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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

D iário Político 184

mcr, 09.05.13

 

O jornalista João Miguel Tavares assina no Público uma crónica sobre o assassínio de um estudante que tentou defender os cofres da Queima das fitas do Porto.

Mesmo assim, a festa finalístico-alcoólica continuou como se nada fosse. Parece que pará-la por uns momentos, máxime um dia, custaria uma dinheirama preta.

E depois, ao que alegam uns alegres beberrões, o morto era “praxista” e choraria de alegria ao saber que lhe festejam o trágico passamento com hectolitros de carrascão, cerveja e anónimos shots.

O jornalista, e bem!, pergunta-se que gentinha é esta que bebe para festejar um luto como ocorreria “entre os bosquímanos do Kalahari”-

Não tenho procuração para falar em nome dos povos Koisan, assim se chama às etnias Guy e Gana que constituem, no essencial, o grupo que habita aquelas inóspitas paragens.

Posso, porque já li umas coisinhas sobre eles, afirmar que se algum membro do clã lhes morresse em semelhante circunstância não se arrastariam bêbados como carros pelas dunas do deserto.

Há nesta gente primordial e anterior a todas as restantes populações africanas um sentido da vida, da ética e da moral que felizmente os distinguem a léguas de distância da avinhada estudantada portuense que queima fitas energia e solidariedade a jactos de aguardente ou similares.  

Au bonheur des Dames 342

d'oliveira, 09.05.13

 

 

Mais duas livrarias...

 

É provável que os leitores menos distraídos tenham reparado que, na zona do Chiado, desapareceram recentemente duas livrarias, ambas alfarrabistas: A “Barateira” e a “Camões”. Já antes, há poucos anos, soçobrara a “Histórico-Ultramarina” (Almarjão), local de devoção de todos os leitores que não se deixam encadear pela última novidade.

E que outras duas vivem nos cuidados intensivos: A velha “Sá da Costa” e a surpreendente “Loja das Colecções”. A primeira anda em bolandas em processo de falência e a segunda só abre à tarde depois da morte do proprietário, substituído por uma herdeira gentil mas com mais ocupações. Lembremos que, no espaço entre as “escadas do Duque” e o Carmo, desapareceram também outras pequenas livrarias alfarrabistas.

Agora toca a vez a mais duas: A “Olisipo” de José Vicente e a  “Artes e Letras” de Luís Gomes. Ambas no largo Trindade Coelho, a que todos chamam da Misericórdia. Local perfeito, diariamente atravessado por hordas de turistas e por isso financeiramente prometedor.

Ao que sei, depois de ambos os livreiros já terem negociado as novas rendas com o senhorio, eis que este, subitamente iluminado pelo desejo altamente cultural de valorizar o seu imóvel, se perdeu de amores por (mais um! ) projecto de “hostel”, coisa que, como se sabe rareia medonhamente em Lisboa e no Bairro Alto!...

No iminente despejo irão outros inquilinos, entre eles um restaurante que, com a reduzida indemnização que o fecho lhe trará, atirará com doze (12) empregados para o desemprego.

(sou, com mais familiares, senhorio em Lisboa e sei como nos sentíamos sob a alçada da antiga lei. Todavia, com a recente, e no que toca a lojas, prepara-se uma hecatombe.)

Ora, eis como os percursos “culturais” do Bairro Alto se afunilam de “hostel” em “hostel” numa zona que começa a estar sobrecarregada de hotelaria. A dois passos deste local, abriu mais um hotel de cinco estrelas enquanto, paralelamente desapareceram dois estabelecimentos dedicados à venda de bens culturais (a “Silk Road”, loja excelente!-  de artes africanas e uma outra livraria. E lembre-se, de passo, que também a sede da Babel migrou para parte incerta).

Outro que nanja eu viria aqui propor ao Estado, à Câmara ou a qualquer poder público diligências tremendas para não permitir esta desertificação.  Desenganem-se, porém, os apressados. Eu apenas constato a feia e triste realidade e nada venho pedir, peticionar, às ex.as

Autoridades, das quais aliás descreio absolutamente.

As livrarias desaparecidas e as prestes a desaparecer tiveram-me (e têm-me) como cliente assíduo. O Luís Gomes tinha (como esporadicamente também ocorreu com a Sá da Costa) um motivo suplementar: uma gata velha, velhíssima, já quase desdentada que que me consentia um par de carícias enquanto vagamente ronronava. Os restantes livreiros contribuíram decisivamente para a minha ajuda a debelar a(s) crise(s), empochando bom dinheiro em troca de alguns centos de livros e revistas que lhes fui comprando. E isto, só indo a Lisboa alguns dias por mês. Conheço duas ou três dúzias de pessoas só de me encontrar com elas naqueles antros de livros, pó e boa conversa. Vão fazer-me falta, muita falta. Aliás já fazem. Imaginem que a “Barateira” (onde uma vez me surgiu todo o “lagardere” , motivo de inveja de vários amigos meus que em tempos hão-de ter sonhado com a destreza do famoso espadachim)  tinha por lá em pousio um volumoso lote de exemplares da “Ilustração Portuguesa” (1906-1924, 2ª série). Namorei-o durante anos, prometendo a mim próprio começar a comprá-los caso caísse na tentação de me atrever àquela copiosa revista. Quando, finalmente, me resolvi, eis que dou com a porta fechada “por motivo de férias” como dizia um papelucho. As férias prolongaram-se indefinidamente e o encerramento ocorreu mesmo. Consta que as instalações são agora sede  de uma empresa  que organiza “eventos” (assim mesmo!) que há muito se encantara com um jardim traseiro muito bonito!

No meio de desastres tão variados como os que vivemos (desde a crise propriamente dita, ao regresso inocente de Sócrates “o injustamente maltratado”, desde a merencória desaparição de Relvas, o “pesquisador da verdade”, até ao balbuciar tremelicante de Seguro, desde as arremetidas de um quarteirão de criaturas vociferantes até à inépcia evidente de Passos, desde a ultrajada inocência nacional até ao infame, vil e despudorado egoísmo dos ricaços do norte, tudo nos cai em cima!) seria quase indecente estar para aqui a carpir o fim de umas quantas livrarias ou a condenar o desejo de ganho de um par de senhorios. Todavia, ocorre-me que esta equação livrarias a menos, hotéis e restaurantes caros a mais, pode acabar com um bairro tradicional e com uma história cultural de quase duzentos anos. E que os batalhões de turistas que agora se derramam por estas míticas paragens não passam de uma moda, provavelmente passageira: o turista raramente repete os anteriores passos e muitos deles só aparecem porque, por enquanto, as coisas são diferentes, baratas e estão na moda. (Venho de uma terra que cresceu muito à conta de um turismo que, em dez escassos anos, começou a rarear : apareceram praias mais “in”, águas mais quentes, já pouca gente necessita das linhas férreas da Beira Alta e do Oeste, de resto desactivadas..., para ir a banhos. Entretanto, a cidade descurara os seus tradicionais meios de subsistência, a pesca, as conservas, os estaleiros navais, o tráfico marítimo para se concentrar na caça ao veraneante, coisa mais fácil e proveitosa. O resultado está à vista: basta dar um salto à Figueira para perceber que nem o milagre da multiplicação das autoestradas vazias a salva).  

E se, em vez de abaixo-assinados e outras vulgaridades pretensamente cívicas, os meus leitores experimentassem uma visita a estas duas livrarias que ainda mexem? E se prolongassem o passeio pela “Bizantina (Rª da Misericórdia) Trindade (Rª do Alecrim), Burnay (rª da Chagas), Letra-livre, Nova Eclética (Calçada do Combro, ambas) , ir até à Calçada do Duque, à Rª Anchieta ou finalmente descer a R Nova do Almada? De certeza que não perderiam o seu tempo e ficariam, pelo menos, com uma visão que um futuro incerto poderá fazer desaparecer.

E os do Porto? Pois no Porto os alfarrabistas resistem à crise como podem e ainda não se vê sinal de fecho de lojas. Um passeio da rª de Entreparedes ( Manuel dos  Santos) até à rua das Flores (Chaminé da Mota) e daí para a zona do “bairro do livro” ( Académica, Lumiére, Vieira, Homem dos livros, Paraíso do Livro, Sousa & Almeida e Morreira da Costa), donde se pode partir para a confluência Cedofeita/Figueiroa (Candelabro e Varadero).Mais abaixo, na confluência Cedofeita torrinha está a in libris que me caçou recentemente um bom pecúlio. A partir daqui para oeste há ainda a Esquina (foco) e para leste a Utopia (Regeneração). Em todos estes poisios encontrei (e encontro) excelentes livros, profissionais de mão cheia, gente que gosta de livros e que é facilmente acessível graças à internet para quem não está para grandes caminhadas.

Hoje em dia, a massificação imposta às livrarias de novidades, a concorrência das fnac & assimilados, fazem com que seja nos alfarrabistas que o leitor pode encontrar (e encontrar-se) o livro que procura. 

Leitores e amigos, encore un effort et le livre sera sauvé (como diria o divino marquês) Arrisquem um passeio por estas simpáticas lojas, esqueçam por momentos a estridência da crise, o vociferar das oposições a languidez governamental: há por aí um livro, uma aventura, um sonho, uma primavera à vossa espera. (rima e é verdade)

Vosso companheiro em leituras várias

mcr

 

na estampa: a olisipo tal qual ainda a podemos visitar. Ao fundo o grande livreiro sr. José Vicente