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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Um caso para o INA que sucede ao INA estudar

JSC, 29.02.12

 

Há alguns meses o Governo anunciou a extinção de uma série de organismos públicos, no âmbito da execução de um plano pomposamente baptizado de PREMAC - Plano de Redução e Melhoria da Administração Central. Dos diversos organismos a extinguir, então referidos, aparecia o INA- Instituto Nacional de Administração.

 

Na altura aquilo pareceu-me um pouco confuso. Como poderia o governo extinguir o INA? A resposta veio agora em forma de Decreto-Lei, com a rubrica de Vítor Gaspar.

 

O Decreto-Lei n.º 48/2012. de 29/02, aprova a orgânica da Direcção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas. Da leitura do mesmo conclui-se que o governo extingue o INA, conforme art.º 9.º, e cria a Direcção -Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas, que “sucederá ao Instituto Nacional da Admnistração”. Contudo, o art.º 1º daquele diploma impõe que a nova Direcção Geral seja “abreviadamente designada por INA”.

 

Ou seja, nos termos do diploma que estabelece a orgânica da recém criada Direcção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas, esta entidade não vai usar a sigla DGQTFP, mas antes a abreviatura INA, da entidade extinta.

 

Conclusão: o INA sucede ao INA e o Governo bem pode celebrar mais uma medida reformista do PREMAC - Plano de Redução e Melhoria da Administração Central.

A Fazer de Porta Voz da Troika

JSC, 28.02.12


Andavam por aí a dizer que o Governo anda a mando a troika. Fala-se em minutas de diplomas, em inglês, que o Governo traduz e faz publicar no Diário da república.


A reacção mais virulenta às conferências de imprensa dos homens da troika terá partido do banqueiro Fernando Ulrich, quando disse que Portugal não podia andar a mando dos homens de FMI, de quarta ou de quinta linha.


Admito que se as conferências de imprensa fossem asseguradas pelos homens do FMI de primeira linha ou pela Sr.ª Lagarde, isso já não incomodasse Fernando Ulrich.


Curioso é que o cenário das conferências de imprensa da troika mudou. Em vez da troika temos o Ministro das Finanças, Vitor Gaspar, a anunciar as conclusões e as medidas a que os homens da troika chegaram.


Vítor Gaspar assume o papel de “faz de conta que manda”. As televisões vão passar até à exaustão a figura do ministro a dizer o que os homens da troika querem que seja dito.


Na verdade, seria tudo bem mais claro e transparente se fosse a troika a falar e a mostrar a vergonha de sermos governados por estrangeiros, em vez de termos, agora, a dupla vergonha, de ser o ministro das finanças a fazer de porta-voz da Toika.


O que pensará agora Fernando Ulrich?

Estes dias que passam 267

d'oliveira, 27.02.12

 

Mais um telegrama aos amigos de Krugman

 

 

 

Foi hoje, em conferência de imprensa, depois de receber o doutoramento honoris causa das três universidades públicas.

 

Paul Krugman, que acha que não se devem tomar mais medidas de austeridade em Portugal (que segundo ele, tem 75% de hipóteses de continuar no euro se continuar a cumprir os acordos com a troika...), propõe um corte de 20% nos salários portugueses que, segundo ele, são demasiado elevados em relação aos salários europeus!

 

Ter-se-á Krugman enganado de país e acha que estamos na Espanha ou na Bélgica?

 

Olhe que é aqui, no cantinho sudoeste da Europa, professor Krugman. No cantinho sudoeste, frente a Nova Iorque, à beira mar....

 

Democracia e Dinheiro

sociodialetica, 25.02.12

 “Um dos maiores problemas enfrentados pelos votantes em eleições políticas (...) é a força dos factores emocionais não-conscientes. O poder dos factores emocionais e não-conscientes é reconhecido a tal ponto que ao longo das últimas décadas se desenvolveu uma maquinaria monstruosa de influência eleitoral” (António Damásio, O Livro da Consciência. A construção do Cérebro Consciente, Lisboa, Círculo Leitores, pag. 341)

 

As campanhas eleitorais são hoje um espectáculo dos órgãos de informação, com destaque para a televisão. A grande maioria dos cidadãos assumem como um facto aquilo que lhe parece ser os acontecimentos. Há muito que se diz que em política “o que parece é”. Hoje sabemos que “ introduzido (...), 'P', algo é P se, e somente se, parece P − as pessoas estariam dispostas a usar 'P' para atribuir-lhe as propriedades correspondentes − em condições normais de observação” (Philip Pettit, A theory of normal and ideal conditions, Philosophical Studies 96). Esse “é que parece” expressa-se em muitas situações e essa aceitação é consolidada em usos e costumes que quotidianamente são forjados pelas instituições dominantes.

Três apontamentos sobre as aparências.

Em primeiro lugar a importância do medo na aceitação da organização social e política, embora admitindo algumas modificações nas posições do xadrez político (bipolaridade). O sentimento de medo é um factor inibidor da lucidez de julgamento. Os sentimentos, desenraizados de uma análise fria dos problemas, falam mais alto. Esse irracionalismo é construído pelo estado de pânico que sistematicamente os órgãos de informação lançam sobre as populações: o perigo de uma doença, os riscos de epidemia, a força devastadora dos mercados, a ameaça do desemprego, a dívida soberana, a destruição ambiental do planeta, os conflitos armados, a insegurança e aumento da criminalidade, a Merkle, a Grécia o Sarkozy, e outros que tais. É uma forma da santa aliança entre o poder constituído e os meios de informação, que, sem prejuízo do grande trabalho que prestam à liberdade, se ocupam dessa informação “fidedigna e objectiva”. O pânico difunde-se também pelo que não se informa sobre situações normais, actos enaltecedores e boas práticas.

Em segundo lugar, o que nos preocupava no início da escrita destas glosas ligeiras sobre as campanhas eleitorais: a existência de um conjunto de técnicas e formas de manipulação e actuação que garante, a quem tem dinheiro para as comprar, uma elevada probabilidade de sucesso. Sucesso medido pelo impacto emocional sobre os cidadãos, pela probabilidade de votos, resultado de uma sábia e milionária manipulação da racionalidade pública. Falas mansas – “o eleitores sabem o que querem”, “os cidadãos revelam muito civismo”, “o voto é uma arma” – fazem crer numa capacidade de decisão que não existe. O livre-arbítrio individual está fortemente condicionado pelo contexto social, cultural e político. E como poderá não estar quando as campanhas eleitorais decorrem em torno de personalidades e não de ideias defendidas por eles, quando as imagens mostradas na televisão são frequentemente uma representação teatral? Cada vez mais, para realizar um comício, uma festa, uma sessão de contactos com a população, não é preciso ter apoiantes, basta comprar “chave na mão” um comício num certo local, com este e aquele aparato, com tantos participantes. Quem estará a reparar que grande parte dos presentes tem aspecto de emigrantes ou que são as mesmas caras que apareceram noutro comício, quiçá de outro partido? Como poderá não estar quando o marketing político infunde no inconsciente sentimentos que vão condicionar as nossas escolhas racionais, que frequentemente nos deixa a possibilidade de optar por superhomens brancos ou superhomens pretos, excluindo a possibilidade de escolhermos pessoas iguais a nós para governar o que é de todos nós?

A situações de pânico exigem superhomens? Brecht respondeu e ainda hoje é válido:

Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

(...)

Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?

Em terceiro lugar a impunidade da mentira. Qualquer país seria um espaço pequeno para caberem tantos narizes de Pinocchio se as mentiras, em campanha eleitoral ou no poder, tivessem qualquer punição, mais que não fosse dessa forma infantil. Durante a última campanha eleitoral para as legislativas havia um cartaz que me impressionava esteticamente. Enquanto almoçava olhava para ele, do outro lado da rua, alertando os jovens contra o desemprego que o PS tinha criado. Sendo um cartaz do PSD aquela mensagem, com a dura aparência da objectividade, aconselhava uma mudança de política. Que dizer hoje desse cartaz? Que faltava a segunda parte da lição “espera para veres em quanto conseguimos aumentar o desemprego, se chegarmos ao poder”. Quase todos mentem, todos sabem que mentem e continua-se nesse círculo infernal de manipulação da opinião pública.

E depois? Porque é que se fala tanto da Grécia e tão pouco da Islândia? Porque se fala tanto dos EUA ou da Europa e fala-se tão pouco da América Latina ou da Ásia, onde decorrem alterações profundas no funcionamento da sociedade?

E depois? Enquanto houver uma sociedade com a estrutura actual o poder está sempre do lado dos ricos. Ter riqueza é ter poder sem o parecer ter. E o poder e a riqueza saberão sempre influenciar decisivamente as nossas mentes. O livro “1984” de George Orwell já não é uma ficção, é uma realidade mostrada com grande crueza (a manipulação da população por uma ditadura sofisticada), mas que mesmo assim não consegue ser entendida como o mundo em que vivemos. Enquanto Chaplin em “Os Tempos Modernos” fazia rir (tomando como referência a produção industrial em cadeia), George Orwell aterroriza-nos, mas nenhum deles consegue impor-se à nossa consciência do mundo e percebermos que aqueles somos nós, nós no essencial da nossa vivência.

E depois? Ainda se poderá crer que as leis tanto podem servir para oferecer o banquete ao nobre como uma refeição saudável e equilibrada aos pobres? Ainda se poderá acreditar que a Lei puna severamente as mentiras, a diferença entre o que se diz que se vai fazer e o que se faz? E não se venha com o argumento de que “a realidade mostrou que..”. Se eram incapazes de conhecer a realidade também eram incapazes de nos governarem. Se um trabalhador qualquer desconhece as funções do seu posto de trabalho é despedido. Os membros eleitos do Estado também o devem poder ser.

Como a existência de eleições é uma conquista da humanidade que há que preservar, aqui ficam algumas medidas práticas para se terem políticos mais idóneos:

  • Só pode ser candidato a cargos públicos quem antes tenha exercido uma actividade profissional, atestada por entidade competente e sujeito a fiscalização, durante cinco anos.
  • Só pode ser candidato a cargos públicos directamente relacionados com a economia nacional quem tenha um agregado familiar e tenha vivido durante três anos com o salário mínimo ou com o subsídio de desemprego.
  • Todos os candidatos têm que ter classificação de bom num exame sobre cultura, história, filosofia e sociologia, produzido por incorruptíveis e fiscalizado por um conjunto de cidadãos cultos sorteados aleatoriamente.
  • Todos os candidatos têm de fazer testes psicotécnicos, de linguagem corporal e de programação neurolinguística, só ficando admitido se não conseguir mentir com total desfaçatez.

Segundo a Constituição “a soberania (...) reside no povo”. Será que essa soberania se esgota no voto? Será que a Constituição está a ser respeitada quando está deliberadamente a ser violada, a mando externo ou interno? Porque não atribuir ao Tribunal Constitucional a fiscalização dessa soberania, de uma forma proactiva? A qual Tribunal Constitucional?

Não é o sonho que comanda a vida. Enquanto uns sonham outros controlam-nos. Mas a heterodoxia é o oxigénio do ar fresco.

au Bonheur des Dames 306

d'oliveira, 23.02.12

Zeca, três momentos

 

 

 

1

Mandarim, praça da República, anos sessenta: entro no café, subo ao primeiro andar e vejo o Jaime Magalhães Lima a chamar-me. Ao lado dele um tipo mais velho com óculos.

 

"Olha lê isto", diz-me o JML. Leio, espantado, comovido, excitado, maravilhado as letras do “Meninos do bairro nego” e mais outra que sairá na mesma altura e que não tenho presente. 

 

Durante uma boa hora, desfiz-me em cumprimentos ao autor, sem saber como se chamava. Quando saiu, perguntei ao Jaime: "Quem é este gajo?" – "É um tipo lá de casa, chama-se José Afonso e canta fados".

 

 

 

2
Jardins da Associação Académica, 1969 Abril ou Maio. O Zeca vem cantar numa sessão de apoio à malta em greve académica. Nessa altura, já somos amigos há um par de anos. Antes de cantar o António Mendes de Abreu e o João Nazaré vão, comigo. falar ao Zeca. E cantam-lhe um tema dele, belíssimo, ainda inédito. O Toninho e o João eram duas aves de rapina com uma memória prodigiosa e sabiam cantar. Ou, pelo menos, não desafinavam como eu. “eia ó sol de Verão/somos nós os teus cantores..”

 

O Zeca, ouve, entusiasmado e diz-nos “ó pá isto é mesmo porreiro!” já não se lembrava de o ter composto. E muito menos da letra. Em cinco minutos revisitou, com os meus dois comparsas, a música enquanto eu, fadigosamente, escrevia a letra em letras garrafais. E cantou-a como nunca, como se fosse a vez primeira...

 

3

Anos setenta e muitos, Madrid, estádio de Vallecas, ainda Franco era cadaveroso se não estou em erro. Diante de uma enorme multidão o Zeca canta enquanto o povoléu ruge entusiasmado. Depois, ao apresentar uma canção, não sei qual, diz dois ou três palavrões portugueses. No fim quando me junto a ele, pergunta-me, embaraçado: "Ó M., não achas que fui um bocado forte com aquele estardilho?"

 

Olho para ele, como quem olha para um menino e lembro-lhe que em Espanha coño se diz a cada três palavras. O Zé sorri, aliviado.

 

PS: anos oitenta, Auditório Nacional de Carlos Alberto, Porto. O Zé pisa pela 1ª vez um palco nacional, pertencente ao Estado. “Porra, M quem diria que nos encontraríamos aqui. Eu a cantar e tu de anfitrião”. – “E pagador Zé, e pagador com dinheiros públicos”. E rimo-nos.

 

Passavam vinte anos desde aquele dia no Mandarim.

 

E agora passam vinte e cinco desde que ele se foi. E trinta da morte do Adriano. E já um sem o Zé Niza. E dezoito sem o António Portugal. E... e...

 

*a gravura: António Portugal, grande músico, grande amigo que bem pode, aqui, representar os restantes, também músicos, também amigos queridos e também, ahimé!, mortos.

em memória do "Toninho" Mendes de Abreu e com um abraço ao João Nazaré que, espero, ainda por aí andará

 

o leitor (im)penitente 70

d'oliveira, 22.02.12

 

 

A imortalidade possível

 

Pois é queridas paroquianas. Hoje começa mais uma edição das “correntes d’ escritas” na Póvoa do Varzim cujo programa não forneço por, por duas vezes, mo terem mandado deteriorado. A Manuela Ribeiro e o Francisco Guedes serão óptimos em tudo mas no que toca a computadores andam na mesma divisão que eu: a terceira distrital!

 

De todo o modo, aquilo é sempre interessante pelo que uma ida à Póvoa,  para aliviar deste carnaval merdoso a que se assistiu, vale sempre a pena.

 

Este ano sou cabeça de cartaz. No exacto sentido da palavrinha. Ora observem bem a figurinha que encima estas mal alinhavadas linhas e vejam quem lá está sob as letras vermelhuscas. Nada mais nada menos do que este cronista rindo-se como um  cabinda e segurando uma revista dedicada ao Eduardo Prado Coelho. Ao lado, mas menos visível, o Francisco Belard, flor dos bons críticos da praça e um dos cavalheiros que mais sabe (sabe mesmo mais do que eu!) de coisas inúteis e excessivas como as que se relacionam com a chamada cultura.

 

De que nos riríamos nós é mistério. De algum escriba pedante? De alguma piada atirada pelo Manuel Rui, criatura vinda dos velhos tempos coimbrinhas e que não falha uma única edição do “correntes...”? De algum participante menos feliz? 

 

Nada, não me lembro. Nem interessa. O que relevo aqui é que um dos temiveis fotógrafos da organização nos pilhou a mostrar o corta palhas escancarado e, pimba!, toma lá fotografia.

 

A Manuela Ribeiro telefonou há um par de semanas a pedir-me autorização para estampar a minha carantonha no cartaz. Bem que a avisei que aquilo não era a melhor recomendação para este excelente encontro de literatos que todos os anos alvoroça a cidade poveira. Mas ela firme e impretérita insistiu. Tentei pedir-lhe uns dinheirinhos pelo uso da imagem. Riu-se perdida e vexantemente.

Vencido, mas não convencido, acabei por permitir que o meu envelhecido rosto circulasse em cartaz efémero em vez de ser, com eu mereceria, em selo do correio ou nota de banco!

Não se pode ter tudo e, desde que no longínquo ano de 1962, o meu fácies foi fotografado de frente, de lado e a três quartos pela PIDE (um dia destes mostro-vos...) para figurar numa dúzia de processos, esta é a primeira vez em que alguém me pede a minha autorização.

Por junto a Manuela oferece-me alguns exemplares. Pelo menos esses salvar-se-ão da indignidade de serem rasgados, consumidos pela maresia poveira ou por futuras chuvas para já não falar de algum biltre que resolva escrever sabe-se lá que brejeirices atrevidas sobre a minha pobre cara. 

 

Uma manhã como as outras

sociodialetica, 22.02.12

O cortinado entreaberto lançava o sol no amplo espaço do quarto.

Al entre o inebriamento do sono e o encantamento pela claridade levantou-se e olhou empenhadamente a paisagem.

O Tejo em largo lençol acinzentado revelava uma tranquilidade capaz de paralisar o pensamento. As nuvens altas e finas permitiam o nascer do sol sobre a ponte Vasco da Gama reflectindo-se fortemente no rio. Na rua quase deserta, nem carros nem pessoas.

Usufruía um bem-estar inopinado a olhar aquela paisagem e a sentir o calor dos jovens raios solares, filtrados pelos vidros da janela, lambendo o seu corpo nu. Recordou-se dos climas tropicais. Era assim, com aquela claridade e tranquilidade da paisagem que acordava em quarto de pé alto sem obstáculos à entrada plena da força da natureza.

Voltou a deitar-se.

Sentiu nas suas costas o aconchego quente da companheira ainda adormecida e atraída pelo seu corpo. Os peitos cheios marcando presença, a anca roçando, as pernas entrelaçando-se com as suas, num jogo mímico de dedos de pés. A volúpia tomava posse do seu sentir, prolongando o afago dos raios de sol.

Entre beijos e carícias, usufruindo de cada centímetro de roçar de pele, os corpos estremeceram na alegria da dádiva do egoísmo do prazer.

Sentia-se bem.

O fim-de-semana fora dos seus lugares comuns, o espaço claro daquele quarto de hotel, a fragrância dos corpos, o chuveiro forte chicoteando-lhe a pele, talvez aquele vago sentimento indefinido de tropicalidade, permitia-lhe usufruir por segundos a eternidade de um contentamento muito especial. Talvez nem melhor nem pior que outros, mas fugindo do presente, mas intensamente diferente, mas estonteantemente apaziguador.

 

Depois de dormir um pouco mais, desfolhou o livro e sonhou. Acordou com o movimento de Mila, que se desenrolava no aproveitamento integral da alcova. Levantaram-se, arranjaram-se e prepararam-se para ir tomar o pequeno-almoço.

A sala tinha ainda poucos hóspedes no habitual cerimonial de se alimentarem. Uma inglesa exprimia alto os seus pensamentos, dois casais formavam casulos, os funcionários acolhiam-nos solícitos. Tudo se desvaneceu para Al ao deparar com uma jovem, sozinha numa mesa, que o olhou num misto de indiferença e atenção. Corpo esguio, cabelos aloirados caindo sobre os ombros, com um olhar que o fazia estremecer. Uma melancolia inopinada sobrevoou Al.

Nunca a tinha visto e era como se a conhecesse há muito. Perturbava-o e comportava-se como se nada tivesse acontecido. Não sentiu nenhum calor, nenhuma ansiedade, mas antes uma vaga serenidade plena de angústia.

Al e Mila ficaram numa mesa próxima, mas sem visibilidade adequada para o centro da sua perturbação. Puro acaso, sem regras acordadas. Al vislumbrava-a atraído pela ambiguidade. Passado alguns minutos a hóspede levantou-se, virou-se ligeiramente, ondulou o corpo e saiu.

Tinha a certeza que nunca a tinha visto e no entanto aquela melancolia sorridente, aquela feminilidade eram-lhe muito familiares.

Al ficou perturbando, esvoaçando pelo infinito do tempo e a imensidão do espaço, impregnado da humidade tropical.

Au Bonheur des Dames 305

d'oliveira, 21.02.12

O Oriente não era vermelho

A propósito do livro de Miguel Cardina (Margem de certa maneira, o maoísmo português 1964-1974) entendeu Pedro Lomba, no “Público” (24.01.12),   tecer um par de comentários sobre uma eventual amnésia” histórica dos militantes m-l. E sobre a sua não assumpção de responsabilidades.

 

Antes de mais registe-se uma declaração de interesses: figuro no livro, aliás sob a benévola caracterização de militante free-lancer(!!!) e, de facto, dei o corpo ao manifesto durante algum tempo. Todavia, logo que começaram a ser conhecidos alguns – e os primeiros – aspectos repressivos da “Revolução Cultural”, desandei desse território, indignado, enojado e ...desesperado.

 

Por diversas vezes já aqui referi a China, a sua política de ontem e de hoje, e penso não ter sido meigo na apreciação feita.

 

Convém, todavia, voltar a esses anos baços, aos meados de sessenta, e explicar um pouco o clima ideológico e político em que vivíamos todos quantos (éramos poucos, pouquíssimos, valha a verdade) não nos resignávamos a viver dentro do salazarismo, do reviralho cansado, gasto e inútil ou empolgados pela estrela soviética que empalidecia de dia para dia.

 

Começando por esta (é inútil falar do paraíso triste português e da girândola mais bacoca que barroca da “oposicrática” nacional), é bom lembrar que no início dos sessenta o mundo filo-comunista vivia sob duas perplexidades: a repressão  (esmagamento da “revolução húngara”, o desastre da evolução da RDA, desde a monumental greve de 17 de Junho de 1953  até ao seu lógico desenlace - o muro, 1961- que isolava definitivamente Berlin leste e se saldou em muitas centenas de mortos e dezenas de milhares de presos por tentativa de fuga) e a incapacidade (social, cultural e económica) de superar o chamado mundo capitalista.

 

A URSS, vivia sob o signo do 20º congresso do PCUS onde secretamente (!!!) se denunciava o “culto da personalidade” e os crimes do estalinismo e se notava alguma ambígua normalização. Porém, o “degelo” acabou subitamente em 1964 com a queda de Nikita Krutchev e a tomada de poder por Leonid Brejnev.

 

O aparecimento das correntes maoístas tem muito a ver com o que acima esquematicamente se releva. Em Portugal, as coisas seguiam este main stream mesmo com os habituais atrasos. E com a notória falta de informação geral e particular (a que circulava nos círculos mais radicais da oposição). O primeiro maoísmo português prende-se com a inflexão política do PCP, o novo rumo assumido depois de Cunhal se ter evadido de Peniche. E, nos meios juvenis, com a incapacidade do partido perceber a nova situação criada depois das lutas contra o dectreto 40.900 e do sismo Delgado. Isso tornou-se dramaticamente claro nos anos 61/2 e na crise académica do mesmo nome. Pessoalmente, recordo que também não foi despicienda a razia policial nos meios estudantis ligados ao PC. Razia essa que demonstrava a permeabilidade das organizações juvenis às investidas da polícia que controlava com facilidade numerosos infiltrados nela. E com as pequenas traições que faziam cair sem dificuldade os “aparelhos” de faculdade. A coisa aliás continuou assim durante muito tempo chegando ao ponto de em Lisboa em meados dos sessenta (traição Nuno Alvares Pereira, cfr blog “agualisa 27.3.07) se assistir a uma verdadeira derrocada. Mas em Coimbra já tinha havido um antecedente perigoso em 62 que resultou na prisão de quase todos os membros das células estudantis. De facto, um “funcionário” do PCP chamado Eduardo Viana entregara toda a organização dando mesmo os nomes que correspondiam aos apelidos dos militantes. No entanto, os erros conspirativos começavam nos controleiros estudantis que faziam autenticas fichas dos militantes num alarde de falta de cuidado que dizia muito da impreparação para a luta clandestina.)

 

Nada disto predispunha especialmente a militar no PC. Uma coisa era juntarmo-nos à multidão participante, aos militantes associativos, aos organismos culturais estudantis, outra era a situação de semi-clausura dos jovens comunistas que respondiam muito esquematicamente ao que se passava de novo no seio duma juventude pré-contestária.  68 revelaria, e de que maneira, o abismo que separava os exegetas do pc e o resto da “malta”.

 

Que a URSS era um sufoco percebia-se bem: a literatura saída do “degelo” (o título aliás de um romance de Ilya Erenburgh então publicado) vinha provar tudo o que de depreciativo se escrevera antes e que durante muito tempo passou por mera propaganda “anti-comunista”.

 

O abandono de centenas de intelectuais a partir da crise húngara e do XXº Congresso não permitia outra leitura. O muro, já citado, e a erosão já visível da influência dos PCs ocidentais no mundo do trabalho, as farroncas de Krutschev e o seu posterior e brutal afastamento, o aparecimento do movimento dos não-alinhados, o progresso continuado das social-democracias e a melhoria visível do nível de vida na  Europa Ocidental retiravam à União Soviética e aos seus propagandistas muita da inicial atracção.

 

Finalmente, a emergência da China Popular e a mitologia criada sobre a “longa marcha”, a política das “cem flores” o desafio do “grande salto em frente”, pareciam mostrar um outro socialismo, um outro igualitarismo e, ó ingenuidade!, acreditávamos piamente que tudo era feito pelas bases, decidido por elas, que os dirigentes eram modestos que partilhavam as dificuldades dos aldeãos, enfim que era tudo diferente do reino de aparatchiks que faziam a nomenkatura soviética. Inclusivamente, esgrimia-se com o facto de o direito de greve fazer parte da lei fundamental chinesa, ao contrario do que se passava no restante bloco socialista onde a greve era impensável dado o Estado ser dirigido pela “classe trabalhadora”.

 

O primeiro maoísmo português, pelo menos ao nível dos núcleos estudantis, alimentava-se desta verdade revelada e bebia o seu escasso conhecimento da realidade chinesa num par de autores americanos e ocidentais que faziam a apologia da vida aldeã e das virtudes espartanas chinesas.  Isto durou até à revolução cultural, perdão “Grande Revolução Cultural e Proletária”. Subitamente, a erupção de massas histéricas de jovenzinhos brandindo o “pequeno livro vermelho” (uma antologia pobre e desconsolada de citações de Mao), a humilhação de nomes respeitados do PCC (Chu-En Lai ou Liu Shao Chi) o desaparecimento misterioso de Lin Piao as voltas e reviravoltas de uma situação que parecia incontrolável, a teria do “imperialismo tigre de papel”, o mau relacionamento entre a China e o Vietnam, tornaram muito complicada a situação de alguma gente que tinha lido e propagandeado as primeiras teses chinesas.

 

Depois, e não é despiciendo, vários sinologos respeitados não só começaram a publicar novos livros sobre a China mas sobretudo puseram em causa os testemunhos de uma série de intelectuais radicais que tendo feito a visita do costume ao Oriente (que era vermelho) sem saber uma única palavra de chinês vinham de lá tão extasiados como os primeiros turistas revolucionários da União Soviética ou de Cuba. Era tão extraordinário o que estas criaturinhas diziam, tão apologéticas eram as suas impressões de viagem, que só uma criatura necessitada de muito conforto espiritual poderia ler sem esfregar os olhos ou duvidar.

 

O segundo ponto de ruptura deve-se à actuação dos grupos maoístas franceses durante “revolução de Maio” francesa. Os tiques autoritários, o obreirismo sem peias, a “religião” revolucionarizada que pregavam ia tão ao arrepio do entusiasmo, da utopia, da “jouissance sans frontiéres” e da livre discussão que, por força, só um recém-convertido conseguia engolir.

 

Entre nós, cedo se começou a perceber que dos restos da FAP e do CMLP pouco se podia fazer no sentido de criar um movimento unificado e sólido que disputasse aos “revisionistas” o controlo das faculdades. Milagre foi, porém, que, mesmo divididos em escolas e capelas que se “sissiparizavam” constantemente, se tivesse verificado tanta e tão permanente influência dos “esquerdelhos”. Ou, talvez, não: o PC depois de 68, da invasão da Checoslováquia, do que se começava a saber do gulag brejneviano, dos refuzniks, da dissidência interna soviética, perdia claramente no tabuleiro das assembleias tumultuosas na universidade. Mesmo no capítulo da oposição à guerra colonial era mais entusiasmante “desertar com armas” do que ir para as colónias fazer propaganda anti-guerra. Mais entusiasmante e menos perigoso, acrescente-se.

 

Pedro Lomba que, aliás, de parvo não tem nada, não conheceu, muito menos viveu, esta complexa situação. Confunde dois planos. O da idade principalmente. O maoísmo juvenil não era exactamente o mesmo dos velhos dissidentes do PCP. Alimentava-se de fábula, de ignorância e urgência anti-guerra. O estudo do marxismo leninismo de tempos anteriores estava resumido ao “pequeno livro vermelho” e às obrinhas de uma senhora chamada Marta Harnecker que produzia uma espécie de “reader’s digest” pobre e sensaborão para uso de jovens menos exigentes.

 

Quando, porventura, antigos maoístas que chegaram intactos a 74 e prosseguiram até bem depois, falam desses tempos, falam só da sua perdida e mal gasta juventude. Tentam justificar sacrifícios e perda de tempo. É a única memória que têm. Não creio que a maioria deles seja capaz de assobiar para o lado quando lhe falam das dezenas de milhões de vítimas da revolução cultural. Muito menos dos crimes de Pol Pot ou, já agora, da tragédia dos boat people vietnamitas. Do que li apenas me apercebi do travo de auto-ironia de uns, da melancolia de outros, da implícita confissão de tempo perdido de ilusões mortas.

 

(nota necessária e final: não tenho procuração, nem a quero!, de quem quer que seja que tenha passado pelas fileiras maoístas. Deixei de dar para esse peditório entre 68 e 69 mesmo se, até ao 25 A tenha sido advogado de dezenas de militantes m-l como, aliás, de quaisquer outros que chegassem ao meu modesto escritório. Mais do que as escolas ou as capelas interessava-me combater o regime.

 

Penso, porém, que a generalização apressada, agora muito em voga, levada a cabo por uma geração conservadora jovem e desempoeirada deve ser rebatida a todo o transe. E o livro de Cardina merece melhor comentário do que a rápida leitura de Lomba).   

 

 

 

Gostaria de dedicar este folhetim a dois amigos desaparecidos: João Pulido Valente e João Quintela. E a um semi-vivo que foi “compagnon de route”: o meu tio Joaquim Patrício Curado, devastado pelo Alzheimer, que, em Caxias, perguntou ao carcereiro se não tinha direito a um copo de vinho para acompanhar a miserávbel refeição que se dava aos presos políticos.

 

 

 

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