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Retrato fiel de uma repartição de finanças e das desventuras que lá se passam
Sou, como muitos portugueses (fora um par de milhões que por fas ou por nefas não paga impostos), um contribuinte líquido para a inextinguível gula do Fisco.
Do Fisco e dos seus agentes, acrescento pois que, ao que suponho, essa brava e fera gente recebe um salário bem melhor que o comum dos funcionários públicos que, de per si, sobretudo nos escalões mais baixos, aufere réditos maiores do que os seus semelhantes do privado.
Os impostos foram inventados para, além de custearem um par de despesas públicas úteis e necessárias, servirem de cofre para gastos sumptuários, idiotas, estúpidos com que os alarves que enxameiam os corredores do poder premeiam afilhados e se mostram generosos perante a populaça. Ele é rotundas e auto-estradas, recuperação faraónica de escolas, lugares de assessor em barda para as jotas, as jotinhas, os amigos, as amigas e as amiguinhas, automóveis de serviço de alta cilindrada, para não falar das vezes em que metem a pata ávida até ao cotovelo no bolso inerme dos contribuintes. Tudo sem justificar seja o que for, sem provar o interesse nacional dos dispêndios, sem sequer reparar no crescimento da dívida. Por essas e por outras estamos onde estamos, isto é, na merda.
Para mal dos meus pecados, herdei com minha Mãe e meu Irmão, uns prédios em Lisboa. Deles temos cuidado não só por interesse próprio mas também porque temos respeito pelos inquilinos que, numa esmagadora maioria, pagam somas insignificantes pelo arrendamento.
Não espantarei ninguém se disser que, este ano, os nossos rendimentos foram negativos. Ou seja foram mais as despesas de conservação e manutenção, imi, taxas várias, etc., do que o que recebemos dos inquilinos. Como mero exemplo, acrescentarei que num desses prédios vendemos uma fracção que, mesmo não indo a mais de 50% do seu real valor (a venda foi feita a um inquilino de muitos anos...), representou mais de cem anos de rendas!
A distribuição dos valores recebidos obedece grosso modo à regra seguinte: Eu e meu Irmão recebemos cada um 10% e a nossa Mãe fica com os restantes 80%. Para que nada lhe falte e algum mimo suplementar.
Quando foi altura de fazermos a nossa declaração de IRS, não hesitamos em, preto no branco, apresentar todas (e só essas) as despesas que podíamos comprovar.
Como seria de esperar, o Fisco esse polvo tentacular, esse big brother fanático que suspeita de tudo e de todos, que vê em cada contribuinte, um relapso, um gatuno, um vicioso e um canalha, logo veio avisar que “a declaração de rendimentos.... foi seleccionada para análise por ter(em) sido detectada(s) a(s) seguinte(s) situação (ões): necessidade de comprovação dos montantes das despesas de prédios arrendados”
(descobri hoje em conversa com um funcionário que idêntico aviso fora feito a praticamente todos os que possuem prédios arrendados. A coisa originou um monumental engarrafamento nas repartições alem de ter desesperado dezenas ou centenas de milhares de humilhados senhorios que tiveram de fazer a via sacra das repartições em intermináveis esperas, sujeitos ao humor de funcionários cansados, irritados que se vingavam da sua má condição nos desgraçados que a medo lhes iam entregando recibos, contas, mapas sei lá que mais.)
No nosso caso, como os prédios são em Lisboa, onde residem os meus familiares, entendeu meu Irmão, propor resolver o meu caso no mesmo sítio deles. Que não! Que a minha justificação havia de ser apresentada aqui, na Invicta e sempre nobre cidade do Porto.
Todavia, condoída pelos dez quilos de documentos que o meu Irmão carregou para repartição, a funcionária que o recebeu, aconselhou-o a enviar-me cópia da certidão que lhe era passada, cujo teor confirmava a justeza da nossa declaração. E prestou-se a dar o nome, as indicações da repartição para, cá no Porto, saberem com quem a coisa tinha sido falada e resolvida. Acreditava a pobre senhora que o seu nome e a sua função seriam viático suficiente para eu ser exculpado de medonhas conspirações anti-fiscais e anti-nacionais.
Munido de vária documentação recebida via internet lá peregrinei ad loca infecta, ou seja para o local de martírio fiscal.
Muni-me de um livro que ia a meio e de uma revista de cem páginas sobre Boris Vian.
Fiz o conveniente xixi antes de entrar no local de martírio. Abstive-me de tomar café ou beber água para poder suportar aquela jornada sem ficar apertado pela ânsia mijona. Estacionei a viatura (reparem-me neste tom oficial e funcionário), paguei antecipadamente umas horas de parque e entrei, temeroso, na Repartição de finanças.
Descobri que, apesar de haver uma dúzia de balcões, só cinco estavam em serviço. Eficiência nacional, santa Troika nos valha.
Descobri, em seguida, que havendo cinco géneros de assuntos para tratar, a cada um correspondia apenas um balcão.
Descobri que desses cinco graves assuntos, três pareciam estar de férias ou de greve porquanto rapidamente deixaram de pedir cidadãos incumpridores.
A boa lógica aconselharia, digo eu que sou pessoa de maus instintos, que perante o povo pacientemente à espera, se dedicassem os balcões vagos a adiantar o serviços que ali traziam aquela chusma. Nada feito. Em teoria a ideia seria boa mas cheirava demasiado a eficiência germânica e para Merkel já todos teremos dado.
Penei duas horas e meia (e houve apenas cinco pessoas à minha frente!!!) até ser atendido por uma megera, gorda, feia, suada, pitosga e de mau hálito.
Expliquei ao que vinha e como em Lisboa uma Funcionária (com um digno F grande) tinha pensado facilitar-me a vida.
A criatura regougou que Lisboa era Lisboa e o Porto, o Porto! Admirado com tão extraordinária revelação, balbuciei, que também andara na escola, passara honradamente a geografia e tinha a maior das admirações e respeito pelas excelsas virtudes da repartição portuense. E acrescentei que, para lhe trazer a ela dez quilos de papel, teria de os ir buscar a Lisboa, onde tinham sido vistos, revistos, escrutinados, sopesados, acariciados por uma colega dela que até fornecia nome, telefone e mais minúcias para comprovar à minha algoz que eu, com setenta e um anos em cima, era pessoa de bem e devotado cumpridor (mesmo se obrigado) das oobrigações fiscais.
Rosnou coisas tremendas ao ponto de me enfurecer. Vendo que daquele jacaré adiposo nada mais tinha a esperar, e muito menos compreensão, retorqui-lhe que obviamente traria a montanha documental mas que, entretanto, e só para ela perceber que com Fafe ninguém fanfa, achava melhor recorrer ao livrinho das reclamações para expor o meu descontentamento.
Levantou-se com uma impressionante velocidade (para o peso e o escasso zelo e nula simpatia até aí demonstrados) e quando eu já me via esmurrado, esbofeteado, escoicinhado, ou pior: beijado, ei-la que desandou para local invisível onde se demorou uns minutos. Foi buscar um trabuco, pensei, uma faca, uma navalha de ponta e mola, uma bomba, a vassoura onde viaja de casa para a repartição e desta para o sabath, enfim qualquer coisa perigosa.
Mas não. Regressou acompanhada por um colega, que trazia debaixo do braço o que presumi ser o livrinho amarelo. Este, cortesmente, convidou-me a sentar-me no balcão ao lado e dispôs-se a ouvir-me. Repeti o já dito e recém chegado funcionário, sempre com ar sério mas amável, começou a dedilhar o computador. Verificou as minhas contas, explicou-me que, dadas as circunstâncias (a megera ao lado, claro), teria de me pedir comprovação de uma despesa, bem gorda ( quase sete brasas, porra!) por sinal. E mais outra, essa de conservação que andava por uns largos centos de euros Se o meu Irmão lha poderia mandar imediatamente por mail. Liguei para o caçula, expus-lhe a situação e ele declarou que em relação á primeira era chato mas factível enquanto que no caso da segunda havia que juntar cerca de quarenta documentos.
Ao saber disto, o funcionário, bendito seja ele!) que me atendia afirmou que se contentaria com a grandona.
E deu-me o seu mail para eu lha poder mandar. E recomendou-me pressa pois ia amanhã para férias. E que eu não me inquietasse pois se hoje fosse de todo em todo impossível fazer chegar os documentos, ele deixaria (se por mim avisado da impossibilidade) tudo ao cuidado de um colega.
Agradeci como competia o cuidado, o zelo, a simpatia e a compreensão desse verdadeiro servidor público. Resolvi não apresentar reclamação contra a hedionda gorda. O meu interlocutor, com habilidade mas discretamente, traçou-me o quadro negro do calor que fez, dios montes de contibuintes alarmados e queixosos, da trabalheira medonha, enfim, sem nunca o dizer tentou desculpar a imbecil mal educada do lado. Que se lixe a criatura, espécie de peido engarrafado!
E boas férias, colega funcionário, boas férias, bom tempo, boa sorte.
Por um momento desculpei o mundo e esta nossa triste realidade. E fui, numa carreira, deitar águas a um café perto, pois estar ali, mesmo se a ler (li tudo o que levava), dá a volta à bexiga de um cavalheiro.
Leitores que aqui heroicamente chegaram: isto do fisco é uma maldição que nos lançaram. E numa época de computadores, ninguém percebe este estúpido bairrismo. Nada é feito para aliviar os incómodos do contribuinte. Parece que somos todos suspeitos de pedofilia ou algo ainda mais grave. O Estado, este Estado trata-nos como “cães perdidos sem coleira”. Só servimos para pagar sem bufar. A grande maioria dos nossos concidadãos, mais frágeis, mais ignorantes, mais timoratos, abaixa a cabeça e deixa-se espezinhar. Quando estas cobras cuspideiras apanham pela frente um cidadão educado, com estudos e exigente, até se mijam nas calças. Peçam sempre o livrinho das reclamações. A cada má vontade, reclamação. A cada grosseria, resistência. Portugal muda por baixo, não por cima. A eles, sem pavor.