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Assim se (des)faz a história
Da autoria de um senhor Manuel Poirier Braz acaba de sair, com a chancela da Livraria Petrony, um livrinho inútil e pretensioso sob o título “O dia do estudante – a crise que abalou o regime de Salazar”. Antes de mais é pretensioso o título: esta crise, grave para quem nela directamente participou, não foi assim tão importante para o regime. Refiro evidentemente a crise de 62 e não a continuada crise que desde a luta contra o decreto 40.900 foi crescendo com vários sobressaltos e outras tantas dificuldades nas universidades portuguesas, com destaque primeiro para Lisboa (1962) depois para Coimbra 1969-1970) e finalmente atingindo por igual e cada vez mais violentamente todas as escolas superiores mas já não tanto por razões académicas quanto por políticas.
O livro não é mais do que uma apressada colagem dos comunicados académicos da RIA e das AA.EE lisboetas e nenhum mal daí viria ao mundo se sobre esse tecido alguma opinião, algum estudo alguma análise se fizessem. Não é assim. As poucas palavras que se devem ao autor não passam de simples e apressados separadores como se assim se quisesse garantir qualquer autoria.
Pior ainda: a parte final, pouco mais de uma dúzia de páginas, remete para crises posteriores num retrato a la minuta, desatento, infeliz, incompleto e de facto mais do que inútil, prejudicial. Assim não se faz História. Nem pequena nem grande. Faz-se, eventualmente, negocio, vende-se um livro aos mais curiosos mas não se explica nada ou muito pouco.
A crise de 62, como se sabe, foi desencadeada em Lisboa no próprio Dia do Estudante e perante milhares de estudantes, algumas centenas dos quais vindos de Coimbra (maioritariamente) ou do Porto que, se bem li, não consta da geografia do autor. Nem uma palavra ou, quiçá, alguma pequenina e nada abonatória do esforço dos estudantes portuense de Medicina, Ciências, Engenharia e Belas Artes, cuja documentação facilmente se pode encontrar.
Estudante de Coimbra, nessa altura, com algumas responsabilidades na vida associativa, desde antes e até bastante depois, quero, apesar de falar em causa própria, explicar que, ao contrário do senhor Poirier, muito se passou na Universidade coimbrã, muito mais, muitíssimo mais do que as reles e mal informadas folhinhas que dedica à crise em Coimbra.
De facto, e para a história, que parece desconhecer, a Associação Académica de Coimbra (AAC) e os seus Organismos Autónomos (OA) (Orfeão Académico, Tuna Académica, Coral de Letras Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra e Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) passavam por um extraordinário momento de renovação, de enorme projecção dentro e fora da cidade e congregavam praticamente todos os estudantes coimbrãos.
Foram estas instituições, coadjuvadas pelo Conselho de Veteranos e pelas Repúblicas (também alvo de forte mobilização e renovação) que conseguiram unir largos milhares de estudantes, votar em Assembleia Magna (e não em plenário como ignorante e canhestramente se refere a pp 78) o luto académico, a solidariedade com Lisboa, a paralisação escolar, a proposta de suspensão da realização da Queima das Fitas, decidida depois pelas comissões de quartanistas, e. Last but not the least, a manifestação de luto e protesto de todas as equipas desportivas da Associação Académica, futebol incluído.
É pouco?
Convirá lembrar que, pela sua singular posição, pela especial relação estudantes população residente o peso de um espirro da Academia coimbrã sentia-se tanto ou mais que dez manifestações tentadas na grande cidade. A cidade vivia, viveu e voltou a viver (então muito intensamente) a crise académica de 1969 que o autor numa apressada referencia tão desajustada como irreal relata em duas folhinhas finais. Lembraria ao ilustre titular do curso superior de management e autor deste livrinho que essa crise foi a única que terminou com uma verdadeira e total greve aos exames, com uma demissão quase imediata do Ministro da Educação e do Reitor da Universidade, com o levantamento de todos os processos disciplinares aos estudantes e com o regresso a Coimbra de todos os estudantes anteriormente mobilizados para Mafra. E com uma época especial de exames. Deve ser muita areia para a camioneta do autor que entretanto tenta diluir o peso da crise com umas greves operárias em Janeiro e Fevereiro do mesmo ano, apesar da crise só se ter desencadeado a partir de 17 de Abril. E com alguma agitação nas universidades do Porto e de Lisboa que embora generosa e relevante não teve sequer o mesmo peso da anterior e já citada solidariedade coimbrã de 62.
Mais curioso ainda. O autor relata duas “ocupações” da sede da AAC. E refere que os estudantes foram desalojados pela policia. Nem aí acerta. Nem nas datas, nem na forma. Da primeira vez, é verdade que a policia chegou a cercar a sede da AAC mas era tal a movimentação exterior dos estudantes que a saída das muitas centenas de ocupantes se processou sem incidentes e sem prisões. A segunda ocupação, levada a cabo por cerca de duzentos e cinquenta estudantes foi de facto resolvida por um assalto policial. Os presos foram conduzidos para o quartel da GNR, aí triados e separados de 39 rapazes e quatro raparigas que foram conduzidos para instalações da PIDE. Os rapazes para Caxias (onde passaram entre oito e trinta dias) e as raparigas para a sede da PIDE em Coimbra onde também estiveram bastante tempo. Aqui, não se tratou de uma mega-operação de detenção e identificação que não demorou mais de dois dias. Aqui tentou-se quebrar a “espinha dorsal” do movimento estudantil, intento baldado porquanto e justamente devido a esta prisão houve autenticas batalhas campais em Coimbra. Nessa noite e em dias posteriores com especial relevância para um domingo em qua a Académica jogava em casa.
Contas feitas (e pelo menos a lista dos castigados coimbrãos aparece) verifica-se que o poder politico atingiu mais duramente a Universidade de Coimbra não só em termos relativos mas absolutos. Houve mais expulsões da universidade mesmo se esta tivesse menos de metade dos alunos da de Lisboa. E, como já se acentuou, as prisões tiveram uma duração muito superior. Claro que esta contabilidade é mesquinha. Uma crise e uma luta não se medem (ou não só se medem) pelos sacrifícios individuais dos seus intervenientes. A crise de 62 teve origem e especial desenvolvimento em Lisboa e nunca ninguém o contestou. Mas teve fortes e duradouros efeitos nas outras duas cidades universitárias e é uma vileza e uma estupidez ocultá-los. Ou então é apenas ignorância. Mas quem não sabe não se estabelece.
Em memória de Abílio Vieira, Alfredo Soveral Martins, Alfredo Fernandes Martins, José Martins Baptista, Francisco Delgado, José Monteiro, Jorge Bretão, João Quintela, Luis Bagulho, estudantes presos em Caxias de Maio a Junho de 1962
E de José Luís Nunes, Rui Neves, João Bilhau, António Machado Vaz, do grupo de 32 estudantes expulsos da Universidade de Coimbra
E de eventualmente mais outros cuja morte me passou despercebida.
*o título pretende homenagear Eduardo Guerra Carneiro,"o poeta que se atirou para as estrelas"(apud Jorge Silva Melo) na altura estudante em Coimbra
** As ilustrações: A Via Latina (orgão da AAC) que noticia o 1ª e único encontro Nacional de Estudantes, Fotografia tirada de um anterior número da VL e que ilustra a jornada inter-universidades realizada durante a Tomada da Bastilha (25 de Novembro) de 1961: reconhecem-se da direita para a esquerda Marcelo Ribeiro (1) António Barreto (2) Hélder Costa (4) Mário Roldão (5) Fausto Monteiro (6) "Tó" Rocha de Andrade (8) Agostinho Caeiro (10) Artur Cutileiro (11) Carlos Marvão (13) e Parcídio Sumavielle (14) todos estudantes em coimbra e já ou mais tarde dirigentes associativos em diferentes organismos académicos. Do outro lado da mesa que aqui se não v~e estavam muitos estudantes de Lisboa. esta fotografia não mostra os anteriores lugares dos estudantes identificados mas foi feita depois deles trocarem de lugares com colegas de outras universidades Recordo que foi uma festa magnífica e que havia mais fotografias mas por mero acaso foi esta a que foi publicada. A rapariga no primeiro lugar à esquerda é já uma estudante lisboeta, bem como o rapaz de pé atrás do F Monteiro.
De resto, os de Coimbra estavam quase todos de capa e batina. Não era em vão que aquele era o dia da tomada da Bastilha, data maior e dia de um cortejo tradicional e marcado por fortes praxes académicas.