Au Bonheur des Dames 299
O que é que eu não percebi?
Comecemos pelo trivial: o Ministro da Educação revelou que há 1850 professores a horário zero. Horário zero? Quererá isso dizer que há quase dois mil mártires docentes que diariamente vão para o seu posto de trabalho e, uma vez lá chegados, encostam às boxes, contam as moscas, pensam no infinito e depois de umas horas nesta imensa solidão (que não me parece criadora) regressam a penates, cansados e desiludidos?
Não haverá nas escolas nada que eles possam fazer? Não estou a propor que lhes ponham uma vassoura na mão ou que os mandem fazer uma ronda pelas imediações à caça de dealers, de pequenos gatunos, de alunos que se piraram à aula, nada disso.
Mas não poderiam manter um gabinete de tutoring, substituir professores doentes, ajudar nos trabalhos docentes que eventualmente apareçam?
Ou então, se é que horário zero, é mesmo isso, nada, raspas de coisa nenhuma, não seria mais misericordioso mandá-los para casa, para um café, para um jardim, garantindo à mesma o salário que eventualmente recebem?
2 O excelente Jerónimo de Sousa veio, uma vez mais –e não há de ter sido o único – vociferar contra as ajudas à Banca que, segundo a sua limitada ortodoxia, só empata quem trabalha. Corrijam-me se estou errado: não é o partido desta cavalheiro que denuncia dia sim, dia não, o sufoco em que estão as empresas, sem créditos, sem meios, sem dinheiro para pagar aos desgraçados trabalhadores que ainda têm?
Será que, num regime capitalista, as pessoas podem prescindir da Banca? Será que na finada, e raramente chorada, União Soviética não havia umas coisas patuscas chamadas “bancos”? Será que na risonha China não há bancos?
Mas, mais e melhor, será que o auto-proclamado arauto dos trabalhadores portugueses e das restantes classes a eles aliadas, recomenda um regime socialista, como o do extinto “sol da terra”? Será que aí os trabalhadores recebiam coisa que se visse, tinham sequer uma pálida imitação do estilo de vida dos de cá, digamos um carrito, uma casa (mesmo se alugada ou a pagar em horrendas e duríssimas prestações) só para eles e familiares directos? Será que podiam fazer greve? Dizer mal do Governo? Falar da “ditadura do proletariado”, do “centralismo democrático” (coisas que, como se viu –e isso desde Kronstad – só existiam nos manuais de exportação e sempre, mas sempre, a favor da “nomenklatura”)?
Reina uma certa consternação nos meios ditos culturais. Que com os cortes “cegos” (surdos e mudos) no Orçamento da SÉCULO, vbai ser um descalabro. Que se vai assistir a um desemprego maciço entre os trabalhadores culturais que, numa percentagem de cerca de 70% (!!!???) são precários (!!!).
E nos filmes nacionais nem se fala. E naquela coisa patusca que era a dos subsídios reembolsáveis, ainda menos!
Conviria perguntar, começando pelo fim, se alguma vez os tais subsídios reembolsáveis foram honrados. Não foram. Andam por aí milhões de euros que alguém se esqueceu de devolver ao Estado. Muitos milhões! Eu só não percebo porque é que os chamavam “reembolsáveis”. Mais valia dizer que eram subsídios e basta.
No que toca ao glorioso cinema português, haja alguém que me explique esta coisa simples: em qualquer parte do mundo, mesmo no Irão, há receitas de bilheteira. Que, no caso dos países mais ricos e que mais filmes produzem (Índia, Estados Unidos, Japão, por exemplo), geram grandes lucros, mesmo quando os filmes não são exportados para o estrangeiro. Quanto é que, em média, é gerado por um filme nacional, dos nossos, dessas obras primas que produzimos sempre com o máximo de estrelinhas no painel dos críticos do Expresso e restantes jornais de referencia? Não me atrevo a perguntar se alguma vez um filme português se pagou a si próprio, se deu lucro ao produtor. Ingénuo, sim, mas não tanto. A pergunta que faço é mais simples: de que é que vivem as pessoas – e são muitas – que giram nesta actividade? Não é dos lucros, cuja ausência uiva, como os lobos de Aquilino. Então do que é? Será que andam por aí, disfarçados e irreconhecíveis, alguns mecenas amantes da 7ª Arte e do fantasma de Lilian Gish e pagham gernerosamenter tudo? Será que os produtores, os argumentistas, os realizadores e restante parafernália cinematográfica lusitana, não comem, não bebem, não se vestem, não educam filhos, não têm carro, doenças, encargos e vivem como Diógenes, dentro de um barril emprestado? Ó que admirável devoção à causa cultural e cinéfila!
Consta que os senhores políticos no “inactivo” vão deixar de contar com a famosa subvenção vitalícia a que o seu alto patriotismo, acrisolado amor da pátria, devotado empenhamento na causa pública, faziam jus. De que é que vai viver o nunca assaz louvado engenheiro Ângelo Correia, o portentoso Lello, o senhor Melancia que, coitado!, lá andou por Macau, mais desventurado que Fernão Mendes (e olhem que este foi não sei quantas vezes cativo de piratas horríveis e infiéis...), defendendo o bom nome de Portugal e Algarves, para pasmo de chineses, malaios, siameses e outros povos menos conhecidos, mas todos célebres pela roubalheira e pela desvergonha com que consideram indefinida a fronteira entre a fazenda pública e os bens privados? O meu velho, cansado e mal humorado coração sangra por estes cruzados modernos da boa governação, ora abandonados à mais negra e inclemente miséria.
Acabemos nessa coisa meritória e de excelência que é a nossa televisão. Um cavalheiro façanhudo e pouco dado a devaneios que, dizem chamar-se qualquer coisa Relvas, veio anunciar a iminente venda de um canal da RTP. E, para já, ter-lhe-á diminuído o orçamento. Eu, que sempre me surpreendi com o alto nível intelectual dos dois canais, do RTP memória, do RTP África, dos canais açorianos (desculpem-me se esqueci algum), nunca percebi que por lá se pagassem alguns ordenados que duplicavam ou triplicavam o do Presidente da República. Nunca! Bem sei que os eventualmente beneficiados eram autênticas catedrais do saber, da cultura, da imaginação, do arroubo, da ousadia, do desafio aos poderes constituídos, da coragem cidadã e do amor pela humanidade. Mas aqueles ordenados eram pagos por uma “empresa pública” cujo accionista era o Estado. Então o mais alto magistrado do Estado, da Nação, ou disto que por cá temos, recebe menos?
Em post-scriptum: 80% dos portugueses desconfia da Justiça. Dos Tribunais, dos Juízes, dos Procuradores, dos advogados, das leis e de quem as faz (?, céus que horror...). Todos se queixam, com razão, sem dúvida, e, pior, todos acham que é exasperantemente lenta, duvidosamente justa, inegavelmente de classe. De classe, repito. Ou de classes, pois também aparecem uns juristas fresquinhos e "muy progres" que acham que é preciso arrear no “sistema”, no “capital” na plutocracia e em sei lá que mais coisas.
Tremo, e sou jurista, só de pensar que alguma vez poderei ter de entrar num desses execráveis “palácios da justiça”, como testemunha, eventualmente como autor e, espero-o fervorosamente, nunca como réu (deixo isso aos cavalheiros da banca, da política e de outras malas-artes).
Não falo da impreparação científica, da falta de visão, de experiência de vida, que para isso lá estão o dr. Marinho (por quem Deus nos vem avisar!!!) com a sua tonitruância, ou o sr. Procurador Geral cuja eloquência sempre admirarei de joelhos e olhos postos em alvo. Falo, de raspão, dos mimosos auditores do CEJ apanhados a copiar. Além do mais, deviam ser castigados duplamente: pelo copianço e pela falta de discernimento demonstrado pelo facto de serem apanhados mais depressa do que um estudante de doze anos. Amanhã esses cavalheiros vão julgar-vos, queridas leitoras, respeitáveis leitores.
Deixo-vos com este piedoso pensamento.
Ámen!
A gravura: uma composição de Serge Poliakoff, pintor francês de origem russa que me anunciou, ainda eu andava no liceu, a arte moderna. Que emoção!