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Ano que não deixa saudades
A bem dizer nem se devia falar em saudades. 3013 foi uma valente merda, passe o plebeísmo. E foi-o pelas razões que todos sentem ou sabem ou pressentem. Mas foi-o ainda mais por outras, mais obscuras e insidiosas com que se alimentaram ilusões que nunca por nunca tiveram razão de ser.
Comecemos por essa mais fácil: as esperanças depositadas na eventual nova governação alemã. Alminhas cândidas e tolas sonharam que a entrada do SPD (Partido Social-Democrata Alemão) no governo da senhora Merkel iria ajudar imenso a causa portuguesa, não falando na grega mal comportada ou nas outras que por aí pululam desde as declaradas italiana e espanhola até às temíveis eslovena e cipriota (de que ninguém, ou quase, fala!).
Com a costumeira impertinência e o estafado reaccionarismo de que me vão acusando, já aqui tinha afirmado que, com sociais democratas ou sem eles no Governo, Merkel manteria as posições que sempre defendeu.
Acontece que uma boa parte dos cavalheiros que se dedicam ao difícil exercício do comentário político já antes tinha afocinhado ao prever que o senhor Hollande nos iria tirar da fossa onde vegetamos. Não tirou, não tira e não tirará. Bom trabalho tem ele, lá pelas franças e araganças onde cai a pique a sua decrescente popularidade.
Entre nós, portugueses, houve sempre a ideia de que alguém saindo de um medonho nevoeiro nos viria salvar. Tudo terá, eventualmente, começado com D Sebastião, uma criatura que se deixou morrer nos areais de Marrocos mas que a piedade lusa teimou em considerar um herói.
Na construção da nossa anti-história, Sebastião é um modelo e o malvado Filipe II de Espanha um tratante. Como se este não tivesse avisado o pouco avisado Sebastião da asneira em que se ia meter; como se Filipe não fosse, pelas leis dinásticas da época o mais próximo candidato à coroa portuguesa; como se não tivesse existido – e predominante – um “partido espanhol” em Portugal, para já não falar nos muitos que se apressaram a encher a bolsa com o oiro vindo de além fronteiras; como se a pequena excursão guerreira espanhola por terras lusas não tivesse provado o pouco apego português a uma espécie de sentimento nacional e o descaso em que a lusa gente tinha pelo prior do Crato; e por aí fora...
Portanto, e para abreviar, nem Hollande nem Merkel com tempero socialista resolvem os nossos problemas. A patética declaração do senhor Seguro (iria empenhar-se imenso junto do SPD para servir a pátria...) foi só isso: um verbo de encher, mais uma prova da inanidade do seu inexistente pensamento estratégico. O que salva Seguro é Passos (e vice-vrsa). Os dois juntos valem zero mas separados atingem proporções tremendas de negatividade.
Anda por aí outra mansa onda de loucura, a saber: Rui Rio e Costa, putativos candidatos à liderança nos respectivos clubes, poderiam salvar o pagode. Convenhamos que quer um quer outro estão a léguas luz de distância dos dois actuais líderes partidários dos partidos de governo. Também não é preciso muito!
Todavia, e é aqui que a porca torce o rabo, nenhum dos dois cavalheiros em causa parece entusiasmar-se com a hipótese de vir salvar o jardim à beira mar plantado. Rio propôs-se um período de nojo e teimosamente, como é seu hábito, vai recusando ofertas blandiciosas e propostas arrojadas de inimigos amigos e de amigos inimigos.
Costa já passou o seu mau bocado com aquele faz que anda mas não anda e está agora cercado de lixo por todos os lados, desnorteado por um grupo de cantoneiros acirrados pela CGTP (que nunca o amou) e que desconfia das seráficas intenções camarárias ao transferir competências e pessoal para as novas freguesias. Costa bem prega as suas boas (dele) razões mas os lixeiros desconfiam, a populaça irrita-se com o lixo dos outros (que não o dela!) à porta de casa, e o cheiro nauseabundo invade a cidade, perturba o fim de ano e as festas. Cheira a Lisboa que se farta!
Outra coisa que me incomoda, et pour cause, é a miserável querela dos velhos contra os novos ou vice versa. Vivi demasiados anos para tolerar agora a acusação de que ando a viver à custa dos meninos e meninas que nasceram depois de 1990. Paguei com os meus impostos (a que nunca fugi) os hospitais e maternidades onde nasceram, a absoluta melhoria de serviço de saúde de que gozaram, as estradas por onde andam, as cidades renovadas onde habitam e até as escolas onde se educaram. Para não falar da liberdade em que cresceram, da possibilidade que, sem risco, têm de criticar o Poder, de se indignar. Por muito má que seja a qualidade de vida desses jovens, ela é infinitamente melhor daquela em que a minha geração nasceu, cresceu e viveu longos anos.
(Com medo, com um sufoco na garganta, com a guerra e a prisão. )
É verdade que agora se emigra. Convém lembrar que só na década de 60 emigrou milhão e meio de portugueses, às escondidas, a salto, arriscando muitas vezes a liberdade ou até a vida. E uma vez chegados às grandes cidades europeias, amontoavam-se em bairros medonhos, eram miseravelmente explorados quanto mais não fosse porque começavam a trabalhar clandestinamente, desconheciam a língua, eram incultos e analfabetos. Comparar essa emigração com a actual é apenas outra infâmia friamente concebida e desavergonhadamente afirmada. Os emigrantes portugueses saíam de um campo empobrecido e apinhado directamente para o “batiment” francês para as fábricas concentracionárias como “O.S.” sindicalmente desenquadrados. Todavia, persistiram, bateram-se como leões, amealharam como formigas, puseram os filhos na escola e, pouco a pouco, ergueram uma contra-cultura própria que cá era desdenhosamente conhecida como dos “vacanceiros”, dos construtores de casas “tipo maison”, dos afrancesados, ainda por cima contra-revolucionários, como se gente que saíra da extrema pobreza com tremendo esforço, que sabia o valor de cada franco, de cada marco, de cada escudo, fosse, sem mais, transformar-se na vanguarda do proletariado rural (que contra-senso!) e no magma onde vicejaria a “Revolução”. Uma “revolução” que, nesses tempos obscuros se tintava de “action directe”, de “rote armee fraktion”, de “brigate rosse” e outras longas marchas sob o signo anti intelectual e anti elitista e anti civilizacional do livrinho vermelho.
E bom seria lembrar que de Portugal sempre se emigrou: em finais do século XIX, dos nossos escassos cinco milhões de habitantes emigravam em média setenta/oitenta mil cidadãos. Essa média até aumentou nos anos da República velha e só baixou durante alguns anos do consulado salazarista por causa da guerra.
No entanto, diz-se que agora esta emigração é mais culta e mais preparada. É verdade: milhares de licenciados procuram fora um emprego que cá dentro não existe, nunca existiu ou foi destruído pela desindustrialização. Convenhamos que excepção feita a certas engenharias, enfermeiros ou uma que outra especialidade, a grande maioria dos licenciados que emigram têm estudos de ciências humanas, línguas e letras modernas, filosofia etc... Ou seja foram estudos perdidos pelo menos no que toca ss saídas profissionais na mesma área. E isso, queiram desculpar, é um problema insolúvel: os antropólogos, os sociólogos, os psicólogos, os historiadores ou os filósofos que a universidade forma às pazadas não terão cá ou fora saída profissional. Do mesmo modo uma boa centena de cursos de engenharia menos tradicional estão votados ao desengano. E por aí fora.
As universidades e os politécnicos que por aí pululam deveriam ser obrigados a fornecer aos candidatos a aluno uma tabela sobre a “empregabilidade” dos cursos neles ministrados. E deveriam ser punidos pela má informação eventualmente prestada. Estou à vontade para falar: tenho um familiar licenciado em antropologia com a mais alta nota do seu curso. Está emigrado em França onde apanha fruta e vive de pequenos empregos fugazes. Ao contrario da irmã que, geóloga de formação, sempre escolheu o local de trabalho (bem pago) mesmo que isso signifique como significou empregos em minas de cobre na selva guineense ou (actualmente) nos confins do Botswana, perto da faixa de Caprivi.
Não quero fazer a apologia da emigração mesmo se venho de famílias emigrantes. Todos os meus antepassados, portugueses ou alemães, com estudos ou sem eles, emigraram para o Brasil ou para África. Eu mesmo, com meus pais e irmão, fomos para Moçambique nos inícios de cinquenta do século passado. Custou? Claro que custou, mas tivemos uma vida bem melhor e sobretudo isso abriu-nos outros horizontes e novas perspectivas (para a pequena história: o meu pai era médico numa pequena cidade costeira onde foi, durante uma boa dúzia de anos, um excelente mas forçado João Semana. Partiu de lá deixando saudades, inúmeros devedores pobres e um certo prestígio que durou muitos anos. Só que o bom nome, a clientela numerosa mas pobre, não eram base para uma família que tinha de pensar nos estudos dos filhos longe daquela terra abençoada.)
A emigração não vai parar nos anos mais próximos. O país fica eventualmente pior sem as dezenas de milhares de jovens que o abandonam. A pirâmide de idades corre o risco de se inverter ainda mais. A Segurança Social será submetida a um esforço ainda maior, dado o decréscimo de contribuintes e as pensões futuras serão ainda menores que as de hoje, já depauperadas. Não é um outro Governo de sinal contrário que mudará em pouco tempo este estado de coisas. Muito menos a emergência política de mais duas ou três tentativas de reunir uma esquerda desunida e sem projecto estratégico. Pelo andar da carruagem, e pelas costumeiras razões, todo este fogo de artifício amortecerá em breve. As eleições que se avizinham resolverão este vago reboliço e é duvidoso que, fora do redil dos partidos tradicionais, haja qualquer surpresa. Convenhamos: as criaturas que agora se agitam em projectos de novos partidos com o fim de ultrapassar as velhas divergências dos “velhos” partidos, vêm todas desses mesmos partidos a redimir. Não conseguiram à primeira, sequer à segunda, cindiram, zangaram-se, insultaram-se, criticaram e foram criticadas envelheceram demasiadamente mas, pelos vistos, estas novas tentativas são a sua prova de vida.
Ninguém toca no essencial, isto é no disparate da eleição para a AR. Todos se conformam com eleger um bando de criaturas a monte, vinculadas por isso mesmo apenas aos partidos e, dentro deles, aos aparelhos. Os deputados respondem apenas perante os partidos e nunca perante os cidadãos. Em mais de noventa por cento dos casos o cidadão eleitor está diante de um muro opaco de (ir)responsabilidades: quem dentre o magote de criaturas que ele elegeu em lista única é responsável pela má governação. Mas há mais: quando deitamos na urna o papelinho com a menção do partido, estaríamos eventualmente a pensar nos candidatos apresentados. Mesmo assim se formos eleitores de Lisboa, Porto, Braga, Aveiro, Setúbal ou Coimbra é enorme a possibilidade de só conhecermos os três ou quatro primeiros. Na suposição do partido que apoiámos ganhar as eleições, muitos dos que elegemos vão ocupar outros postos que não o de deputado. Sobem, entretanto, os últimos da lista e a multidão confusa e desconhecida dos substitutos. E aí temos um Parlamento povoado de mediocridades, de desconhecidos, de desqualificados que, nunca por nunca, sonhámos eleger. E que nunca elegeríamos se tivéssemos a possibilidade de escolher.
Isto vai continuar tal e qual. E querem os leitores que uma pessoa olhe o novo ano esperançosamente?
No entanto (homo sum humani nihil a me allienum puto), e teimo contra toda a lógica, toda a razão, toda a experiência acumulada, a crer num futuro menos mau e atrevo-me a desejar a todos os que me lêem um ano diferente, melhor, mais livre e mais promissor.
Assim seja!