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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Crises (1)

sociodialetica, 28.03.12

A CRISE DE 1929/33 E A ACTUAL SÃO COMPARÁVEIS?


1. Só a história futura nos informará da validade da comparação entre a crise de 1929/33 e a de 2008 e que continua ainda hoje, 2012. Admitimos que existem semelhanças e diferenças importantes. Já fizemos referência a elas num trabalho anterior (»»») (»»») (»»»).

 

Apontávamos então como semelhanças:

  1. Ambas são partes integrantes do ciclo de negócios, são crises de sobreprodução que se manifestam sob a forma de subconsumo;
  2. Ambas se desencadeiam numa fase em que o capitalismo domina à escala mundial, embora no primeiro com a recente recordação da Revolução Russa;
  3. Grande parte das formas de manifestação da crise é semelhante.

Acrescente-se uma outra :

  1. Segundo alguns autores existem os ciclos longos da economia, com uma aproximação a uma periodicidade de meio século, contendo uma fase ascendente (de maior tendência ao crescimento) e uma descendente (de menor tendência ao crescimento). De acordo com estas teses as duas crises situar-se-iam numa fase descendente do grande ciclo de Kondratief

Apontávamos então como diferenças:

  1. Grande parte das actividades produtivas estão fora do território dos países que mais sofreram a crise (EUA e Europa);
  2. A crise actual está mais intensamente associada às bolsas de valores e ao capital fictício;
  3. Actualmente é muito maior a economia paralela;
  4. Hoje há um muito maior entrelaçamento das economias nacionais, pese embora o grande sincronismo do ciclo em 1929/33.

Acrescentemos duas outras muito significativas:

  1. Então vivíamos numa ditadura, que se tinha imposto recentemente, com um ambiente interno e externo que lhe era relativamente favorável. Hoje vivemos em democracia.
  2. Então o Estado Português tinha total poder de decisão política sobre as instituições económicas portuguesas, enquanto hoje essa soberania, nomeadamente económica, está em grande medida na União Europeia, fora do seu campo de decisão.

Esclareça-se, no entanto, que esta falta de poder de decisão nada tem a ver com o sistema político interno de Portugal, mas por agora haver uma integração regional (UE) e, sobretudo por esta ter adoptado (diga-se, também com o voto entusiasta de Portugal) uma configuração político-económica que privilegia o núcleo dos países mais desenvolvidos economicamente.

 

Da diferença apontada em (f) resulta uma outra diferença.

  1. Quando da crise de 1929/33 o sistema bancário já estava hierarquizado, havendo um banco central que apoiava os restantes bancos e que era o principal suporte financeiro dos Estados. Na actual crise o Banco Central Europeu não assume a função de recurso financeiro em última instância, e, antes pelo contrário, são os Estados que servem de recurso em última instância aos bancos operando nos respectivos países. Passou-se dum sistema bancário ao serviço do País para o País ao serviço dos bancos.

 

2. Sendo bom não esquecer todas estas semelhanças e diferenças há ainda dois aspectos que convém referir:

  1. Então como agora Portugal está numa fase de afastamento dos países mais ricos da Europa, numa divergência de dinâmica de crescimento económico. No período que antecede a crise o nível médio de rendimento por habitante em comparação com o dos países europeus mais desenvolvidos atingia o nível mais baixo desde o início do século XIX. Para o período mais recente o rendimento per capita português atingiu o valor mais elevado em relação à actual União Europeia em 1999, e desde então tem vindo a diminuir (ver Figura 1). Simultaneamente assiste-se a um agravamento da situação da nossa economia em termos de formação bruta de capital fixo, vulgo investimento, tendo quase sempre valores inferiores ao dos actuais países da UE desde 2000 (ver Figura 2).
  2. Em diversas crises anteriores se fizeram comparações com a crise de 1929/33, particularmente na de 1973/06, uma das maiores após a segunda grande guerra. Nessas comparações foi então dito qualquer coisa como “comparando a evolução dos indicadores económicos constatamos que a crise mais recente teve amplitude menor, mas isso deve-se essencialmente a que então não havia uma política económica.” Se esta afirmação é verdadeira então podemos dizer que esta crise é bastante pior que a de 1929/33.

 

Figura 1
Rendimento per capita
Percentagem de Portugal em relação ao que é hoje a União Europeia

 

Fonte: Banco Mundial

 

Figura 2
Taxa de variação do investimento
Diferença de Portugal em relação ao que é hoje a União Europeia

 

Fonte: Banco Mundial

 

Figurões

JSC, 27.03.12

1
Jean-Claude Trichet sentencia Portugal "gastou mais do que ganhava" por isso agora tem de minguar. Na sentença do Sr. Trichet falta a resposta a três questões essenciais:


A primeira, quem é que em Portugal está a pagar?


A segunda, qual o papel do Sr. Trichet, enquanto presidente do BCE, para contrariar o acesso fácil ao crédito?


A terceira, como e com quem se gastou o dinheiro? Muitos serão os maus exemplos. Veja-se a compra à Alemanha dos designados submarinos de Paulo Portas , que só por si tiveram um impacto significativo no aumento o défice das contas públicas.

2
Todos os meios de comunicação social têm feito grande alarido à volta da manifestada disponibilidade do Presidente executivo da EDP, António Mexia, para ir prestar declarações no Parlamento sobre as rendas excessivas no sector energético.


O impacto mediático desta não notícia – notícia seria o Sr. Mexia declarar-se indisponível para ir ao parlamento – omite, em toda a linha, as verdadeiras intenções da dita disponibilidade. O que António Mexia pretende é um palco para contrariar as eventuais declarações do Secretário de Estado da Energia, que todos dizem demitido por acção directa do presidente da EDP. Um palco para defender, ainda, as rendas excessivas e os prémios excessivos que a EDP lhe paga, por sacar do Estado o que o Estado paga sem tugir nem mugir.

 

Au Bonheur des Dames 312

d'oliveira, 26.03.12

O dia do estudante, outra vez

 

 

 

Não é uma polémica, mesmo amável, como soe entre velhos amigos, companheiros e camaradas. É apenas uma clarificação “a cause des mouches”.

 

Ontem o meu querido amigo Jorge Sampaio deu, na televisão, uma curta entrevista a Marcelo Rebelo de Sousa. Sempre bem, sempre ele, sempre apressado. Porém, o Jorge esqueceu-se de um pequeno pormenor (que entretanto em artigo publicado antes não olvidara). Esqueceu-se de Coimbra!

 

Esqueceu-se da espectacular (o termo é dele, julgo) participação da Associação Académica de Coimbra e da Academia coimbrã, que aliás se confundiam. Desde a primeira hora,antes até, a Academia coimbrã pela voz dos seus legítimos representantes, pelo voto das suas Assembleias Magnas, pelo esforço e pela solidariedade da maioria dos seus estudantes, esteve de corpo e alma na “crise de 62”.

 

Comecemos por recordar duas datas: a Tomada da Bastilha de 1961 (25 de Novembro) já participada por estudantes de Lisboa e Porto; o Encontro Nacional de Estudantes realizado em princípios de Março de 1962, em Coimbra, onde se delinearam estratégias comuns e mobilizadoras das três academias. Foi aliás, aí, que o jornal da AAC, “Via Latina” passou a ser o “jornal dos estudantes portugueses”. A jornada desse esquecido dia foi épica pelo menos da parte dos estudantes portuenses que, como, abaixo, referi, obrigados a abandonar o(s) autocarro(s) em que viajavam, fizeram uns quantos quilómetros a pé dem medo das polícias variadas que os tentavam atemorizar.

 

Só por isto, querido Jorge, valia a pena teres voltado a mencionar Coimbra.

 

Mas há mais: Logo na segunda feira seguinte aos acontecimentos de Lisboa, participados por umas poucas centenas de estudantes de Coimbra que conseguiram furar o bloqueio policial às portas de Lisboa, a Direcção Geral daAAC convocou uma Asembleia Magna que decidiu imediatamente tomar toda uma série de medidas de apoio e solidariedade às associações lisboetas.

 

Coimbra aderiu à greve às aulas, posição incómoda, porquanto, como salientava a Direita académica, os aconteciemntos de Lisboa não se tinham replicado em Coimbra.

 

Mais e mais significativo: a crise fez com que o “luto académico”, nas suas formas mais tradicionais (batinas fechadas, insígnias escondidas) fosse proclamado.

 

Continuando: As Comissões da Queima das Fitas e o conselho de Veteranos decretaram a suspensão da grande festa coimbrã, o que, para além de elevados prejuízos financeiros, constituiu um facto que atingia toda a cidade que, aliás, se mostrou solidária.

 

A suspensão da Queima, que eu saiba, ocorreu apenas duas vezes. Em 1962 e em 1969 (Crise académica de Coimbra).

 

É pouco?

 

Sem querer entrar em polémica, inútil e tola, vale a pena referir a violência da repressão governamental em Coimbra:

 

- Encerramento das instalações académicas.

 

- Prisão até um mês de quarenta e quatro estudantes que ocuparam a AAC em 19 de Maio de 62 (convém acrescentar que juntamente com estes 44, havia mais duzentos que foram detidos nas instalações da Guarda Republicana. E que, nessa mesma noite, a cidade foi varrida por tumultos e manifestações dificilmente controladas pela polícia.

 

- Expulsão da universidade de trinta e tal estudantes, alguns dos quais proibidos de frequentar qualquer universidade por um ou dois anos.

 

Mesmo sem compararmos as populações universitárias das duas cidades (Coimbra e Lisboa) facilmente verificaremos que os números de Coimbra se mostram altamente desproporcionados e inflacionados. O Governo lá tinha as suas razões: com esta inusitada severidade pretendia sufocar no ovo a revolta estudantil na cidade onde o movimento estava mais coeso, estruturado e radicado.

 

Até a prisão dos 44 em Caxias tinha esse fim claro. Mais do que um castigo (e era-o sem dúvida) havia um aviso, uma clara mensagem à Academia coimbrã, à cidade em que todos se conheciam e onde uma notícia corria, em escassas horas, as repúblicas, as casas de hóspedes, as pensões estudantis, os cafés, os organismos académicos, as faculdades (todas juntas) a Alta, a Baixa, o Calhabé, o Tovim e Santa Clara: quem se mexer, come!

 

Éramos, os Coimbra, melhores? Nada disso! Éramos da mesma massa, da mesma luta e da mesma esperança. E éramos igualmente jovens.

 

Mesmo se engravatados! Esta vai para um texto de António Correia de Campos, outro velho amigo que conheci quando, expulso de Lisboa, arribou às mesas do café Mandarim. Engravatados, diz ele.  Mas alguém, nesse tempo e na universidade, atrevia-se a andar sem gravata, António? A gravata era tão comum quanto os jenas hoje e obrigatória nas aulas, pelo menos em Direito, a nossa comum faculdade. Até nos últimos anos do liceu se usava gravata!...

 

A cinquenta anos de distância e quinhentos de memória cansada, a coisa pode parecer estranha. Mas era assim mesmo. E as meninas estudantes usavam como dizes umas roupinhas “modestamente elegantes”. À uma era assim a moda feminina. Depois, a classe social da esmagadora maioria dos estudantes uiniversitários impunha e usava códigos a que era difícil resistir e muito menos subverter.

 

De resto, quem quiser compulsar fotografias do “Maio 68” francês (seis anos luz depois, tendo em conta o palco em que floresceu) vê milhares de rapazes de gravatinha, cabelo curto, ar composto.

 

A crise de 62, vinda na enxurrada de vários acontecimentos dramáticos (cá e lá fora), desde o golpe de Beja, até ao inicio da guerra colonial, veio coroar um movimento que se esboçara na luta contra o famigerado decreto 40.900 (domesticação das associações de estudantes) até à famosa carta dos trezentos universitários a pedir a demissão de Salazar. Havia aqui ecos da campanha de Delgado (1958), vestígios das derradeiras lutas do MUD juvenil e do seu último julgamento (o julgamento dos 52, no Porto) e um forte sinal da mudança verificada nhas estratégias das oposições políticas ao regime, reavivadas pela campanha eleitoral (Assembleia Nacional) de 1961 que, em Coimbra, dera lugar a uma forte manifestação de estudantes contra a proibição de um comício para juventude (Outubro  de 1961).

 

O regime não caiu, diz-se. Claro que não caiu. Nem era essa a intenção primeira e táctica das movimentações estudantis de 62. Ninguém, em seu perfeit0o juízo, esperava isso, pensava isso, previa isso. Pedia, reclamava-se tão só um espaço de liberdade, um intervalo no sufoco, uma aragem que o tempo internacional exigia e que, mesmo com censura, cá chegava. Pelo cinema, pelos livros, pelos jornais e, sobretudo pelos primeiros turistas e pela emigração de massa para as Franças e Araganças. 

 

O “paraíso triste” dos anos duros da guerra e do pós guerra já não era o mesmo, o do país embiocado, caturra, desconfiado. Nem a Igreja era a mesma! A estrangeira e a nacional. Mas mesmo sendo poucos os católicos anti-regime, isso era já muito. Significava, o que era temível, uma “fenda na muralha”. E Salazar, raposa matreira e hábil político, percebeu isso como ninguém. Como Marcello Caetano, aliás. O primeiro preferiu o bunker. E aguentou mais doze anos. O segundo, teve medo da liberdade. E pereceu ingloriamente, mesmo se, durante algum tempo, apareceu aureolado pela sua defesa da autonomia universitária em 62. 

 

Os jornais, como de costume, acharam mais interessante o folclore e a data redonda do que um esforço para ir um pouco mais além. Daí a vulgaridade dos comentários e dos noticiários. Foi pena.

 

Mas pena, o que chama pena, foi os facto dos participantes no movimento não terem querido ou podido ultrapassar a mera recordação. 

 

Au Bonheur des Dames 311

d'oliveira, 23.03.12

 

 

Dias de vinho e de rosas

 

A 23 de Março de 1962, diversos grupos de estudantes saíram cedo de Coimbra.

 

Direcção: Lisboa, cidade universitária.

 

Objectivo: participar no Dia do Estudante, jornada agendada com anterioridade, prevendo-se depois do encontro Nacional de Estudantes realizado em Coimbra, sob forte vigilância policial e com delegados das três academias. Pormenor curioso: a policia mandara parar o autocarro que trazia estudantes do Porto mas nunca se lembrou que estes palmilhassem, como palmilharam, uns largos quilómetros até à Praça da República local de eleição e concentração  da estudantada local. O leitor e amigo MSP, escultor e carpinteiro pessoal deste cronista, estava nesse corajoso grupo pedestre. Saravah, mano!

 

De Coimbra, como ia dizendo partiram diversos grupos. Um ou dois de comboio, outros em autocarros e até em três ou quatro carros particulares. E à boleia, está bom de ver.

 

O meu grupo, o do primeiro comboio, movido por algum pressentimento, mudou de comboio perto de Lisboa e tomou uma composição que, se não erro, oblicuava para Entrecampos muito perto da cidade universitária. Sem o saber, acabávamos de frustrar um comité de Recepção em Santa Apolónia que estava encarregado de nos deter até tomarmos um comboio para Coimbra.

 

De facto, era fácil identificar-nos. Vínhamos todos de capa e batina, como era hábito nos grandes (e pequenos) momentos académicos. Qualquer coisa nos dizia que a jornada iria ser interessante. E, jovens românticos, acreditávamos que as nossas capas teriam profundo efeito nas colegas de Lisboa. Em 62 éramos assim.

 

Chegámos sem percalço á cidade universitária e, se bem me lembro, fomos saudados com enorme alegria e alarido pelas muitas centenas de estudantes que já se concentravam perto da Reitoria. Éramos a guarda avançada do resto do país e no ardor vinte anos devo ter-me sentido muito bem.

 

Depois, um pouco adiante deparámos com a policia que tentava dispersar outro numeroso grupo de malta estudante. Galantemente, como cumpre, a coimbrinhas enfatuados, decidimos interpormo-nos entre os agentes e um numeroso grupo de alunas de Letras. Traçadas as capas, corremos para o remoinho e para espanto da policia oferecemo-nos às eventuais bastonadas. E as raparigas de Lisboa espantadas... Toma lá que isto aqui é Coimbra, menina e moça, no seu melhor.

 

 

 

As hostilidades amainaram sem cabeças partidas mas, mesmo a cinquenta anos de distancia, creio recordar que subimos uns pontos na consideração da malta lisboeta. Afinal, “os de Coimbra” pareciam ser boa gente, mesmo se vestidos com aqueles trajes obsoletos!

 

Soube-se entretanto que as restantes comitivas coimbrãs estavam a ter sérias dificuldades para entrar em Lisboa. A policia mais precavida levantara barreiras nas estradas e poucos conseguiam passar tal filtro. Do Porto também não havia grandes notícias.

 

Do resto nem vale a pena falar. Correrias, encontrões, intervenção do Reitor Marcello Caetano e convite para a estudantada, impedida de ir comer à Cantina Universitária, jantar num tal Restaurante Castanheiro. A Reitoria pagava.

 

Lá partimos, ao lusco-fusco  já em franca confraternização com a malta lisboeta. No Campo Grande esperava-nos a policia de choque e um arraial de porrada à moda antiga. Aquilo é que foi malhar em trigo verde, caros leitores. A malta coimbrã estava numa situação enrascadíssima. Éramos, mesmo de noite, facilmente identificáveis e corríamos por isso vários riscos, o maior dos quais era um intempestivo regresso a penates sem honra nem glória. Todavia, mesmo se com os lombos amassados pelas coronhadas da policia não recordo mais nenhuma (outra) eventualidade desagradável. E a noite lisboeta fo idas melhores da minha vida. Com um grupo de novos amigos de Lisboa, acabei no CUJ (Club Universitário de Jazz) uma novidade absoluta para mim que me ia iniciando deliciado nessa música genial. Dormi em casa de uns irmãs e irmãs universitários provenientes das colónias e vigiados de perto por uma mãe simpática e generosa que nos forneceu ceia tardia e um pequeno almoço espectacular no dia seguinte.

 

No dia 24 estávamos de novo nas instalações universitárias, desta feita nas instalações da Pró-Associação de Medicina. Um plenário ou algo do mesmo teor. Ou, melhor dizendo, uma tentativa de plenário que, subitamente apareceu um enxame de polícias, comandados (não tenho bem a certeza) pelo célebre Capitão Maltês. Deu-nos uns escassos minutos para desandar. Sempre esperando que a memoria não me atraiçoe, ousei dizer que de capa e batina estávamos mais que marcados. O policia então determinou que ninguém nos molestasse. E assim saímos. A partir daí as recordações esfumam-se.

 

Já em Coimbra, seguiu-se uma tumultuosa e participadíssima Assembleia Magna que decretou “luto académico” apesar da feroz e pertinaz oposição da forte minoria de Direita coimbrã.

 

O resto é história. História de há cinquenta anos. Esse ano de 62 vivi-o com uma intensidade deslumbrada. Por duas vezes participei na ocupação da Associação Académica e, da última, saí daí directo para Caxias. Com 39 companheiros. Na cadeia conseguimos contactar, diferentes grupos de presos, desde uns ferroviários grevistas, até a um grupo de presos do golpe de Beja. Ao nosso lado, numa cela igual à nossa havia um grande grupo de camponeses alentejanos, comunistas empedernidos, heróicos e simples como sempre os imagináramos. Vinham das jornadas de Maio (como os ferroviários...) e a pessoa que dirigia a cela comum era um sapateiro (de Évora) que cantava modas alentejanas como ninguém. Ou pelo menos é assim que o recordo.

 

Eram tempos extraordinários e empolgantes e todos nós pensávamos que o regime não resistiria. A nossa prisão, julgávamos, fazia parte da ultima vaga de repressão e, pelo que me toca, eu sentia-me orgulhoso por ali estar.

 

Ah, c’etait le temps des cerises e nós éramos jovens, confiantes e puros. E isso, esse sentimento, nunca ninguém, depois, mo conseguiu tirar. E agora, a caminho de outra estação, porventura a última, sinto-me ainda a descer em Entrecampos, ao encontro do futuro.

 

Sans peur ni reproche.

*na gravura: cartaz do Dia do Estudante, roubado despudoradamente de um post do João Vasconcelos Costa que, caloiro nesse ano de 61/2, em Coimbra, se estreou na política estudantil.  Saravah, mano!

 

 

Au Bonheur des Dames 310

d'oliveira, 23.03.12

 

 

Manias de velho...

 

Estou velho, não há dúvida alguma. Velho de idade e velho de gostos. Imaginem lá, leitores que me aturam: gosto imoderadamente de livros. De os ler e de os ter. Mesmo quando apanho na internet um pdf (ou lá como se chama a coisa) de um livro, não resisto: tenho de o imprimir e encapar antes de o ler.

 

É uma doença, uma adicção! Quase como a morfina de saudosos (ainda que não meus) tempos. Era um conhecido que, morfinómano desde que se lembrava, conseguia o prodígio de ser um bibliófilo. Ao princípio do mês dividia escrupulosamente os morabitinos pelas suas duas paixões. Dias havia que agatanhava as paredes mas nem por isso deixava de comprar o livro que vira. E dizia a quem o queria ouvir que os livros ainda lhe saíam mais caros e mais agradáveis do que a “nina” (que era assim que chamava à maldita droga). Quem, não o conhecendo lhe ouvia a conversa pensava que se tratava de uma amante. Ou de um cabaré, que esta historieta passava-se em Lisboa, no tempo de um famoso estabelecimento nocturno que nunca frequentei. O meu amigo cortava cerce os nossos conselhos assegurando-nos que nunca morreria de overdose. E, de facto, morreu de um enfarte brutal, no quarto onde dormia.

 

No enterro, consolámo-nos uns aos outros comentando que ele teria tido tempo para o  o seu livro e usado a sua dose de “nina”.

 

Tudo isto para contar as alegrias (e as tristezas) do leitor voraz que me habita o futuro cadáver. E comecemos pelas tristuras que são de peso. Imaginem que, por motivo fútil (ir ver quanto me custara, in illo tempore, um livro) fui à minha estante, secção  dos “Herbertos helderes” à procura do “Cobra”, uma edição da “& etc” bonita e raríssima.

 

Nada! Nicles! m.i.a, desaparecida em combate! Procurei por todo o lado, ou, melhor dizendo, pelas adjacências, pois poderia inadvertidamente estar no lote de outro escritor. Rien, como dizia aquele ministro toleirão. Frenético, puz-me a rever os “H H”. E, novo baque: a “electronicolírica” também não respondia à chamada. Logo este, que nunca mais foi reeditado e que, nas obras mais ou menos completas (com o Hélder, nunca se sabe...)  figura, profundamente reescrito, como “a máquina lírica”. Arrium, porrium catanorum cunque!, balbuciei desfeito num macarrónico digno do Palito Métrico (esta é para um certo JVC, incurável romântico político que tem uma fé, celebra uns ícones revolucionários que só têm o defeito de jamais terem correspondido à realidade. Fora isso, é um gajo encantador, inteligente até dizer basta, cientista rigoroso, amador de coisas boas, esteta decadente e gastrónomo assanhado).

 

E passemos ao lado bom desta vida de frequentador de livrarias, de coscuvilheiro de alfarrabistas, de caçador de oportunidades na internet. Há uma semana, aliás, há oito contados dias, descobri uma loja mirabolante onde, lado a lado jaziam brinquedos, velharias e livralhada. Um cafarnaúm inacreditável que, para ser verdadeiramente explorado, pede uma boa semana.

 

O meu radar livresco depressa descobriu duas caixas, vermelhas e envelhecidas, que pareciam conter alguma pepita. Abri-as cuidadosamente e saltam-me ao olhar cobiçoso mais de cem mapas em perfeito estado. Como novos!

 

Investigação mais cuidadosa fez-me saber que se tratava dos “volumes apensos aos tomos IV e V dos “Tratados relativos ao Ultramar”, obra beneditina de José de Almada, publicada nos anos 42 e 43 do passado século. O preço era, uma vez sem exemplo, puramente simbólico. Uma ninharia!

 

Saí dali com as caixinhas e rumei à “Livraria Académica”, onde o fantástico Nuno Canavês logo me informou sobre os “Tratados...” E, mais do que isso, se prontificou a encontrá-los na caverna de Ali Babá que é o seu armazém. No dia seguinte, apresentou-me os vol I, II, IV e V da obra, também por preço generoso.

 

Nesse mesmo dia, passei por outro alfarrabista que se dispôs a investigar no respectivo armazém. Todavia, logo me avisou, que não esperasse milagres pois não recordava o título. Na segunda feira passada, avisava-me eufórico que conseguira dois desconhecidos volumes da obra: um de apêndices e outro de índices!

 

Entretanto, consultando a internet, descobri um cavalheiro, também alfarrabista em parte incerta, que oferecia o volume III. Saltei sobre a ocasião mesmo sabendo já que este tomo três se desdobrava em dois volumes, A e B, respectivamente. Ontem o livreiro referido em segundo lugar, telefonava-me triunfante a anunciar que, também ele, descobrira um volume III.

 

Tratava-se, agora, de esperar que os volumes em causa, um já encomendado e outro reservado fossem diferentes. Santa Rita, padroeira das mulheres maltratadas e dos impossíveis, a cuja procissão assisti (ir)reverente e divertido durante anos, em Caminha, lembrou-se, em boa hora, deste seu romeiro, e fez com que os volumes fossem diferentes.

 

Em sete dias, completei uma obra que, à partida, se afigurava difícil. Todos os livreiros me deram os parabéns pela rapidez, pela sorte e pelo preço. Não que, contas feitas, a coisa ficasse pelo preço da uva mijona, mas cara não foi.

 

Hoje, regresso à primeira loja, cuja identificação não dou (et pour cause!...) pois vi lá uma colecção “quase completa” e em estado novo do Salgari. Falo da última edição da “Romano Torres” e não do total de “salgaris” editados em português. Esta série, a última sistemática, omite uns vinte títulos anteriormente publicados. É baseado nisso que espero convencer o livreiro (que só a despacha completa) a vender-me os exemplares que me faltam. A latere, comprometi-me a comprar-lhe uma série de volumes da “Ilustração Portuguesa” que também estão em excelente estado. E baratos!

 

Leitoras e circunspectos cavalheiros (incluindo o “romântico JVC) que até aqui chegaram: rezem um terço por mim e pelas minhas intenções de compra. Sou um viciado pacífico, não maltrato ninguém, aturo mulher, enteada, empregada e duas gatas prazenteiras em casa e, até, um rapazola de bom trato que levou a pobre Ana ao altar. Ele não merece  estes carinhos de sogro mas enfim....

 

 

 

*na gravura: fotografia dos oito miraculosos volumes da “Expedição Portuguesa ao Muatiânvua”, obra raríssima nunca mais editada de que me falta o tomo quatro da descrição da viagem, livrinho ainda mais raro. Haverá por aí alma caridosa que mo queira ceder a preço honrado? Ou a preço pecaminoso, tanto faz! 

 

Intento (22)

sociodialetica, 22.03.12
 “a acção do homem sobre a natureza não é uma acção do exterior, mas do interior”
Ludovic Geymonat, Elementos de Filosofia da Ciência. Lisboa: Gradiva, pág, 122

O afundanço económico

JSC, 21.03.12

A CCDRN acaba de publicar o Boletim Norte Conjuntura referente ao 4.º Trimestre de 2011. Todos os indicadores mostram, com rudeza, a eficiência da política económica que vem sendo aplicada, à luz da aplicação do princípio da austeridade, custe o que custar.


«No 4º trimestre de 2011, o PIB português, penalizado pela procura interna, diminuiu 2,8% em volume, em termos homólogos, acentuando a
tendência negativa que se fizera sentir no 3º trimestre (-1,9%).

 

A taxa de desemprego na Região do Norte subiu para 14,1% no 4º trimestre de 2011, abandonando a estabilidade que desde há um ano
caracterizava este indicador (12,7% no trimestre anterior).

 

As exportações de mercadorias da Região do Norte abrandaram no 4º trimestre. As importações de mercadorias para o Norte entraram em queda no 4º trimestre, com destaque para a quebra no material de transporte.

 

O financiamento à economia do Norte por parte do sistema bancário e financeiro é cada vez mais restrito: -5,9%, em termos homólogos, no financiamento às empresas e -2,3% no crédito detido sobre as famílias. Os níveis de incumprimento bancário aumentaram entre as empresas e estabilizaram para as famílias.

 

Ao longo do 4º trimestre de 2011, acelerou-se a execução do QREN na Região do Norte, tendo a taxa de realização de fundo (fundo executado em percentagem do valor de fundo aprovado) passado de 45,8% para 49,1%.

 

As indústrias tradicionais do Norte observaram, a nível nacional, quedas na produção e na faturação,no 4º trimestre.

 

Os indicadores de atividade hoteleira na Região do Norte registaram variações homólogas negativas em contraste com as tendências recentes.

 

A inflação agravou-se no 4º trimestre, impulsionada pelos preços da classe habitação (rendas, água, eletricidade e gás) e dos transportes.»

Sem um “pintelho” de coerência

JSC, 20.03.12

Não vai assim há muito tempo que, o agora todo poderoso e bem pago pelos clientes da EDP, Eduardo Catroga andava por aí a pregar contra os negócios escandalosos das parcerias público privadas e contra as rendas excessivas que se verificavam no sector da energia. Na altura, Catroga criticava, no seu estilo truculento, a realização de contratos ruinosos para os contribuintes e exigia a revisão de todas as clausulas que penalizavam o Estado e garantiam lucros seguros e sem risco para os parceiros privados.

 

Eduardo Catroga andou a negociar com o PS, em representação do líder do PSD, os termos do acordo que acabou por ser celebrado com os Srs da troika. Um dos pontos importantes desse acordo impõe a revisão dos contratos do Estado com as empresas de energia, com vista a obter a redução das rendas obtidas pelas empresas, onde impera a toda poderosa EDP, que tem o poder de mandar abaixo governantes do sector energético.

 

Em coerência com tudo o que disse publicamente, no passado recente, Catroga deveria estar a gora a criticar Passos Coelho por,, volvidos tantos meses de governação, ainda não ter feito nada no que respeita à renegociação das PPP nem no que toca às rendas excessivas do sector energético. Catroga deveria a estar a revelar o seu sentido cáustico contra a demissão, obviamente imposta pela EDP, do Secretário de Estado da Energia.

 

Catroga deveria… Mas não está! Quanto à demissão do Secretário de Estado, Catroga diz que não comenta. Quanto ao resto, Catroga tem ainda uma posição bem mais inqualificável.


Hoje, Catroga já não vê onde estão as rendas excessivas das empresas elétricas, i,e, da EDP. A única coisa que Catroga vê é «quando muito um problema entre o Estado vendedor e o Estado regulador». Pior ainda, para Catroga «os acionistas da EDP já pagaram» o que tinham a pagar e «se houve rendas acima do normal, o beneficiário foi o Estado», porque «o Estado vendeu esses contratos nas oito fases do processo de privatização da EDP».


A conclusão é óbvia: Nesta matéria Catroga mostra não ter um “pintelho” de coerência.

Intento (21)

sociodialetica, 19.03.12
 “nada tem mais importância na história da humanidade do que a heresia.”
Celso Furtado. 1998. O Capitalismo Global. Lisboa: Gradiva

Quotidiano

sociodialetica, 16.03.12

Quem não tacteie entre perfumes

o alento da flor que desabrocha

nunca abriu os olhos para o estio,

calor solar e estrelas distantes.

Casmurramente enfiado na caverna platónica:

sorri para as sombras

assumindo a mancha como arco-íris.

Agarrado ao quotidiano fetichizado

empunha punhal baço

vivendo em caixões de ignomínia.

 

Respeito-o.

É meu irmão

parido da exploração

enterrado no esquecimento.

Respeito-o, mas não digam - «fica».

Não me lancem a teia artesanal

do sorriso cadavérico

insulto e calúnia.

Não serei carvão ou tocha da loucura consentida.

A ti irmão, ou talvez não,

com olhar de perfídia e inveja

odeio-te.

Odeio-te tanto quanto amo o amanhã

o belo em liberdade renascida

o amor de cada flor

a coragem de cada homem

            que sabe

            que quer

            que luta, luta e lutará.

Amo a sociedade da poesia meiga

com maresia atlântica em serranias agrestes e

luz áurea em planícies distantes,

com o cheiro do suor e

do futuro.