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Foi há rigorosamente cinquenta anos. Dia por dia. Em Coimbra quando éramos novos e a cidade nos parecia “de lavados ares”. A chamada “crise académica” cujo primeiro acto decorrera em Lisboa, despertara na nossa Academia um profundíssimo eco. Muito maior do que o que actualmente uma história mal contada parece estabelecer.
De facto, a “crise que abalou o regime”, ou seja a revolta aberta contra o regime vigente protagonizada pelos estudantes universitários portugueses começara bem antes. Digamos que o seu primeiro sinal, depois dos anos de forte repressão do MUD juvenil, foi a contestação do decreto 40.900. Na verdade, este dispositivo legal, vinha cercear, ainda mais, a já frágil autonomia das Associações de Estudantes. Não vale a pena descrever agora a projectada lei. Bastará dizer que a contestação a esse diploma legal foi tão forte, tão generalizada, que até a Assembleia Nacional pela voz de um par de deputados questionou a sua bondade e a sua oportunidade. Tratou-se, ao fim de anos de isolamento das AA EE, de um esforço conjugado das três Academias com relevância óbvia para Lisboa e Coimbra onde, apesar de tudo, existiam organismos académicos bem implantados.
Depois dessa primeira vitória (o decreto foi remetido para a Câmara Corporativa e por aí foi ficando para análise), o pais foi percorrido pelo fenómeno Delgado. Outra vez, se manifestou o sector estudantil oposicionista que, em Coimbra, reuniu cerca de trezentos estudantes num abaixo assinado contra o Regime.
Em 1960, ao fim de dez ou onze anos de maiorias de Direita na Associação Académica, a Esquerda triunfa numas eleições asperamente disputados. A eleição da Direcção Candal (Carlos Candal, futuro dirigente e deputado socialista, advogado prestigiado e euro-deputado, falecido há poucos anos) desencadeou um gigantesco processo “subversivo” na Academia Coimbrã ao mesmo tempo que a AAC se robustecia extraordinariamente. Foi da iniciativa desta Direcção Geral que começaram a realizar-se jornadas inter-academias, prontamente proibidas pelo poder político mas realizadas apesar (ou por causa) disso com enorme repercussão entre as massas estudantis. Relembro sem, sequer esgotar o rol, o 1º encontro de Convívio Inter-Academias e a Tomada da Bastilha de 1961. Para ambos os eventos foram convidados estudantes de Lisboa e Porto e, como resultado prático, lançaram-se esboços de estruturas comuns e o jornal da AAC, Via Latina, foi proclamado jornal dos estudantes portugueses. No meio disto, várias manifestações estudantis tomaram claros aspectos políticos sendo de relevar a “Latada“ de Letras que com o título “Os velhos não devem governar” fez desfilar por toda Coimbra e perante milhares de espectadores atónitos, um conjunto de cartazes que criticavam duramente o regime. Se bem recordo o último dizia “Há governos que caem pela força; este cairá pelo ridículo”. Como resultado a policia prendeu o estudante de Letras António Luís Landeira que em sucessivas Assembleias Magnas foi vigorosamente defendido. Para a “tomada da Bastilha” festa maior dos estudantes de Coimbra que celebra a conquista da primeira sede da Associação Académica, foi proclamado em “decretus” do Conselho de Veteranos a abolição da praxe. Os termos do “decretus” eram tais que, dessa feita, foram presos todos os seus subscritores bem como os moradores da “república” (Bota-Abaixo) onde o decreto foi publicitado. Pouco tempo antes, essa marcadamente política, uma grande manifestação percorreu a “baixa” de Coimbra protestando contra a proibição de um comício da Oposição durante a camapnha eleitoral de 61 (eleição de deputados à Assembleia Nacional). Tive a honra de fazer parte do grupo quepreparou essa jornada (no escritório do advogado Alberto Vilaça). Na noite da manifestação foram bem violentos os recontros com a policia de choque.
Ou seja, o ano de 1961 em Coimbra foi marcado por uma fortíssima contestação ao Poder e por uma escalada repressiva das autoridades politicas e académicas que não perdoavam à AAC e à Academia em geral a tentativa de federar os estudantes portugueses.
A repressão que não dormia, conseguiu logo a seguir, afastar sucessivamente, o futuro presidente da AAC para 1961/2, José Pinheiro Lopes de Almeida, embarcado rapidamente para a guerra de África e Jorge Aguiar que, com mais sorte, foi apenas para os Açores. Mesmo assim, logo nos primeiros dias de Março de 62, realiza-se em Coimbra, o “Encontro Nacional de Estudantes”, realizado apesar de proibido formalmente. Imediatamente foi levantado um processo disciplinar à Direcção Geral da AAC, processo esse que se traduziu na expulsão por um prazo de dois anos de todas as escolas nacionais de cinco dos seus sete elementos (José Augusto Rocha, Margarida Lucas, Eduardo Soeiro, Francisco Paiva e David Rebelo) Os dois restantes, por razões que desconheço só apanharam dezoito meses (António Taborda e José Sumavielle)!!!
Não admirará, depois desta resenha rápida, que logo que em Coimbra houve notícia dos acontecimentos do Dia do Estudante, se tenha assistido a uma grande mobilização estudantil, através de várias e concorridíssimas Assembleias Magnas, que proclamam greves de solidariedade com os colegas lisboetas. De resto, no próprio Dia do Estudante, estavam presentes em Lisboa, numerosos estudantes de Coimbra que, por usarem capa e batina eram facilmente identificáveis pela policia de choque e pela PIDE sofrendo pois, imediatamente, as consequências do seu estouvado acto de presença. Ainda me doem os lombos da castanhada que levei naquelas correrias...
Não vale a pena, neste momento, descrever os meses que se seguiram ao Dia do Estudante. De notar, contudo, que sobre a AAC, pesava uma tripla ameaça: do Governo, da Reitoria e da Polícia Política. Não que não fossem coincidentes, pois não eram, mas havia da parte destas três entidades uma sanha persecutória que mais tarde se traduzirá em dezenas de prisões, em castigos de inusitada violência e sem comparação com outras universidades, em exílios forçados, no encerramento provisório da sede da Associação, na contínua ameaça a todos os dirigentes estudantis e, obviamente em mais e mais processos de expulsão. A certa altura, esgotadas todas as outras formas. Coimbra sofrerá uma comissão administrativa por três anos. Ainda andam por aí, agora intensamente democratas, muitos dos então estudantes que assumiram a tarefa de serventuários do regime, e que fizeram parte das equipas que tentavam governar uma AAC rebelde e uma Academia que profundamente os desprezava.
Não admirará que perante as ameaças de encerramento do Palácio dos Grilos (o casarão que albergava a Associação Académica) no dia 9 de Maio de 1962 se tenham nele encerrado uns centos de estudantes. Obviamente, a policia cercou o local. E obviamente, uma enorme multidão de estudantes cercou a polícia ao mesmo tempo que fazia chegar aos cercados na AAC todo o género de auxílios, desde ferramentas para fortificar a casa cercada até água, cigarros e mantimentos de boca.
Uma comissão de Professores interveio e conseguiu um acordo que permitiu a saída dos defensores da AAC sem sequer serem identificados pela policia, ao mesmo tempo que uma frágil trégua garantia a exploração de eventuais possibilidades para restabelecer a liberdade associativa, resolver as ameaças dos processos disciplinares, evitar a não realização da Queima das Fitas bem como o abandono de todos os campeonatos desportivos disputados pela Associação Académica.
Em crónica(s) seguinte(s) se verificará como as coisas evoluíram, mesmo que desde já se previna que não evoluíram bem.
Cinquenta anos depois, dia por dia, recordo com comoção, com orgulho e talvez com alguma saudade, não só os muitos companheiros e colegas que já não estão connosco mas sobretudo todos os outros que comigo nesse dia tentaram quixotescamente defender a sua Associação e a honra da sua Universidade contra tantos e tão formidáveis adversários. E nesse dia 9 (e no seguinte) por escassas horas sentimo-nos vitoriosos.
em memória de Abílio Vieira, Alfredo Soveral Martins, Alfredo Fernandes Martins, Francisco Delgado, José Monteiro, Jorge Bretão, João Quintela, Luís Bagulho, José Luis Nunes, João Bilhau, António Machado Vaz, presos ou expulsos (ou as duas coisas) em Coimbra 1962