP, uns mais proletários que outros, ou seja, havia uma linha negra e outra branca, digo vermelha, agora não sei quantas linhas há, se é que eles se cosem com alguma linha, ou preferem estar proletariamente desalinhados, uma espécie de PC alinhavado, entre as naftalinas estalinistas e a saudade maoísta, a que sobra da UDP, evidentemente, pois agora alguma dessa está bloqueada no Bloco, sob a égide de Fazenda, outro proletário puro e duro, mais proletário que ele não deve haver, pelo menos não consta.
Mas deixemos esta alegre e simpática companhia de vanguardistas populares e retornemos a Pereira, o vilão. Este, de certeza, não é proletário, pelo menos não consta. Terá defeitos, claro, e muitos, mas proletário não! Pereira é de Esquerda e bonda!
E é, ou era, um amigo estimável. Aturamo-nos mutuamente as bizarrias desde 75 ou 76! Ainda o filho calçava (só) 46, biqueira larga, umas Doc Martens horrendas que faziam o pai praguejar. Isso e frequentar a praia de Moledo, vestido com uma gabardina infame, em pleno Verão. Ai os filhos...
Re-voltemos a Pereira, o artista. Artista em vários campos, alguns duvidosos, cala-te boca!, mais que duvidosos, libidinosos, cala-te boca desgraçada! Artista e homem para tudo, capaz de serrar uma tábua melhor que um carpinteiro, de pensar uma caneta melhor do que um designer, perdido no universo poeirento da escultura e artes afins e eterno hóspede da minha anterior casa, onde assistia impávido a diárias (aliás nocturnas) sessões de bridge com um ar entre entendido e enfastiado. Uma vez, o Pedro Sá Carneiro, o pior jogador de bridge que nunca passou da página dois de qualquer manual do dito jogo, ao vê-lo tão aplicado, veio perguntar-me: o gajo sabe jogar?
Não resisti e disse-lhe que sim, que Pereira, o malfazejo, era um jogador de primeira água, um Terence Reese, traduzido em português, português do Porto bem entendido, por via dos palavrões.
E por que é que não joga connosco?, insistia o Pedro, amigo perfeito, filósofo e tudo o mais, mas um desastre no bridge.
Por causa das namoradas!, lembrei-me, em desespero de causa, que não contava com aquele interrogatório.
Fez alguma promessa?, reinquiria o Pedro, pedrão dum raio, mais chato que a potassa (e no bridge, uma catástrofe).
Foi o Luis M. quem me salvou dessa aflição explicando, sem se rir, ao Pedro que o Pereira, andando de namorada nova, perdera umas horas nuns “rubbers” (vocês não sabem o que é mas cada rubber significa um par de partidas de bridge), irritara-se, ficara com azia por via do leite, já lá iremos, e quando chegara a casa falhara miseravelmente no cumprimento de certas obrigações amorosas, de que lhe vinha larga fama e sobejado proveito.
O Pedro engoliu tudo e prometeu nunca falar disso. Mas o Pereira, a seus olhos, nunca mais foi o mesmo. Ainda por cima, o diabo do homem só bebia leite por via duma úlcera que ele acarinhava desde sempre. Nós no cervejame e o Pereira no biberão. Aquilo era uma renda: ia-me ao frigorífico e mamava duas embalagens de leite por noite!
Antes de morrer, raios parta a vida!, o Pedro ainda me confidenciou: aquilo (a nega!) deve ter sido de beber demasiado leite. O leite ataca o fígado e um gajo com o fígado em bolandas fica com ratés no berimbau. Como se vê, o Pedro era existencialista!....
Recontravoltemos a Pereira, o ingrato. Há cerca dum ano, pedi-lhe pelas almas, em nome da velha amizade, pela nossa comum devoção a Santa Marilyn Monroe, e por mais um par de coisas que não revelarei, que me digitalizasse um louquíssima história de Portugal em verso, perpetrada por outro Pereira, o capitão Joaquim António Pereira, inspirado autor de versos tão extraordinários como estes que se seguem:
Foram criadas escolas,
Duas, Médico-cirurgicas
Pra ensinar os rapazolas.
Tais criações eram úrgicas!
Ou
Veio depois Garcia de Orta
Incomparável botânico
Até salva gente morta
Fugida do horrível pânico.
(os leitores argutos terão adivinhado que a criatura homenageada na 1ª quadra era D. Pedro V)
Este Pereira, o capitão poeta, perpetrou mais uma dezena de livros, em diversos géneros (Dinheiro ou morte; Escrava do desejo; Zé Ninguém em África) desconhecendo eu se a sua pertinácia literária se traduziu em fortuna ou glória no seu tempo. Todavia, o seu nome era conhecido e reconhecido pela buliçosa juventude académica dos anos 40, mormente a de esquerda, pois bastas vezes vi o Rui Feijó, o José Pala e Carmo ou o António Alçada Baptista encontrarem-se e dispararem, mesmo antes do “como estás, pá?”, uma quadra do lírico militar. Isto nos anos oitenta! Quarenta anos depois da publicação do livrinho!
Não preciso de dizer mais para se perceber o meu interesse no livro que Pereira, o artista faltoso, se ofereceu prontamente para digitalizar, e fazer mais umas tropelias que, depois, nos permitiriam fazer três ou quatro exemplares que eu, a minhas expensas, mandaria encadernar para oferecer, sendo certo que um deles iria directo para Pereira, o atraso de vida e de promessa!
Passaram dias, passaram semanas, meses passaram e, de Pereira, o esfumado, nem novas nem mandados. Se, acaso, passa cá por casa, jura e trejura que vai adiantado na tarefa meritória de resgatar o olvidado e brioso guerreiro e literato. Ofereço-lhe, enternecido, um café, a CG brinda-o com chocolates e biscoitinhos, as gatas trepam-lhe para o colo em ronrons alucinados e felizes, e Pereira, sorve o primeiro e, voraz, dá conta dos segundos e, ala que se faz tarde, desaparece no negrume da noite, como um fogo fátuo ou o fantasma de Canterville. E segue-se o longo, espesso, penoso, silêncio. Pereira passa à clandestinidade, perde-se no nevoeiro e do livro, nicles!
Valerá a pena este esforço, este apelo lançado ao éter, este pôr na praça esta modesta desavença entre dois amigos, dois compadres, dois cúmplices, dois alegado jogadores de bridge, um dos quais real e outro, muito mais interessante, puramente inventado?
Alguém viu por aí este Pereira?
*a ilustração, não podia deixar de ser, é do admirável Cézanne, pai da pintura moderna, olho alucinado e tremendo, mão certeira e inventor de cores que só vemos (e se o merecermos...) depois de muito peregrinar naquela imensa obra. Ó Pereira, nem assim?