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O Oriente não era vermelho
A propósito do livro de Miguel Cardina (Margem de certa maneira, o maoísmo português 1964-1974) entendeu Pedro Lomba, no “Público” (24.01.12), tecer um par de comentários sobre uma eventual amnésia” histórica dos militantes m-l. E sobre a sua não assumpção de responsabilidades.
Antes de mais registe-se uma declaração de interesses: figuro no livro, aliás sob a benévola caracterização de militante free-lancer(!!!) e, de facto, dei o corpo ao manifesto durante algum tempo. Todavia, logo que começaram a ser conhecidos alguns – e os primeiros – aspectos repressivos da “Revolução Cultural”, desandei desse território, indignado, enojado e ...desesperado.
Por diversas vezes já aqui referi a China, a sua política de ontem e de hoje, e penso não ter sido meigo na apreciação feita.
Convém, todavia, voltar a esses anos baços, aos meados de sessenta, e explicar um pouco o clima ideológico e político em que vivíamos todos quantos (éramos poucos, pouquíssimos, valha a verdade) não nos resignávamos a viver dentro do salazarismo, do reviralho cansado, gasto e inútil ou empolgados pela estrela soviética que empalidecia de dia para dia.
Começando por esta (é inútil falar do paraíso triste português e da girândola mais bacoca que barroca da “oposicrática” nacional), é bom lembrar que no início dos sessenta o mundo filo-comunista vivia sob duas perplexidades: a repressão (esmagamento da “revolução húngara”, o desastre da evolução da RDA, desde a monumental greve de 17 de Junho de 1953 até ao seu lógico desenlace - o muro, 1961- que isolava definitivamente Berlin leste e se saldou em muitas centenas de mortos e dezenas de milhares de presos por tentativa de fuga) e a incapacidade (social, cultural e económica) de superar o chamado mundo capitalista.
A URSS, vivia sob o signo do 20º congresso do PCUS onde secretamente (!!!) se denunciava o “culto da personalidade” e os crimes do estalinismo e se notava alguma ambígua normalização. Porém, o “degelo” acabou subitamente em 1964 com a queda de Nikita Krutchev e a tomada de poder por Leonid Brejnev.
O aparecimento das correntes maoístas tem muito a ver com o que acima esquematicamente se releva. Em Portugal, as coisas seguiam este main stream mesmo com os habituais atrasos. E com a notória falta de informação geral e particular (a que circulava nos círculos mais radicais da oposição). O primeiro maoísmo português prende-se com a inflexão política do PCP, o novo rumo assumido depois de Cunhal se ter evadido de Peniche. E, nos meios juvenis, com a incapacidade do partido perceber a nova situação criada depois das lutas contra o dectreto 40.900 e do sismo Delgado. Isso tornou-se dramaticamente claro nos anos 61/2 e na crise académica do mesmo nome. Pessoalmente, recordo que também não foi despicienda a razia policial nos meios estudantis ligados ao PC. Razia essa que demonstrava a permeabilidade das organizações juvenis às investidas da polícia que controlava com facilidade numerosos infiltrados nela. E com as pequenas traições que faziam cair sem dificuldade os “aparelhos” de faculdade. A coisa aliás continuou assim durante muito tempo chegando ao ponto de em Lisboa em meados dos sessenta (traição Nuno Alvares Pereira, cfr blog “agualisa 27.3.07) se assistir a uma verdadeira derrocada. Mas em Coimbra já tinha havido um antecedente perigoso em 62 que resultou na prisão de quase todos os membros das células estudantis. De facto, um “funcionário” do PCP chamado Eduardo Viana entregara toda a organização dando mesmo os nomes que correspondiam aos apelidos dos militantes. No entanto, os erros conspirativos começavam nos controleiros estudantis que faziam autenticas fichas dos militantes num alarde de falta de cuidado que dizia muito da impreparação para a luta clandestina.)
Nada disto predispunha especialmente a militar no PC. Uma coisa era juntarmo-nos à multidão participante, aos militantes associativos, aos organismos culturais estudantis, outra era a situação de semi-clausura dos jovens comunistas que respondiam muito esquematicamente ao que se passava de novo no seio duma juventude pré-contestária. 68 revelaria, e de que maneira, o abismo que separava os exegetas do pc e o resto da “malta”.
Que a URSS era um sufoco percebia-se bem: a literatura saída do “degelo” (o título aliás de um romance de Ilya Erenburgh então publicado) vinha provar tudo o que de depreciativo se escrevera antes e que durante muito tempo passou por mera propaganda “anti-comunista”.
O abandono de centenas de intelectuais a partir da crise húngara e do XXº Congresso não permitia outra leitura. O muro, já citado, e a erosão já visível da influência dos PCs ocidentais no mundo do trabalho, as farroncas de Krutschev e o seu posterior e brutal afastamento, o aparecimento do movimento dos não-alinhados, o progresso continuado das social-democracias e a melhoria visível do nível de vida na Europa Ocidental retiravam à União Soviética e aos seus propagandistas muita da inicial atracção.
Finalmente, a emergência da China Popular e a mitologia criada sobre a “longa marcha”, a política das “cem flores” o desafio do “grande salto em frente”, pareciam mostrar um outro socialismo, um outro igualitarismo e, ó ingenuidade!, acreditávamos piamente que tudo era feito pelas bases, decidido por elas, que os dirigentes eram modestos que partilhavam as dificuldades dos aldeãos, enfim que era tudo diferente do reino de aparatchiks que faziam a nomenkatura soviética. Inclusivamente, esgrimia-se com o facto de o direito de greve fazer parte da lei fundamental chinesa, ao contrario do que se passava no restante bloco socialista onde a greve era impensável dado o Estado ser dirigido pela “classe trabalhadora”.
O primeiro maoísmo português, pelo menos ao nível dos núcleos estudantis, alimentava-se desta verdade revelada e bebia o seu escasso conhecimento da realidade chinesa num par de autores americanos e ocidentais que faziam a apologia da vida aldeã e das virtudes espartanas chinesas. Isto durou até à revolução cultural, perdão “Grande Revolução Cultural e Proletária”. Subitamente, a erupção de massas histéricas de jovenzinhos brandindo o “pequeno livro vermelho” (uma antologia pobre e desconsolada de citações de Mao), a humilhação de nomes respeitados do PCC (Chu-En Lai ou Liu Shao Chi) o desaparecimento misterioso de Lin Piao as voltas e reviravoltas de uma situação que parecia incontrolável, a teria do “imperialismo tigre de papel”, o mau relacionamento entre a China e o Vietnam, tornaram muito complicada a situação de alguma gente que tinha lido e propagandeado as primeiras teses chinesas.
Depois, e não é despiciendo, vários sinologos respeitados não só começaram a publicar novos livros sobre a China mas sobretudo puseram em causa os testemunhos de uma série de intelectuais radicais que tendo feito a visita do costume ao Oriente (que era vermelho) sem saber uma única palavra de chinês vinham de lá tão extasiados como os primeiros turistas revolucionários da União Soviética ou de Cuba. Era tão extraordinário o que estas criaturinhas diziam, tão apologéticas eram as suas impressões de viagem, que só uma criatura necessitada de muito conforto espiritual poderia ler sem esfregar os olhos ou duvidar.
O segundo ponto de ruptura deve-se à actuação dos grupos maoístas franceses durante “revolução de Maio” francesa. Os tiques autoritários, o obreirismo sem peias, a “religião” revolucionarizada que pregavam ia tão ao arrepio do entusiasmo, da utopia, da “jouissance sans frontiéres” e da livre discussão que, por força, só um recém-convertido conseguia engolir.
Entre nós, cedo se começou a perceber que dos restos da FAP e do CMLP pouco se podia fazer no sentido de criar um movimento unificado e sólido que disputasse aos “revisionistas” o controlo das faculdades. Milagre foi, porém, que, mesmo divididos em escolas e capelas que se “sissiparizavam” constantemente, se tivesse verificado tanta e tão permanente influência dos “esquerdelhos”. Ou, talvez, não: o PC depois de 68, da invasão da Checoslováquia, do que se começava a saber do gulag brejneviano, dos refuzniks, da dissidência interna soviética, perdia claramente no tabuleiro das assembleias tumultuosas na universidade. Mesmo no capítulo da oposição à guerra colonial era mais entusiasmante “desertar com armas” do que ir para as colónias fazer propaganda anti-guerra. Mais entusiasmante e menos perigoso, acrescente-se.
Pedro Lomba que, aliás, de parvo não tem nada, não conheceu, muito menos viveu, esta complexa situação. Confunde dois planos. O da idade principalmente. O maoísmo juvenil não era exactamente o mesmo dos velhos dissidentes do PCP. Alimentava-se de fábula, de ignorância e urgência anti-guerra. O estudo do marxismo leninismo de tempos anteriores estava resumido ao “pequeno livro vermelho” e às obrinhas de uma senhora chamada Marta Harnecker que produzia uma espécie de “reader’s digest” pobre e sensaborão para uso de jovens menos exigentes.
Quando, porventura, antigos maoístas que chegaram intactos a 74 e prosseguiram até bem depois, falam desses tempos, falam só da sua perdida e mal gasta juventude. Tentam justificar sacrifícios e perda de tempo. É a única memória que têm. Não creio que a maioria deles seja capaz de assobiar para o lado quando lhe falam das dezenas de milhões de vítimas da revolução cultural. Muito menos dos crimes de Pol Pot ou, já agora, da tragédia dos boat people vietnamitas. Do que li apenas me apercebi do travo de auto-ironia de uns, da melancolia de outros, da implícita confissão de tempo perdido de ilusões mortas.
(nota necessária e final: não tenho procuração, nem a quero!, de quem quer que seja que tenha passado pelas fileiras maoístas. Deixei de dar para esse peditório entre 68 e 69 mesmo se, até ao 25 A tenha sido advogado de dezenas de militantes m-l como, aliás, de quaisquer outros que chegassem ao meu modesto escritório. Mais do que as escolas ou as capelas interessava-me combater o regime.
Penso, porém, que a generalização apressada, agora muito em voga, levada a cabo por uma geração conservadora jovem e desempoeirada deve ser rebatida a todo o transe. E o livro de Cardina merece melhor comentário do que a rápida leitura de Lomba).
Gostaria de dedicar este folhetim a dois amigos desaparecidos: João Pulido Valente e João Quintela. E a um semi-vivo que foi “compagnon de route”: o meu tio Joaquim Patrício Curado, devastado pelo Alzheimer, que, em Caxias, perguntou ao carcereiro se não tinha direito a um copo de vinho para acompanhar a miserávbel refeição que se dava aos presos políticos.