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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Estes dias que passam 266

d'oliveira, 09.02.12

Indignação, ão, ão

 

No mesmo dia em que os jornais noticiam que o contrato de três milhões gastos pela Madeira em fogachada de artifício para as festas de fim de ano e deste próximo Carnaval é considerado ilegal pelo Tribunal constitucional, rebenta a bernarda provocada pelas declarações da senhora Merkel sobre os túneis (80) e auto-estradas e viadutos da mesma região. Que os túneis poderão ser bonitos mas que a utilização de fundos estruturais não terá sido assim tão atraente.

 

Pela Madeira e, pelos vistos, pela pátria imortal, grassa um vento de revolta. Que a chanceler alemã se imiscui nos “assuntos internos” lusitanos e madeirenses!

 

Estamos à beira de uma manifestação de repúdio tão do agrado do antigo regime que usou e abusou da fórmula e da inesgotável reserva de indignação nacional.

 

Como de costume alguns senhores deputados com a frenética imaginação que se lhes conhece e o insofreável patrioteirismo (obrigado Eça!) que os distingue da populaça anónima e de maus fígados ja tonitruaram no Parlamento os seus lusitaníssimos sentimentos, a independência nacional e o seu horror pela boche. E pediram contas ao Governo!

 

Resta saber se, à imagem daquele buliçoso rapazola que queria pôr os bancos tudescos a tremelicar, ainda  se lembram de proclamar uma cruzada contra os hunos! Contra os alimões marchar, marchar!

 

No meio desta vozearia, houve um par de madeirenses que confessaram que se é verdade que até 2000 o frenesi construtivo de novas vias (e melhores!, e necessárias!, acrescente-se) de comunicação, já depois, isto é nos últimos dez anos, talvez tivesse havido hipóteses de melhor aplicação dos fundos. Para melhorar, justamente, a tal competitividade...

 

Conviria lembrar que, ao entrar na Europa da UE, a fronteira entre assuntos internos e externos não só se diluiu como até, no caso dos mais ajudados pelos fundos, v.g., Portugal, se banalizou. E levando mais longe um breve escrutínio do que se tem passado, diria mesmo que o que não falta são exemplos de personalidades públicas a imiscuírem-se nos “assuntos internos” de outros países.  E convenhamos que essa parece ser uma boa prática sobretudo quando se defende uma crescente unificação europeia. Quem, entretanto, for anti-federalista e ache já insuportável a “soberania limitada” europeia em vigor, poderá ter outra opinião. Só que a independência passa por não pedir nem receber óbolos estrangeiros. Que se saiba a generosidade financeira nunca foi timbre de quaisquer relações internacionais.

 

 

 

Começar a Levantar a cabeça

JSC, 08.02.12


No mesmo dia em que o primeiro-ministro apareceu a pedir ao pessoal para sermos “mais exigentes”, “menos complacentes” e “menos piegas”,  é que os militares deitaram “mãos à obra” e produziram uma carta que está a gerar algum alvoroço político.


Neste contexto a resposta que o governo pode ter para os militares é apelidá-los de "lamechas", "queixinhas" ou mesmo de “mimados”. O povo vai entender que o governo trate assim os militares e o governo não pode deixar que os militares ousem pensar e que não aceitem “trincar a língua”, “custe o que custar”.


Os militares, tal como a maioria dos portugueses, têm de entender que o governo governa em “emergência nacional” e que enquanto “quem (nos) emprestava dinheiro trabalhava”, os portugueses, incluindo os militares, “aproveitavam os feriados e as pontes” para não fazer nenhum e se divertir à ganância.


“ Ai cantavam”, pensará o PM, “pois bem, dancem agora…”

Menor segurança e menos "pieguice"

JSC, 07.02.12

 

Na última semana de Janeiro os telejornais foram inundados com imagens da barragem do Tua a mostrar o aparato na recolha dos três trabalhadores que morreram soterrados vítimas de um deslizamento de terras nas obras da barragem.

 

Na altura, para tranquilizar as consciências, foi anunciado que o  Ministério Público já estava a investigar as causas do acidente que provocou a morte dos três trabalhadores.

 

Como é óbvio, uma semana depois, já ninguém se lembraria daquele acidente nem se interrogaria acerca do resultado a que o Ministério público chegou. Acontece, porém, que hoje fomos surpreendidos com novo acidente de trabalho, com grande similitude com o que ocorreu na barragem do tua. Cinco trabalhadores morreram soterrados pela derrocada de uma parede do edifício onde trabalhavam.

 

Desta vez foi a Autoridade para as Condições do Trabalho que mandou fazer uma inspecção às condições em que ocorreu o acidente. Apesar do número de mortos ser bem superior, o  alarido comunicacional não foi tão acentuado, o que se deve justificar por não ter sido montado um cenário espectacular para recolher os cadáveres nem o Mercado de Setúbal proporcionar,  as imagens fantásticas que o Tua proporciona, pelo menos enquanto a EDP não desfigurar toda aquela beleza natural.

 

Também se afigura óbvio que estes acidentes nada têm a ver com o ambiente laborar que está a ser construído, pelo que seria injusto exigir que a entidade governamental que tutela estas coisas aparecesse a dar a cara.

 

Nestes tempos em que o primeiro ministro nos ordena para “trincar a língua” e nos diz que não há tempo para se ser “complacente” nem “piegas”, que não se espere melhor destino que não seja o de empobrecer e ver deteriorar-se tudo o que tenha a ver com segurança, incluindo a segurança no trabalho.

estes dias que passam 265

d'oliveira, 04.02.12

Assim se (des)faz a história

Da autoria de um senhor Manuel Poirier Braz acaba de sair, com a chancela da Livraria Petrony, um livrinho inútil e pretensioso sob o título “O dia do estudante – a crise que abalou o regime de Salazar”. Antes de mais é pretensioso o título: esta crise, grave para quem nela directamente participou, não foi assim tão importante para o regime. Refiro evidentemente a crise de 62 e não a continuada crise que desde a luta contra o decreto 40.900 foi crescendo com vários sobressaltos e outras tantas dificuldades nas universidades portuguesas, com destaque primeiro para Lisboa (1962) depois para Coimbra 1969-1970) e finalmente atingindo por igual e cada vez mais violentamente todas as escolas superiores mas já não tanto por razões académicas quanto por políticas.

 

O livro não é mais do que uma apressada colagem dos comunicados académicos da RIA e das AA.EE lisboetas e nenhum mal daí viria ao mundo se sobre esse tecido alguma opinião, algum estudo alguma análise se fizessem. Não é assim. As poucas palavras que se devem ao autor não passam de simples e apressados separadores como se assim se quisesse garantir qualquer autoria.

 

Pior ainda: a parte final, pouco mais de uma dúzia de páginas, remete para crises posteriores num retrato a la minuta, desatento, infeliz, incompleto e de facto mais do que inútil, prejudicial. Assim não se faz História. Nem pequena nem grande. Faz-se, eventualmente, negocio, vende-se um livro aos mais curiosos mas não se explica nada ou muito pouco.

 

A crise de 62, como se sabe, foi desencadeada em Lisboa no próprio Dia do Estudante e perante milhares de estudantes, algumas centenas dos quais vindos de Coimbra (maioritariamente) ou do  Porto que, se bem li, não consta da geografia do autor. Nem uma palavra ou, quiçá, alguma pequenina e nada abonatória do esforço dos estudantes portuense de Medicina, Ciências, Engenharia e Belas Artes, cuja documentação facilmente se pode encontrar.

 

Estudante de Coimbra, nessa altura, com algumas responsabilidades na vida associativa, desde antes e até bastante depois, quero, apesar de falar em causa própria, explicar que, ao contrário do senhor Poirier, muito se passou na Universidade coimbrã, muito mais, muitíssimo mais do que as reles e mal informadas folhinhas que dedica à crise em Coimbra.

 

De facto, e para a história, que parece desconhecer, a Associação Académica de Coimbra (AAC) e os seus Organismos Autónomos (OA) (Orfeão Académico, Tuna Académica, Coral de Letras Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra e Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) passavam por um extraordinário momento de renovação, de enorme projecção dentro e fora da cidade e congregavam praticamente todos os estudantes coimbrãos.

 

Foram estas instituições, coadjuvadas pelo Conselho de Veteranos e pelas Repúblicas (também alvo de forte mobilização e renovação) que conseguiram unir largos milhares de estudantes, votar em Assembleia Magna (e não em plenário como ignorante e canhestramente se refere a pp 78) o luto académico, a solidariedade com Lisboa, a paralisação escolar, a proposta de suspensão da realização da Queima das Fitas, decidida depois pelas comissões de quartanistas, e. Last but not the least, a manifestação de luto e protesto de todas as equipas desportivas da Associação Académica, futebol incluído.

 

É pouco?

 

Convirá lembrar que, pela sua singular posição, pela especial relação estudantes população residente o peso de um espirro da Academia coimbrã sentia-se tanto ou mais que dez manifestações tentadas na grande cidade. A cidade vivia, viveu e voltou a viver (então muito intensamente) a crise académica de 1969 que o autor numa apressada referencia tão desajustada como irreal relata em duas folhinhas finais. Lembraria ao ilustre titular do curso superior de management e autor deste livrinho que essa crise foi a única que terminou com uma verdadeira e total greve aos exames, com uma demissão quase imediata do Ministro da Educação e do Reitor da Universidade, com o levantamento de todos os processos disciplinares aos estudantes e com o regresso a Coimbra de todos os estudantes anteriormente mobilizados para Mafra. E com uma época especial de exames. Deve ser muita areia para a camioneta do autor que entretanto tenta diluir o peso da crise com umas greves operárias em Janeiro e Fevereiro do mesmo ano, apesar da crise só se ter desencadeado a partir de 17 de Abril. E com alguma agitação nas universidades do Porto e de Lisboa que embora generosa e relevante não teve sequer o mesmo peso da anterior e já citada solidariedade coimbrã de 62.

 

Mais curioso ainda. O autor relata duas “ocupações”  da sede da AAC. E refere que os estudantes foram desalojados pela policia. Nem aí acerta. Nem nas datas, nem na forma. Da primeira vez, é verdade que a policia chegou a cercar a sede da AAC mas era tal a movimentação exterior dos estudantes que a saída das muitas centenas de ocupantes se processou sem incidentes e sem prisões. A segunda ocupação, levada a cabo por cerca de duzentos e cinquenta estudantes foi de facto resolvida por um assalto policial. Os presos foram conduzidos para o quartel da GNR, aí triados e separados de 39 rapazes e quatro raparigas que foram conduzidos para instalações da PIDE. Os rapazes para Caxias (onde passaram entre oito e trinta dias) e as raparigas para a sede da PIDE em Coimbra onde também estiveram bastante tempo. Aqui, não se tratou de uma mega-operação de detenção e identificação que não demorou mais de dois dias. Aqui tentou-se quebrar a “espinha dorsal” do movimento estudantil, intento baldado porquanto e justamente devido a esta prisão houve autenticas batalhas campais em Coimbra. Nessa noite e em dias posteriores com especial relevância para um domingo em qua a Académica jogava em casa.

 

Contas feitas (e pelo menos a lista dos castigados coimbrãos aparece) verifica-se que o poder politico atingiu mais duramente a Universidade de Coimbra não só em termos relativos mas absolutos. Houve mais expulsões da universidade mesmo se esta tivesse menos de metade dos alunos da de Lisboa. E, como já se acentuou, as  prisões tiveram uma duração muito superior. Claro que esta contabilidade é mesquinha. Uma crise e uma luta não se medem (ou não só se medem) pelos sacrifícios individuais dos seus intervenientes. A crise de 62 teve origem e especial desenvolvimento em Lisboa e nunca ninguém o contestou. Mas teve fortes e duradouros efeitos nas outras duas cidades universitárias e é uma vileza e uma estupidez ocultá-los. Ou então é apenas ignorância. Mas quem não sabe não se estabelece.

 

Em memória de Abílio Vieira, Alfredo Soveral Martins, Alfredo Fernandes Martins, José Martins Baptista, Francisco Delgado, José Monteiro, Jorge Bretão, João Quintela, Luis Bagulho, estudantes presos em Caxias de Maio a Junho de 1962

 

E de José Luís Nunes, Rui Neves, João Bilhau, António Machado Vaz, do grupo de 32 estudantes expulsos da Universidade de Coimbra

 

E de eventualmente mais outros cuja morte me passou despercebida.  

 

*o título pretende homenagear Eduardo Guerra Carneiro,"o poeta que se atirou para as estrelas"(apud Jorge Silva Melo) na altura estudante em Coimbra

** As ilustrações: A Via Latina (orgão da AAC) que noticia o 1ª e único encontro Nacional de Estudantes, Fotografia tirada de um anterior número da VL e que ilustra a jornada inter-universidades realizada durante a Tomada da Bastilha (25 de Novembro) de 1961: reconhecem-se da direita para a esquerda Marcelo Ribeiro (1) António Barreto (2) Hélder Costa (4) Mário Roldão (5) Fausto Monteiro (6) "Tó" Rocha de Andrade (8) Agostinho Caeiro (10) Artur Cutileiro (11) Carlos Marvão (13) e Parcídio Sumavielle (14) todos estudantes em coimbra e já ou mais tarde dirigentes associativos em diferentes organismos académicos. Do outro lado da mesa que aqui se não v~e estavam muitos estudantes de Lisboa. esta fotografia não mostra os anteriores lugares dos estudantes identificados mas foi feita depois deles trocarem de lugares com colegas de outras universidades Recordo que foi uma festa magnífica e que havia mais fotografias mas por mero acaso foi esta a que foi publicada. A rapariga no primeiro lugar à esquerda é já uma estudante lisboeta, bem como o rapaz de pé atrás do F Monteiro. 

    De resto, os de Coimbra estavam quase todos de capa e batina. Não era em vão que aquele era o dia da tomada da Bastilha, data maior e dia de um cortejo tradicional e marcado por fortes praxes académicas. 

 

O novo olimpo ou como o mercado só o é para alguns

sociodialetica, 04.02.12

1. O “mercado” ocupa um lugar mais importante que Deus. O desabafo tradicional “se Deus quiser” deu lugar a “se o mercado quiser”. Mantenho o meu emprego se o mercado quiser. Serei chamado para a administração de uma empresa se o mercado quiser. Teremos um futuro melhor se o mercado quiser. As desigualdades sociais aumentarão se o mercado quiser. O decrescimento económico será forte se o mercado quiser. A política de austeridade continuará se o mercado quiser. Os políticos no poder tendem a ser cretinos se o mercado quiser. Enfim, Deus continuará a existir se o mercado quiser.
É verdade, a existência de Deus depende dos mercados. Se fossem cumpridos os desígnios do mercado os trabalhadores por conta de outrem transformavam-se em robots, os ricos continuariam a sê-lo, os reformados, os velhos e os indigentes morreriam. Os reguladores aumentariam até ao absoluto a sua incompetência, o Estado passava a ser gerido por alguma empresa, dos ricos, claro está. Seria a santa consagração do equilíbrio económico. A realização plena dos mercados, porque deixaria de haver sociedade, e com ela morreria Deus.

 

2. Mas esse mercado tem que se lhe diga! É muito complicado. Está muito longe de ser homogéneo. Já sabíamos que tem “bolhas”, mas podemos admitir que tem outras impurezas, porque o mercado para uns não o é para outros.
É verdade. Se um supermercado vende um produto estragado que provoca a morte de muitos clientes o mercado castiga-o e terá que fechar as portas. Se uma empresa lança um produto que ninguém quer comprar, muda de ramo ou fecha as portas. Se um jornal diz que vivemos no melhor dos mundos e que Portugal é a porta de entrada para o paraíso... Bem, este é um mau exemplo: nesse caso era capaz de aumentar as vendas porque gostamos de ser enganados e viver na ilusão. Duvida? Está comprovado cientificamente pelas tendências de voto nas eleições.
Enfim, o querer dos mercados faz com que se seja expulso desse paraíso quando se tomam decisões erradas, quando se lançam produtos errados, quando se dão informações erradas. Saem do mercado e vão para o inferno da indigência. Mas esse mesmo mercado faz com que essas decisões erradas, esses produtos errados, essas informações erradas possam conduzir alguns ao olimpo do mercado, o espaço restrito dos bem-aventurados.
Não sabia? Mas olhe que eles, super-heróis, são bem visíveis e continuam a comportar-se com o estatuto que o olimpo lhes dá. Isso mesmo. Estamos a falar das empresas de rating.

 

3. Tem dificuldade em conhecer todas as suas próprias fraquezas e potencialidades, porque nem às paredes confessa? Não se preocupe porque é uma limitação de todos: é difícil conhecermo-nos a nós próprios. Um empresário tem dificuldade em gerir a sua empresa e em explorar todos os caminhos com que sonha. Se se pretender ter uma avaliação crítica de uma grande empresa serão precisos vários técnicos experimentados durante um largo período de tempo, para se ter um diagnóstico da situação, pontos fortes e fracos, sinais de alerta, hipóteses de evolução futura no mundo globalizado. Se se pretender conhecer os recursos de um país maior será o percurso, mais trabalho e tempo serão necessários, na melhor das hipóteses, na hipótese dos participantes desse estudo se entenderem.
É difícil fazer uma avaliação, mas só para quem não está no olimpo do mercado. Para estes bastam poucos minutos, poucas horas, no máximo do máximo, para avaliar uma empresa, para avaliar um país, para avaliar o mundo. A incompetência, o desaforo, a falta de vergonha rodopiam nos ares térreos, erguem-se ao olimpo da audiência submissa internacional e transformam-se em informação fidedigna sobre os mercados.
Qual o espanto? Não será o olimpo do mercado o melhor centro de observação do próprio mercado?

 

4. Não foi voz corrente e fundamentada – por acaso viram o filme Inside Job? – de que as empresas de rating foram das entidades responsáveis pela crise do subprime, que mergulhou o mundo na crise profunda que hoje ainda vivemos? Não é um facto histórico que empresas que foram à falência no início dessa crise financeira estavam muito bem cotadas pelas empresas de rating e que esse pequeno engano matou mais pessoas que a intoxicação do mercado? É verdade, por isso não foram afastadas do mercado. Comandam o mundo. Já colocaram o louro da vitória e cantam balelas no olimpo.
Compreende-se, elas fizeram o seu melhor. As pessoas que as ouviram é que não tiveram a capacidade de perceber que as informações delas estavam erradas. Entenda-se, elas são a Standart & Poor's, a Moody's e a Fitch, não é qualquer mexeruca em apartamento acanhado.

 

5. Ainda se lembra do que aprendeu sobre o mercado de concorrência perfeita? Nenhuma empresa ou consumidor tem capacidade de influenciar o mercado, o Estado não intervém, há liberdade de entrada e saída. Bonito. A versão económica da justiça divina. Por isso o mercado deusificou-se.
É exatamente o que se passa com as empresas de rating. Cada uma das três tem a sua metodologia própria de avaliação mas estão sempre de acordo. Elas avaliam as instituições mas são pagas para avaliarem, são pagas pelos próprios interessados na avaliação. Idiossincrasia estranha? Não, um negócio como qualquer outro. Tu dás e eu digo de ti. Tu dás muito e eu direi bem de ti. Tu pagas bem e eu direi bem de ti se ninguém me pagar ainda melhor para dizer mal de ti. A vida é assim.
É a era dos mercados financeiros. Os produtos transacionados podem surgir de qualquer mente engenhosa, de qualquer modelo matemático ou da mesquinha realidade de alguma empresa emissora. Os “derivados”, os “estruturados” e outros opacos processos de transferir responsabilidades e obter recursos, proliferam. As empresas de rating entram no jogo. Por um lado contribuem para a criação desses títulos, por outro classificam-nos e contribuem positiva ou negativa para a sua rentabilidade e a sua transação.
Diriam alguns, certamente mal intencionados, que as empresas de rating estão mergulhadas em inumeráveis conflitos de interesse. Seria como se num jogo de futebol o ponta de lança umas vezes marcasse na baliza do adversário, outras vezes na sua própria baliza. Não por autogolo acidental, mas porque para isso foi contratado pelas duas equipes. Comentários mal intencionados. O pecado do orgulho a impedir-nos reconhecer as nossas próprias limitações humanas. Todas as religiões têm os seus dogmas. No olimpo do mercado o conflito de interesses é a expressão máxima do saber divino, um dogma não revelado.

 

6. Coisas da vida. De hoje.
E amanhã?

 

7. No último artigo da trilogia sobre “Ciclo de negócios, crise e crise do euro” terminávamos do seguinte modo:


“Os “mercados” têm uma direcção estratégica e táctica? Os “mercados” têm uma intelligentia?”


Ainda não sabemos a resposta. Não sabemos se as empresas de rating são o Zeus da época moderna, mas pelo menos são o Apolo.

O Governo quer as CCDR inoperacionais?

José Carlos Pereira, 03.02.12

O Governo bem apregoa as suas preocupações com a reorganização administrativa do Estado e com o desenvolvimento regional, mas a sua visão parece que tem como limite a redução do número de freguesias, com a qual concordo, de resto.

Com efeito, decorridos mais de sete meses após a tomada de posse do actual executivo, as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional continuam sem conhecer as mexidas anunciadas nas suas equipas directivas. O órgão descentralizado da administração pública que intervém em áreas tão importantes como o ambiente, o ordenamento do território, o planeamento e desenvolvimento regional, a cooperação transfronteiriça e a gestão dos programas operacionais do QREN continua com as equipas à espera de substituição enquanto se sucedem nos jornais os nomes que os aparelhos partidários aí pretendem colocar.

A Norte, Carlos Lage tomou a iniciativa de sair no final de Janeiro, depois de já há muito ter dado sinais de pretender ser substituído. Fez bem e colocou a nu a incapacidade do Governo em compreender o papel que está reservado às CCDR em cada região e a urgência de nomear dirigentes que estejam plenamente mandatados para executar a sua missão. Dizer que a falta de leis orgânicas dos ministérios é a razão para este adiamento sucessivo só vem acrescentar razão àqueles que criticam o Governo.

Segue-se ainda o processo de nomeia-desnomeia de quadros dos partidos da maioria. Enquanto a CCDR Norte tinha até aqui na presidência Carlos Lage, deputado desde a Constituinte, ex-vice-presidente da Assembleia da República e durante largos anos deputado europeu, acompanhado por dois reputados professores universitários na vice-presidência, o que se anuncia é preocupante para a região. A CCDR Norte parece ir transformar-se num local de abrigo de quadros partidários de segundo plano e ex-autarcas, o que marca uma diferença para os tempos em que esses lugares eram preenchidos por personalidades com elevada estatura intelectual e política, partilhe-se ou não dos seus ideais políticos. Tudo em prejuízo da região, da sua economia e do seu território.

Au Bonheur des Dames 305

d'oliveira, 01.02.12

Cartas, trabalhos e paixões

 

Caro Nuno

 

Teve V a gentileza de me convidar a dar  o meu testemunho sobre o Fernando Assis Pacheco, amigo que conheci assim que regressei a Coimbra como caloiro. Ou seja, há mais de cinquenta anos!

 

Razões de pressa da editora fizeram com que se tornasse impossível essa pequena colaboração num livro que vai seguramente ser notícia não só por ser a biografia de quem é mas igualmente por vir da pena de um leitor atento do Assis.

 

Entretanto, logo lhe anunciei que, a menos que chovessem picaretas, aí estaria no dia do lançamento do livro para o apoiar e reencontrar velhos e novos amigos comuns do FAP. É que, curiosamente, e a seu exemplo, aparecem, ao que sei, leitores entusiastas que pelo milagre de um verso, pela vivacidade de um artigo, pela ternura e pelo humor de uma crónica se tornam leitores convencidos.

 

E fiz projectos. Metia-me hoje pela manhãzinha num alfa, chegava a horas de fazer a via crucis dos alfarrabistas, ia comer a um restaurante italiano de que muito gosto, e pela tarde (quiçá pela noite) estaria nas festividades e eventualmente jantaríamos juntos.

 

Já tinha reservado o hotel onde descansaria o cadáver que isto de andar num corropio começa a não ser para a minha idade, e amanhã pela fresca regressaria ao Porto. E durante a viagem, enternecido e melancólico, teria tempo de ler o seu livro. 

 

Mas se o homem põe, Deus, ou o diabo, dispõe. Um acidente ridículo (parti parte da dentadura) obrigou-me a abandonar a ideia de viajar. A minha excelente dentista, por enorme favor, arranjava-me (como arranjou) uma consulta para hoje mesmo. Às duas da tarde, para ser mais preciso. Propunha-se até tentar saber se algum cliente das primeiras horas da manhã levaria a sua boa vontade ao ponto de trocar comigo. Trabalho baldado.

 

Todavia, mesmo que tal milagre ocorresse, outros obstáculos subitamente se levantaram. À uma, o restaurador de alguns móveis nossos, entendeu fazer a entrega deles, hoje mesmo. À tarde. V. dirá que isso não deveria ser problema pois a minha mulher decerto que os receberia. É verdade mas dá-se o caso destes móveis já terem vindo e de terem sido imediatamente mandados para trás por entendermos que  o restauro (caro) estava mal feito. E antes que desta feita algo semelhante ocorresse, a CG convenceu-me que eu mesmo, em pessoa, pessoalmente (é uma citação de Camilleri!...) deveria estar presente para verificar a mercadoria.

 

Mas, os deuses destas coisas, não contentes em me largarem um restaurador às canelas, resolveram meter  outro pausinho na engrenagem. De facto, já no final de uma onda de melhoramentos na casa, mandei fazer uma estante e umas tábuas para meter num roupeiro. O carpinteiro, na altura jurou-me que numa semana teria cá tudo. Juras de carpinteiro são piores que as de amor. As semanas passaram, eu mandei-lhe um mail delicado, ele respondeu, também delicado a fugir com o dito cujo à seringa e eis que hoje, pelas onze da manhã, me telefona alvissareiro a anunciar que pelas três e meia aqui estará para entregar a estante e fazer o que tinha a fazer no roupeiro. E para receber o cacauzinho respectivo, está bem de ver...

 

Ou seja, não bastava uma dentadura em estado deplorável, sequer um profissional de restauro a la minuta. Tinha ainda que aparecer o carpinteiro faltoso. E a CG tinha de se lembrar, logo pela manhã que hoje eu devia (mesmo sem o saber) levá-la a fazer umas análises. Daquelas que têm de ser feitas em jejum.

 

Quem conhece a amável CG sabe que ela é de bom feitio mas que levantar-se, arranjar-se e ir tirar sangue antes do pequeno almoço é uma tragédia grega. Pior, um drama de faca e alguidar. A CG come pouco, mas em pequeno almoço é radical. Sem uma valente chávena de café com leite, o sumo de laranja e a torrada matinais, é uma fera, uma praga de gafanhotos, um cataclismo de grau oito ou nove. Ai de quem a cumprimentar antes dela ter dado ao dente.  Nem a querida fifi a enfrentava antes dela estar de papo cheio e cigarro na unha. Nem as gatas que fazem dela gato sapato. Antes do pequeno almoço é uma virago que nem Átila enfrentaria sem pensar duas vezes. Eu, sempre que posso, tomo o meu e desando para longe, para a esplanada aqui perto para ler o jornal e beber um café em paz comigo e com o mundo. Em  viagem, encomendo o pequeno almoço de Madame para o quarto e piro-me sigilosamente para a sala de jantar do hotel onde permaneço até julgar que ela já despachou a refeição matinal. À cautela...

 

Sexta feira vou para Aguada de Cima comer leitão à pala de um estimabilíssimo leitor meu. Já estou a fazer os exercícios repiratórios e gástricos necessários para honrar o convite e mostrar que mesmo com uma dentadura periclitante saberei cumprir o meu dever. Não há no horizonte nenhum artesão a que tenha encomendado o que quer que seja pelo que espero que quem manda lá em cima considere que já tive arrelias que chegassem para a semana toda.

 

(Caro PS mande dizer onde me quer, a que horas e como chego aí. Irei nem que chovam cães e gatos. De rastos, se preciso for. Mas irei. Lá onde está, o Assis perdoa-me seguramente a falta ao lançamento da sua biografia mas nunca, e quem o conheceu sabe bem como isto é verdade, que faltasse ao melhor leitão do mundo. Do mundo e arredores!...)

 

 

Caro Nuno Costa Santos

 

O almocinho fica para breve. Espero que o lançamento da biografia do Assis seja, como ele e V. merecem, um êxito

 

Seu, cordialmente

 

mcr

 

* sai hoje "Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco" de Nuno Costa Santos. ed Tinta da china

** na gravura: Assis 

 

 

 

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