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A prisão é uma chatice e ainda por cima come-se mal
3 Memória de amigos e companheiros
Abílio Vieira, Alberto Mendonça Neves (Alah), Alberto Pinguinha, Alfredo Fernandes Martins, Alfredo Soveral Martins, António Bernardes, António Ferreira Guedes, António Jacinto Rodrigues, António Lopes Dias, António Manuel Lecquoc, António Mota Prego, António Teles Grilo, Carlos Mac-Mahon, Carlos Ferreira Bento, Eduardo Casais, Francisco Delgado, Irene Namorado, Isabel Duarte Reis, Jaime Cortezão, João Gargaté, Jorge Ormonde Aguiar, José Augusto Rocha, José Martins Baptista, José Ferraz Alçada, José Monteiro (“bagacinho”), João Quintela, Judite Cortezão, Luis Bagulho, Luis Nogueira de Lemos, Manuel Balonas (Manekas), Manuel Cassiano, Manuel Lima, *******, Margarida Cabral Lucas, Mário Silva, Octávio Ribeiro da Cunha, Pedro Mendes de Abreu, Pedro Nogueira de Lemos, Raul Franco, Raul Sobral, Rui Fernando Moura, Rui Namorado, Uriel Oliveira, por onde andam vocês, amigos, companheiros, cúmplices meus, “band of brothers”, teimosos, excessivos, imprudentes, impenitentes, incapazes de perceber a “táctica” e, mais ainda, a “estratégia”, a negociata, o compromisso, solidários mas não solitários, quarenta e três nomes (fora o meu) que, em boa verdade representam mais duzentos ou trezentos, entre eles o inolvidável e fugidio “Zé dos pregos” que, adivinhando a chegada iminente da policia, se escondeu no sótão e aí permaneceu mais um inteiro dia, como se fora o infante D João (futuro segundo rei do nome) que, diz a lenda e quiçá a história, guardou o campo de Toro durante três dias tentando mostrar que as armas de seu pai não tinham sido derrotadas, todos os outros, entre eles o “Toninho” Mendes de Abreu, rejeitado pela PIDE por demasiado novo e “imberbe” e Octávio Correia Ribeiro, meu irmão que, eventualmente se terá safado por o confundirem com o Octávio Ribeiro da Cunha, então liceal e estreante nestas fitas mas que num ápice aprendeu tudo, foi presidente da AAC uns anos mais tarde e expulso de todas as universidades portuguesas por várias malfeitorias entre elas a de rasgar a nota de castigo e atirá-la aos focinhos do Reitor, coisa que este qualificou de agressão, e outros, tantos outros que a pide deixou escapar por os não conhecer ainda ou por, erro fatal!, os julgar ingénuos e inocentes?
Quem no dia 19 de Maio reocupou a sede da Associação Académica de Coimbra sabia perfeitamente que “aquilo” já não ia ser um passeio, uma graça de estudantes inconformistas, e isso mesmo foi sentido pelas centenas de outros estudantes que, ao mesmo tempo, se manifestavam nas ruas da “baixa” coimbrã perseguidos pela policia de choque que nesse dia “arreou” forte e feio, como, pouco depois, voltaria a fazer num Académica Sporting, o último jogo do campeonato.
Na cadeia de Caxias, nas semanas em que lá nos mantiveram “detidos à ordem do Ministro da Educação” como asseverou alguém, depositados numas casamatas miseráveis, tendo a honra de ter por companheiros um grupo de camponeses alentejanos da zona de Évora, outro de ferroviários grevistas presos na onda das grandes jornadas do 1 e 8 de Maio de 1962 e ainda de um terceiro, presos da revolta de Beja, com quem conseguimos chegar á fala, fizemos em tempo curto um curso inteiro de “oposição política ao regime salazarista”, em discussões e conversas que, como também algum de nós confidenciou, faziam voar o tempo.
Na prisão de Caxias, aprendemos o valor da amizade, da solidariedade, da lealdade, do respeito pelos que se batiam sem nada excepto a miséria (os nossos amigos alentejanos que cantavam da cela ao lado e que nos ofereceram um punhado de cerejas em troca de comida que em excesso nos traziam amigos e familiares, namoradas e colegas de Lisboa, alguns dos quais entrevíamos nos parlatórios colectivos durante o escasso tempo das visitas).
Na prisão de Caxias aprendemos, os menos afortunados, os que bisaram, “trisaram” e voltaram a bisar a estadia naquela sórdida cadeia, que “à policia e aos costumes se diz nada”, meu lema de uma inteira vida, meu desafio, meu orgulho (desculpem lá, isto hoje é uma lamechice pegada, mas que querem, foi desta farinha que me fiz, que se fizeram outros bem melhores do que eu, que continuam a indignar-se, a não aceitar, a preferir um não quixotesco á gamela do poder).
Milhares antes de nós, outros tantos depois de nós, passaram por ali, cantaram cantigas, sussurraram mensagens de apoio, ás vezes só o nome, esperaram ansiosamente a notícia de uma saída, respiraram de alivio pelo fim de um interrogatório, ouviram gritos, gemidos ou simplesmente os passos arrastados de alguém que regressava á cela depois de uns dias em Lisboa, nos quartinhos do último andar da António Maria Cardoso.
Voltei a Caxias, mais uma vez como turista involuntário, no ano de 71, já licenciado em malas artes jurídicas, depois de um outro estágio longo, demasiado longo, nos calabouços infectos do Tribunal de Coimbra que foi onde a Judiciária encarcerou os presos da crise de 1969.
Em ambas as vezes estava só, imensamente só, mas solidário, tão solidário como da primeira vez. Devo isso, um certo bom humor, a capacidade de me rir, do que via lá fora (tive a felicidade incomparável de ocupar uma cela com vista para a auto-estrada e uma nesga de Tejo, de poder espreitar as visitas que vinham ver os familiares e que, provocadoramente se recusavam ou fingiam ignorar a circulação obrigatória junto às paredes. Desse modo, podia-se reconhecer gente e assim saber de companheiros de infortúnio. Na vida de um preso, isso era (é) extraordinário.
Melhor do que isso só sair dali e poder olhar de frente, olhos nos olhos, sem vergonha, amigos, colegas e camaradas. Significar-lhes que, por inépcia da polícia, sorte nossa, pudor, e alguma coragem que diabo!..., não tínhamos traído, não tínhamos delatado, não tínhamos confirmado suspeitas, rumores, intuições dos investigadores, dos torcionários, dos defensores armados do regime. E isso também começou há cinquenta anos em Caxias, numa sórdida casamata, cercado de amigos, desses amigos citados aí em cima. Desses amigos alguns já mortos mas vivos na recordação. Desses amigos, muitos dos quais gostaria de saber onde param. Haja um, muitos leitores a dar-me novas deles.
Somos como diz o bardo, a little band of brothers, que tiveram o azar e a sorte de estar juntos num momento incerto e difícil, em nome de uma duvidosa e não menos árdua batalha e que não sabiam que, para todos ou quase, aquilo era apenas o começo de uma longa carreira de insucessos políticos, de mais dificuldades, de mais prisões, de expulsões das faculdades e de todo um ror de mesquinhices e de represálias que só acabaram doze anos depois. Não somos um grupo de happy few porque a cadeia não alegra ninguém, não individualiza ninguém nem sequer é berço ou cama de heróis. A prisão como reza o título geral destas crónicas é uma chatice e come-se sempre mal.
(continua)
na gravura: desenho original de Mário Silva, tinta azul sobre papel. Saravah, querido Amigo!