Não se fazem omeletas sem ovos
(considerações sobre a greve dita geral)
antes de mais uma prevenção: sou a favor do direito à greve, sempre fui, fiz greves de várias ordens e tipos (incluindo uma tentativa felizmente gorada de greve de fome) neste e no antigo regime. Mais: percebo que a gravidade do momento, o desespero das pessoas, a incapacidade mundialmente demonstrada por políticos de todos (repito: todos) os quadrantes de sair da espiral da crise, leve os trabalhadores organizados a tentar uma greve “dita” geral.
Digo “dita” geral por um par de razões que até esta hora todos os factos demonstram a quem hoje teve de andar pela cidade. E se andei, oh se andei. De carro boa parte do tempo, sem grande dificuldade mas também a pé pois tive logo hoje de me deslocar a vários sítios para fazer umas compras.
Não ponho em dúvida que no sector dos transportes públicos a greve foi um “êxito”. E se ponho aspas no “êxito” é apenas por uma breve mas dramática razão. É que para muitos trabalhadores e para muito boa gente que eventualmente não trabalha, a falta de transportes impede-os de fazer o que querem, seja ir para o emprego, passear ou fazer compras. Ou ir ao médico. Ou ir a uma repartição pública das que não fecharam.
Nem toda a gente tem carro, ou tendo-o está disposta a usá-lo para ir para um emprego longe, por receio de não ter estacionamento, das filas de trânsito, da despesa ou por outro qualquer motivo.
Também julgo, à hora em que escrevo, que muitos pais e sobretudo muitas mães (que são sempre as mulheres que levam com a pior parte) faltaram ao trabalho por saberem as creches, os infantários ou as escolas encerradas. Sem terem alguém que lhes tome conta das crianças a falta torna-se uma desagradável e cara opção.
Já não me preocupa tanto os tribunais e boa parte dos serviços públicos administrativos. Nos primeiros, dada a recorrente lentidão da justiça (sem aspas que no caso seriam mais do que merecidas, tanto faz. Não é num dia que um litigio menor se resolve. Nem num mês ou mesmo num ano. Os tribunais fechados por falta de oficiais administrativos ou abertos pouca diferença fazem. Não sei também se os senhores magistrados resolveram faltar. Confesso que pouco me importa porquanto, mesmo não faltando, não se nota muito o seu extremado labor. Quanto aos senhores advogados, duvido que um, sequer, tenha feito greve. Penso mesmo que terão gozosamente aproveitado a deixa para pôr em ordem um que outro processo. Ou seja, para eles a greve dos outros é uma bênção ou um bálsamo.
Nos hospitais e centros de saúde a coisa fia mais fino. Muito mais fino. À uma porque são frequentados por gente pobre, desamparada e sem grandes possibilidades de substituir estes serviços por uma ida a um médico de clínica privada. Depois, porque em muitos casos (nos hospitais) as consultas são marcadas com meses de antecedência e uma greve pode escangalhar fortemente a vida do doente. Claro que há serviços mínimos mas no caso das consultas a coisa não se reveste da urgência necessária. Depois, mesmo com os serviços abertos há o problema dos transportes... Lá iremos.
No comercio em geral, nomeadamente supermercados outros pontos de bens alimentares, nada vi de anormal. Bem pelo contrário. Nos dois centros comerciais a que tive de ir vi tudo em funcionamento. Tudo sem excepção, da FNAC às lojas de telefones, do “farrapo” aos restaurantes, do IKEA aos grandes grupos vendedores de electrodomésticos. O electricista veio cá a casa e na vizinha trabalhavam os pedreiros, os picheleiros e alguém que trazia um frigorífico. Correio também houve e não nos faltou a empregada. No café serviram-me a mesma bica de sempre, no quiosque havia jornais e até o arrumador de carros estava, como habitualmente, à espera da moedinha.
Não sei o que se passou nas grandes unidades industriais, nos estaleiros, na camionagem privada de longo curso. Na gasolineira abasteci o carro e, estupidamente esqueci-me de o lavar mas não me pareceu que as máquinas de lavagem automática seguissem as palavras de ordem da CGTP e da UGT. Vantagens do progresso.
Não irei preocupar-me demasiadamente com a guerra dos números que daqui a uma hora e meia estalará nos noticiários. Porque, de facto, bastam dois um três sectores chave para descontrolar o aparelho produtivo. Sem transportes e sem saber onde pôr os filhos, a coisa complica-se para a população laboriosa entre os vinte e os quarenta anos. Ou seja, qualquer um pode ser refém dos maquinistas dos comboios, dos condutores dos STCP ou da Carris, dos tripulantes dos barcos da outra banda ou dos senhores pilotos da TAP.
Não quero, com isto, deitar por terra a imensa generosidade, a capacidade de sacrifício de milhares de operários, de empregados dos serviços de quadros menores do Estado. A greve vai-lhes ao bolso. Eu bem que o sei que fiz as que me competiram fazer enquanto trabalhava. Mesmo se, como por duas vezes aconteceu, estive no local de trabalho a resolver questões inadiáveis, a receber pessoas que tinham entrevista marcada há que temps, a preencher ordens de pagamentos de ordenados dos meus subordinados e por aí fora. Declarei-me em greve, perdi o cacauzinho e aguentei as chatices do costume. Estava solidário com os que se indignavam (e são sempre poucos) com os que sofriam (e são sempre mais) e até com os que se estavam nas tintas (uma multidão). A greve geral vale pelo que enuncia muito mais do que pelo que provoca. Provoca obviamente uma perda de riqueza mesmo se nessa contabilidade se usem critérios pouco rigorosos. Por exemplo: a loja A teve os dois marçanos em greve e o patrão não conseguiu vender tanto como de costume. Na concorrência os empregados vieram e não só atenderam os fregueses do costume como ainda os que, fartos de esperar na loja ao lado, ali foram ter. Todavia nos sectores vitais, maxime os transportes, temos uma perda líquida (por exemplo: a TAP deixou apeados 50.000 passageiros, ao que se diz). Só que nem todos os sectores são do mesmo género. Na função pública o que hoje se não fez recupera-se sem dificuldade nos próximos dias. Na grande indústria exportadora (calçado, algum têxtil, por exemplo) um dia pode significar um contrato perdido ou mesmo mais. Ao que sei a Auto-Europa decidiu que o dia de hoje seria não fabril e aconselhou os não grevistas a fazer férias. Mas se esta empreza aguenta muitas há que poderão sentir dificuldades.
E aí começam os problemas e as dúvidas. Quem é que perde realmente com a greve? O patrão? As agências de rating? A pátria imortal? O Governo? O “sistema” ou mais simplesmente o fmi (que se está nas tintas) o BCE (idem aspas) ou a senhora Merkel?
Consta que no Japão, os trabalhadores quando se ofendem com os abusos do patronato, do capital, dos ritmos de trabalho, com a reificação (oh palavrão destemperado) do proletário, com a alienação e a usura do sistema, põem um fita preta à volta do braço ou da testa. E que os patrões se sentem tremendamente envergonhados ao ponto de poderem ceder e tentar negociar. E assim a riqueza não se perde e tudo entra na ordem da desordem capitalista e nipónica.
Só que, por cá, não é assim. Nunca conheci um burguês que se envergonhasse com a muda censura dos seus subordinados. Nunca. Nem com a censura gritada em alta berraria. Nem com uma greve mesmo quando esta lhe entra pelo bolso. Estou a ver boa parte deste nosso patronato a fazer contas ao que poupam em salário e ao que a empresa perde em produção. A empresa perde, o patrão nem tanto. Tem a almofada do Estado, uns subsídios daqui e dalém, alguns argumentos de peso para exigir mais trabalho no dia seguinte e pronto, já está. E o medo de muito gente que teme perder aquele miserável emprego. As greves são sempre melhores em épocas de alta do que nestas em que ninguém vê, sequer imagina, a luz ao fundo do túnel.
Considerei sempre pornográfica a expressão “êxito” para definir a adesão dos trabalhadores. O êxito de uma acção de massas não se mede pelo número dos aderentes a essa acção mas pelos efeitos imediatos e, sobretudo, mediatos desse desafio.
Considerei sempre risível a extrapolação que os Governos normalmente fazem dos números (sempre contestáveis) das mesmas adesões. Ignora-se sempre o sacrifício das pessoas, a “cidadania” demonstrada, os valores de solidariedade comprovada como se isso fosse coisa pouca. Não é. As sociedades precisam disso mais do que pão para a boca.
Acho insuportável (alem de estúpida) a gala com que certos agrupamentos políticos fazem da greve e das multidões envolvidas. Parece que pensam que aquela malta que saiu à rua é malta sua. Não é. Basta ver os votos em eleições para perceber que o país social não é o país político.
E há sempre um problema final. A greve, mesmo geral (e nunca é geral) significa exactamente o quê, transforma-se em quê e dá saída a quê?
Só os tolinhos (e hoje mesmo, no Público, apareceu um) é que acham que a greve geral é uma festa. Não é. É um duro sacrifício, uma provação, um desafio, mas não é uma festa. É um sinal de dor, de receio pelo futuro (para já não falar no presente) um protesto por vezes sem um alvo claro e definido, mas um protesto. A greve só é festiva para quem não sente o áspero peso do suor, do cansaço diario, do horizonte curto e feio, A geve é uma palavra que enche a boca de muito intelectual que entende ser sua missão iluminar a classe operária. Só quem nunca trabalhou com operários é que pode pensar que eles precisam de um messias, de um padre laico, de um “intelectual orgânico”. Aliás isso percebe-se quando se ouve muito boa gente pavonear-se, estremecer, ter um orgasmo à simples menção da palavra proletário. Também já quase os não há.
A menos que se entenda que, aos 64 anos de idade, o senhor Jerónimo de Sousa, quadro sindical desde 1971 e deputado desde 75 é ainda, e sempre, um afinador de máquinas. Convenhamos que se lhe descontam a tropa e a infância e juventude resta muito pouco tempo para proletário. E nem sequer se fala dos luminares do BE, pelo menos os mais conhecidos (os que “falam”) que esses nem de perto nem de longe viram uma fresadora, um tear, ou uma pá de pedreiro...
d'Oliveira fecit 24.11.11