O caso dos Miró em parte incerta
Antes de tratarmos dos quadros que andam fugidos convirá lembrar que estas agora tão almejadas “peças de arte fundamentais” pertenciam ao tristemente célebre Banco Português de Negócios que o anterior Governo entendeu dever nacionalizar. Recordemos ainda que tal decisão, na altura asperamente criticada por muito boa gente, custou ao país (isto é, a nós todos, contribuintes) quase quatro mil milhões de euros, se é que a coisa não aumentou. Dou de barato a miséria que um banco angolano deu pelo cadáver do banco mas que causou forte polémica, dessa feita com origem nas mesmíssimas criaturas que tinham apoiado entusiasticamente a nacionalização do banco.
Dentre o espólio que ficou em mãos do Estado, ou de uma empresa de que o Estado é o principal ou único accionista, há um estranho monte de quadros de Miró. Oitenta e cinco peças para ser mais preciso. Convenhamos que oitenta e cinco parece muito e, sobretudo, surpreendente. Como é que um banco, mesmo com a gestão que se conhece, apostava tão denodadamente num único autor que, sendo bom, não é, apesar de tudo uma referência inultrapassável na arte do século XX. Que diabo, nem um Picasso, um Braque, algum esquecido Modigliani, outro Léger, sei lá!... Nada, só Miró...
(convém referir que nada me move contra o catalão: tenho, paga com algum sacrifício, um múltiplo do senhor e que muito estimo. Comprei-o em Paris, numa excelente galeria da re Dauphine e ostento-o triunfalmente na sala de jantar.)
Tudo indica que se trata de sobras não vendidas do artista catalão. Assim se percebe o escasso valor atribuído o conjunto tanto mais que ainda hoje se soube de um “Miró” vendido em leilão por mais de três milhões...
Por outro lado, conheço (até por dentro) a triste situação dos nossos museus quanto a espólio pictórico, para não deixar de a lamentar e de pensar numa solução mecenática levada a cabo não por um par de criaturas ricas mas pelo esforço de milhares ou dezenas, ou centenas, de cidadãos. Curiosamente nos últimos dois anos, por escassos euros, apoiei duas compras de peças para museus franceses que conheço e estimo. Ambas as campanhas tiveram êxito e êxito rápido. E fi-lo espantando-me com este raio de país, com este raio de museus que nunca pensaram em mobilizar a sociedade civil do mesmo modo.
Mas voltemos à enxurrada de Mirós agora em causa. E pensemos com a raiva que qualquer cidadão sente ao saber que mais de cem mil portugueses mormente pensionistas vêem com apreensão senão com pavor o futuro próximo.
Não caio na facilidade de pensar que os estimados 35/40 milhões de euros previstos pela venda em leilão iria diminuir o desastre. Não é uma questão populista de dinheiro mas outra bem mais importante: é o que isso significa quando se fala da crise e dos sacrifícios. Com que cara se apresentarão os admiradores de Miró perante os portugueses a quem até o subsidio de reinserção social foi negado?
Depois, há uma outra questão: então o anterior Governo não sabia deste maná mironico? E sabendo nada fez?
Anda por aí uma criatura chamada Canavilhas que terá ,sem fulgor nem talento, exercido de ministra da Cultura. Do que foi o seu mandato fala (ou não) a memória: Nada! Ou menos, ainda.
Todavia, a senhora Canavilhas é actualmente deputada do PS (situação onde também, até ao momento, não parece ter brilhado) e do alto dessa tribuna tem feito um arruído tremendo sempre que se trata de dar na orelha ao actual governo que, coitado, também não dá nas vistas...
Ela e mais uns colegas de bancada entenderam ulular a sua patriótica indignação quanto à venda dos Miró. É o costume. Não se faz nada quando se pode mas depois é um ver se te avias...
A senhora Canavilhas afirma que fez imensas coisas em relação ao caso durante 2008, 2009 e 2010 mas que não teve êxito. E acrescenta, segundo o “Público” que só em 2012 é que “a colecção ficou na totalidade em posse do Estado”.
Conceda-se, sem prescindir de prova clara, que assim foi. Alguém ouviu da senhora Canavilhas ou dos seus camaradas de luta durante o último ano alguma referência, aviso, conselho, denúncia, do caso?
O mesmo se poderá dizer de um par de cavalheiros que, subitamente, subiram à mesma ribalta nacionalizadora e musificadora dos Miró. A começar pelo senhor Pedro Lapa que propõe que os miró confiscados tenham como destino o Museu Berardo. Ficariam lá lindamente com outros monos de 2ª e 3ª ordem que inçam a mesma colecção (ou ajuntamento).
Há nisto tudo o mesmo arrepiante relento oportunista, a mesma ideia de apanhar a boleia da facilidade, mesmo se nem sequer até este momento se tenha apontado destino para os quadros e, muito menos, qualquer ideia para substituir o eventual lucro da venda. Um país que não tem uma política séria e clara de aquisição de obras de arte, sequer uma política igualmente séria e clara e transparente, anda, volta que não volta, aos baldões graças à bizarria dos “expert” culturais, eles mesmos incapazes de propor soluções, de propor uma lei do mecenato exequível capaz de mobilizar os cidadãos para causas culturais.
Esta gentinha brande a palavra cultura como se fosse um pistolão apontado ao peito inerme do cidadão comum. Para caceteiros prefiro os profissionais: são mais sérios.
Gostaria, mesmo se se trata de algo pessoal, de contar o que se passa com algo que me pertence.
Tenho, neste momento, uma biblioteca que ronda as vinte e uma mil espécies bibliográficas. Dela constam primeiras edições de literatura portuguesa desde finais dos anos cinquenta, uma boa biblioteca sobre expansão portuguesa com algumas raridades (entre novecentos a mil exemplares), largos metros (permitam-me a brincadeira) de volumes de história, e algumas colecções de livros sobre arte, surrealismo (a tal coisa a que ligam Miró), curiosa, etc.
Entendi que uma biblioteca deste género poderia ser oferecida a uma Biblioteca Pública portuguesa. Devo a algumas bibliotecas públicas muitos dos meus mais felizes encontros com a escrita e começo a pensar que com a idade que levo devo destinar as minhas coisas. Tenho nisto o apoio dos meus familiares e que não tivesse. Com a biblioteca queria também encontrar destino para cerca de 9.000 discos, uma centena e meia de quadros e esculturas e quase meia centena de peças de arte africana.
Querem acreditar que nenhuma biblioteca se sente capaz de aceitar a doação? Todas as pessoas com que tenho falado ficam entusiasmadas. Todas sem excepção! Só que..., só que não têm espaço sequer para um quarto dos livros e revistas! Quase todas, não dispondo desde há muito de meios para adquirir livros recentes, gostariam de poder ter tudo o que se publicou na segunda metade do século passado, mormente os autores portugueses. Mas não têm espaço. Uma grande biblioteca, com uma dúzia ou dúzia e meia de anos, já tem o espaço de depósito completamente cheio com transferências de uma outra biblioteca situada na mesma cidade! Aliás o armazém dessa nova biblioteca dá no máximo para 150.000 livros!!!
Uma das bibliotecas consultadas, enfim, alguém responsável, jurou que me contactaria para pelo menos ver o que tenho. Estou à espera dessa gente há seis meses!
Um livreiro alfarrabista de Lisboa de que sou velho cliente disse-me (e outros já o corroboraram) que se trata de uma situação comum. E propôs-me fazer em devido tempo, suponho que logo que eu parta desta para melhor, um leilão com bom catálogo onde o meu modestíssimo nome seria lembrado para todo o sempre (há catálogos de leilões que são eles mesmos peças de colecção!) ou pelo menos durante um par de meses.
Notem que eu nem sequer ponho a exigência de os meus livros ficarem em lugar especial e identificados com o dador. Quero lá saber dessa tonta glória. Quando morrer, morri. Estiquei, passei desta para melhor, fui dar uma volta ao bilhar grande...
Mas o país que temos é assim. Pobrete e não alegrete. Queixa-se de tudo, da Europa, do capitalismo, do comunismo, da Espanha, dos bancos, do senhor Passos Coelho, como amanhã se queixará do senhor Seguro, do tempo, da senhora Merkel mas nem sequer é capaz de aproveitar o pouco que tem ou poderia ter.
Estas criaturas agora arregimentadas na defesa dos mirós, como antes noutras, desde a pesca de arrasto nas albufeiras ou a redenção das almas dos caramujos em Alguidares de Baixo, se quisesse fazer coisa boa proporia – no caso de haver – a compra dentro da colecção de um ou dos trabalhos bons e lançaria uma campanha pública de obtençãoo de fundos para o efeito. Desde já me inscrevo com cem euros, mas não creio que os tenha de gastar. Cá, no que toca a pagar com cacauzinho próprio, tudo foge. A galope.
8em tempo: esta colecção de mirós foi arrematada in illo tempor por um japonês nas barbas dos nossos vizinhos espanhóis que, pelos vistos, não tugiram nem mugiram perante tal atentado à sua riqueza nacional...
*na gravura: à direita o meu miró. Pago com o suor do meu rosto, acrescente-se.