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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Au bonheur des dames 335

d'oliveira, 15.11.12

Eduardo Prado Coelho

 

 

 

Tinha decidido (e prometido à Maria Manuel) ir até à Gulbenkian nestes dois dias de homenagem e recordação do Eduardo. Razões ponderosas obrigaram-me a ficar por aqui, no Porto. Se, por um lado lamento perder este encontro de amigos de um amigo meu, por outro talvez prefira esta distância. Detesto comover-me em público.

 

Conheci o Eduardo nos anos setenta, penso que ainda antes do 25 de Abril. Foi na Figueira, num pequeno festival de cinema independente que durou  uns bons anos. Anos em que nos voltávamos a encontrar e a conversar longamente. E a discutir, já agora. Faço parte do grupo de pessoas a quem, de quando em quando, o Eduardo exasperava. E exasperava por que, tão leitores dele éramos, que queríamos sempre um acordo total com o que pensávamos. Ora o EPC era um matreiro de primeira e dava tudo por, volta que não volta, causar uma surpresa, lançar um desafio, remar contra a corrente que ajudara a criar, enfim "desinstalar-se"… E, leitor de mesa de café (e ele bem que referia isso, numa crónica em boa hora ressuscitada pelo "Público") ficava irritado quando ele saía do carreiro e me obrigava a pensar. E a discordar. 

 

Claro que no dia seguinte, lá estava eu, de novo, à mesma mesa, repegando na conversa de sempre, lendo-o, rindo, meditando, comovendo-me, aplaudindo ou rosnando umas ameaças inocentes. 

 

Algumas vezes, poucas, lamento-o agora, trocámos uns bilhetes, alguma picardia em jornais onde ocasionalmente escrevi, como foi o caso do finado "O Jornal". À pala desse, ainda lhe tive de oferecer um almocinho no também desaparecido "Montecarlo". De facto, acabava de me sentar disposto a comer um famoso caril que lá se servia e eis que oiço a inconfundível voz dele "com que então agora andas a citar-me?" e, zás!, já só o vi sentado à minha frente, descarregando um fardo de livros e revistas na cadeira ao lado. Achei melhor pagar os direitos de autor que lhe eram devidos convidando-o a partilhar o caril mas o finório escapuliu-se para outro prato. E eu, que pensava demorar-me meia hora, um pouco mais, estive, se bem recordo, mais de duas horas e quatro cafés à conversa. Nesse dia, recordo que trespassámos com garfo e faca meia dúzia de bonzos nacionais e estrangeiros a que, descobrimos numa gargalhada cúmplice, tínhamos uma osga antiga e profunda. 

 

Confesso que, se já gostava dele, nesse dia aumentei fortemente a minha simpatia. É que partilhar gostos e ideias pode ser estimulante mas não chega à descoberta de antipatias comuns.E nesse dia glorioso e sangrento bem que nos demos ao cuidado de bordar a ponto cruz um par de criaturas detestáveis (ai que saudades, agora, que tanto poderíamos dizer-nos!…)

 

A última vez que estivemos juntos, foi cá, em casa, enquanto a Maria Manuel se entregava a uma dificultosa e demorada sessão de cabeleireiro e afins. 

 

Nessa manhã, refastelado num maple, o Eduardo contou-me uma parte da sua biografia amorosa e juro-o, aquilo, atempadamente gravado, dava um romance hilariante. A mordacidade, a ironia, alguma comovente singeleza, outro tanto de ingenuidade valiam o seu peso em oiro. Eu já não sabia como havia de parar de rir, de admirar o discurso e quase nem fazia perguntas. E ele desfiando uma história fluida com uma frieza temperada pro umas piscadelas de olho, que o patife saboreava o seu triunfo de contador perante o ouvinte fascinado. 

 

Meses depois, poucos, morria. Na praia, depois de vencer tantas dificuldades, de obter um fígado novo, de imaginar uns anos tranquilos. 

 

Cinco anos, já. E continua a fazer falta...

 

* Há retratos bem melhores do Eduardo. Mas este é, eventualmente, o último e revela um pouco os tempos difíceis a que ele parecia ter sobrevivido