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sobre manifestações, violências ocorridas & similares
(Declaração de interesses: sou a favor de manifestações de rua. E sou-o desde os meus ingénuos dezoito anos, data em que me estreei levando um enxerto de bordoada da polícia. Desde esse pouco auspicioso início de opinião política até Abril de 1974 participei em todas as manifestações que me passaram ao alcance, incluindo no lote, algumas ocorridas em outras geografias (Espanha, França, Itália e Alemanha). Falo de manifestações políticas, protestárias as mais das vezes, sob o signo de reivindicações democráticas e desenrolando-se pacificamente)
Mais de uma dúzia de anos a levar no lombo, a correr o risco de ser preso, dão-me, no tema, alguma autoridade. Sem, todavia, querer editar um manual, penso que é possível firmar meia dúzia de verdades incontroversas.
Uma manifestação de protesto é sempre um risco. Primeiro porque suscita animosidade por parte da pessoa, entidade ou partido visados, depois porque pode sempre "degenerar". "Sempre" não é um abuso ou uma força de expressão. Razões de toda a ordem (ou desrazões, se quiserem) fazem com que haja normalmente quem pretenda aproveitar o reboliço causado por uma concentração de pessoas para criar problemas. aos manifestantes ou aos seus adversários.
É essa a razão de haver normalmente "serviços de ordem" que se encarregam, com a dureza necessária, de enquadrar, proteger, encaminhar os manifestantes ao mesmo tempo que, tentam evitar a colagem de elementos exteriores que pretendam desviar o rumo da manifestação para actuações não previstas - nem desejadas - por quem decidiu organizar a manifestação.
Convenhamos que se trata de uma precaução evidente e necessária: as manifestações políticas são, as mais das vezes, contra um estado de coisas. Contra um poder. Contra quem tem a força do seu lado. Contra, finalmente, quem seguramente iria responsabilizar os manifestantes pelos eventuais distúrbios que ocorressem durante a jornada de protesto.
A manifestação tem de ser protegida contra o desvario de algum manifestante mais exuberante e, sobretudo, contra elementos provocadores que nela se possam integrar com a finalidade de a desacreditar.
Em segundo lugar, mesmo sabendo-se tudo o que acima se disse, pode sem grande dificuldade afirmar-se que há, sempre, entre os manifestantes quem não aprecie a moderação imposta. Ocorre, até, que a própria resposta à manifestação, desde a proibição à repressão, desde a tolerância ao desprezo, haja quem, por isso mesmo se irrite, se excite, perca a cabeça e tente ir além do mero protesto pacífico.
Se, em casos extremos, a repressão assume violência, então é previsível que haja quem não goste de ser espancado, perseguido, preso, gaseado, molhado por mangueiras e tente defender-se ou ripostar.
Em tempos bem mais interessantes do que os actuais, um grupo de amigos em que me incluía redigiu mesmo um guia para manifestantes. Entre outros conselhos, propúnhamos o de ir junto da cabeça da manifestação para poder fugir à pancadaria furando a barreira policial. Tínhamos assumido que a primeira carga é sempre mais branda e menos colérica e, ainda hoje, penso o mesmo. Num primeiro momento a polícia apenas quer dispersar a multidão, depois, com as tentativas de defesa dos manifestantes, as coisas tornam-se mais difíceis.
Outro ponto em que insistíamos era o de que, uma vez começado o conflito entre manifestantes e "forças da ordem", já ninguém estava seguro. Violentos e não violentos comiam pela medida grande. No auge da repressão ninguém faz a diferença entre os bons e os maus.
Quando, por conseguinte, algum comentador vem criticar o facto da polícia não distinguir na multidão quem é ou não violento, está claramente a delirar. E a pedir às "forças da ordem" uma calma e uma contenção que só existem nos espíritos bem intencionados.
Nos tempos da "Rote Armee Fraktion", os militantes ultra-esquerdistas exploravam com eficácia germânica a porosidade dos agrupamentos manifestantes, desde o núcleo radical, até às margens vagamente simpatizantes. Citando Mao, "o guerrilheiro move-se no seio do povo como um peixe na água",defendiam que as massas simpatizantes (ou só tolerantes) eram um meio óptimo de permanecer ocultos.
E insistiam que a repressão policial, que esperavam e provocavam, aumentaria o "estado de consciência das (mesmas) massas" circundantes e criariam novos pólos de rebelião.
Por outras palavras, e no caso em apreço, por muito que a CGTP se indigne (justamente) com os excessos cometidos por "incontrolados", bom seria que pensasse que não basta ir até ao Parlamento vociferar três propostas e dar por terminada a actividade manifestante do dia e da jornada. É que, como se viu, ali ficaram os tais "incontrolados" e uma turbamulta que apenas queria apreciar o espectáculo e gritar um par de slogans.
Esqueciam-se, os deste segundo grupo - o mais numeroso e pacífico- que a sua simples presença e o seu vago apoio traduzido em palavras de ordem, alguns "viva" e um que outro "morra", confortavam as criaturas que laboriosamente desfaziam a calçada, amontoavam as pedras que depois arremessavam aplicadamente contra a polícia que protegia o Parlamento. É verdade que alguns cidadãos, mais conscientes (ou inconscientes?) vieram fazer pequenas e ineficazes interposições entre os aspirantes a guerrilheiros urbanos e o destacamento policial. Melhor fora que tivessem avisado o restante e compacto grupo de interessadas testemunhas do que, sem dúvida alguma, mais tarde ou mais cedo, iria suceder.
A carga policial que ocorreu, como era mais do que espectável, varreu a zona fronteira de S Bento e pouco mais. Na confusão, cidadãos curiosos e pacíficos tornaram-se alvo de bastonadas, situação claramente evitável se tivessem atempadamente retirado do local tornado perigoso pelas horas de pedradas aos agentes.
Eu apenas vi estas cenas pela televisão. E se alguma coisa me espantou foi o tempo que demorou a ordem para a carga.
Ou nem isso. Ainda que duvide da perspicácia policial, tenho por certo que há sempre um tempo de espera e de reflexão para activar a repressão bem como esse tempo pode ser prolongado para a desculpar permitindo que a televisão (como foi o caso) mostrasse complacente e demoradamente os manejos dos rapazolas que amontoavam a sua munição nas barbas da polícia e depois a usavam com algum sucesso (fala-se numa vintena de agentes feridos por pedradas).
Vi, como qualquer outro tele-espectador, a polícia a fazer detenções e,ao contrário de um comentador habitual do público, não consegui verificar nenhuma expressiva violência. Se algum catecúmeno entende que a as detenções se devem fazer com cortesia, peço desculpa mas gostaria que me dissesse onde ocorre tal uso.
Também, só por absurda toleima, se pode criticar ou fingir surpresa quanto à existência de polícias à paisana no meio dos manifestantes. Mais perplexo fico quando alguém, sem o afirmar expressamente, vem arguir que os polícias à paisana e infiltrados não devem incitar a actos de violência. Houve incitamento? Verificaram-se provocações policiais por parte desses agentes? É acaso "desleal" a utilização de agentes à paisana?
Se não ocorreu nenhuma das situações apontadas, então a que vem o argumento?
Finalmente: mesmo se não se ouvem especiais críticas à actuação policial (e isto desde a CGTP ao PC ou ao PS), subentende-se em certos e raros comentaristas uma espécie de lamento indignado. Como se esperassem -desejassem? - mais sangue, mais raiva, mais vítimas maior tensão!…
O Secretário Geral do PCP veio, por seu turno, lamentar que da "grandiosa" Greve Geral (levada a cabo pela CGTP, organização teoricamente independente do Partido) só restem os ecos das pedradas. Singular ingenuidade! Será que Jerónimo não aprendeu que o homem mordido pelo cão não é notícia ao invés da do cão mordido pelo homem? Ter-lhe-á por algum momento perpassado pela cabecinha pensadora que os media se precipitariam que nem abutres sobre o fait-divers das pedradas, mesmo se breve e insólito. Que a Greve seria grande não é novidade, já não é novidade. Basta atacar o sector dos transportes que, a partir daí, boa parte das empresas entra em desequilíbrio.
A última questão que esta manifestação põe (e a mais sensível) é a que foi recentemente levantada pela pedido da PSP das filmagens não editadas pelas televisões. A polícia louva-se na necessidade de verificar se dentre as pessoas filmadas figuram elementos que praticaram ali actos violentos. As televisões retorquem que as imagens não editadas caem na esfera do sigilo profissional. A pergunta a fazer é se, quando alguém atingir mortalmente outrem com uma pedrada ou com uma bastonada, isso ainda está protegido como se fora o sacramento da comunhão.
A lei, no caso em apreço, dá todo o espaço a dúvidas. Qualificar imagens não editadas como "sigilo profissional" parece-me forçado. Todavia, a intangibilidade dessas filmagens em bruto pode ser a garantia de que os jornalistas e operadores de imagem necessitam para levar a cabo o seu trabalho sem serem incomodados. Doutro modo, poderia ocorrer que os manifestantes filmados, ou em vias de o serem, tentassem destruir as provas da sua presença agredindo os repórteres e destruindo-lhes o equipamento. Vir a este propósito como li, com o "direito a informar", pode, porém, ser forçado. Mesmo sendo contra a ideia de que se deve legislar sobre tudo, conviria, numa matéria tão sensível, aclarar as dúvidas legais que se possam suscitar. Para não se cair na aberrante situação de anular como meio de prova uma filmagem que revele um delito (o já usado exemplo da pedrada que fere seriamente o alvejado. Ou que o fere, tout-court!)
O Ministro da Administração Interna já veio pedir à PGR um parecer sobre a questão. Fez bem mas teria feito muito melhor se o tivesse feito antes dos factos e da visita da PSP à televisão. Uma coisa é prever, outra emendar. E aos ministros pede-se mais do que andar a reboque dos factos.
Finalmente: parece que uma criatura, dirigente de um dos fantasmáticos grupos manifestantes, veio a terreiro protestar não só contra a barbaridade policial mas também contra a adjectivação tola e forte com que foi crismado o seu grupo (qualquer coisa como "radical", "terrorista", "violento" ou similar). Vê-se que é bem portuguesa e bem estribada nos "brandos costumes" e que desconhece a "mansidão policial" geral e internacional. E adivinha-se na sua retórica indignação que a criatura não analisa sequer os termos com que descreve o Governo, os outros, os adversários e a polícia. Ou seja, desboca-se em imprecações contra os que lhe retorquem na mesma moeda. Uma linguagem violenta suscita outra de igual teor. O resto é tolice.
*como se vê na imagem, o recurso piedoso a uma certa iconografia revolucionária não é exclusivo português. Apenas representa um imaginário conservador fora do tempo e da realidade.
d'Oliveira fecit 24.11.012