Au bonheur des Dames 361
25 A Exercícios de memória 2
Não posso garantir em que dia exacto me foram reveladas as senhas do golpe militar. Aliás, de pouco serviram pois o meu interlocutor nos quartéis em efervescência, informou-me mal. Uma das senhas, a primeira, referia apenas uma emissora de Lisboa que não alcançava o Porto. Resultado: um balde de água fria para a Teresa, a João e eu. Com o sangue frio de muitos anos vividos nas cadeias, na perseguição e na clandestinidade, os mais velhos tinham-se deitado pedindo para só serem acordados em caso de evidente necessidade.
Acabrunhado, deitei-me meio vestido e creio que dormi uns breves momentos.
De facto os dias 23 e 24 tinham sido extenuantes. Em primeiro lugar, havia que fazer a vida normal, manter a todo o custo uma aparência de calma, tratar de “limpar” a casa, o escritório de tudo que fosse incriminatório, prevenir quem precisava de ser prevenido, marcar encontros mais ou menos clandestinos com as pessoas que nos distribuíam os livros, com a malta de um grupo de contacto com o jornal “O Comercio do Funchal” e, para tornar tudo mais complicado, tinham-me aparecido uns amigos italianos do “Potere Operaio”, um dos grupos radicais mais em evidência e com quem eu mantinha um contacto clandestino e regular. Esses amigos estavam cá um pouco por turismo e outro tanto por política. Tinham chegado carregados de livros e entre eles de publicações do grupo “Il Manifesto”. Eu era um dos destinatários e vi-me aflito para os receber tanto mais que eles queriam festejar o 25 de Abril, data da libertação da Itália (1945) em Lisboa e queriam-me à viva força lá. Eu era o contacto para algumas pessoas que eles queriam encontrar e foi difícil e embaraçoso desincumbir-me dessa tarefa. De todo o modo, foram reencaminhados para um outro amigo meu, metido em trabalhos semelhantes que lhes proporcionou o dia mais inolvidável da vida deles pois, alertado como estava do golpe, apenas teve o trabalho de lhes fazer uma visita guiada ao cenário da revolução. Se entre os meus escassos leitores alguém viu dois desvairados casais italianos perto do Carmo ao meio da tarde, viu essas testemunhas privilegiadas. Durante muitos anos, por mais que eu negasse, sempre me atribuíram a sua ida para Lisboa e toda a aventura posterior.
No meio da balbúrdia desses dias, o nosso camarada de blog Simas Santos, meu companheiro de estudo em Coimbra e de passagens de fronteira, a cumprir o serviço militar no CICAP fez-me chegar – nem sei já de que maneira- um recado para eu estar atento às novidades. Nessa altura, percebi que a coisa era a sério e que não só o Manel mas também outros do nosso tempo, estavam dentro do golpe. Confesso que, por muito civil que fosse (e que sou) senti uma certa inveja. Moderei-a, entretanto, pois ao fim da tarde de 24, encontrei a Ana Paula Quintela, mulher do Arménio Sotomaior, outros dois de Coimbra!, que me disse que o marido estava de serviço no Quartel General. “Ai meu Deus, que se calhar o Arménio não sabe de nada e ainda leva um tiro!...”, foi o meu primeiro pensamento. O Arménio era uma criatura muito calma, razoavelmente ensimesmado (ou eu assim o pensava), tímido (idem) e poderia não ter sido posto ao corrente.
Nestas ocasiões, uma pessoa debate-se com terríveis e presunçosos problemas de consciência, como se de nós, e só de nós, dependesse o mundo. Calei-me bem calado mas andei horas e horas angustiado. Só de manhã, bem entrada manhã é que soube que nada de grave sucedera e que também o Arménio estava do lado certo e bom da História.
E dias depois, à medida que, entre festejo e festejo, se ia sabendo dos amigos de Coimbra, percebíamos que a “nossa malta” de 69 estivera toda metida na conspiração, nas acções mais interessantes ou aguentara a retaguarda enquanto dos seus quartéis saíam as colunas para os objectivos traçados.
Voltemos, porém, à noite de 24 para 25. Adormeci por uma boa hora, com o gato Voltaire em cima de mim. Voltaire, era preto e corajoso mas suponho que no toca a golpes militares preferia-os a horas menos mortas. De todo o modo lá se terá mexido e eu acordei no exacto momento em que na rádio se ouvia o primeiro comunicado ou algo no género. Dei um grito, aliás um uivo, “Já está” e acordei toda a gente. O meu sogro reiterou-me os seus préstimos e avisou que o acordasse de novo se fosse necessário. Admirei-lhe a calma e a habilidade em adormecer num minuto. Vestimo-nos os três (a Teresa fora dormir lá em casa) e fomos pelo Rui Feijó que, previamente avisado se levantara ainda mais excitado do que nós. E começou uma longa e inútil e solitária viagem pelas ruas silenciosas do Porto. A noite cerrada apenas permitia ver que os quartéis, e passamos por todos uma, duas, dez vezes, tinham as luzes acesas, sinal que nós interpretamos festivamente. “Está tudo sobre rodas”, repetíamos. Isto vai mudar. Puta que pariu o fascismo, etc., etc....
Às tantas começamos a deixar a revolução de lado e a procurar um estanco aberto não só para beber um café mas também para comprar tabaco. O carro de tantos cigarros fumados parecia uma chaminá andante e não me admiraria que ao ver-nos algum polícia de giro mais prestimoso pensasse que aquilo estava a começar a arder tal a nuvem de fumo que lá ia dentro.
Depois de uma boa centena de quilómetros, sempre dentro da cidade, encontrou-se um café aberto, o café das Piscinas, onde umas dezenas de paroquianos bebia o café da manhã num misto de murmúrios, exaltações, medo e esperança. Entre essa gente inquieta, dei com a mulher de um sindicalista metalúrgico que só me disse “ai se ao menos libertassem os presos políticos...” E ia naquele voto a esperança e a desconfiança de quem já viu muito e já passara outro tanto. O meu imenso optimismo fez-me retorquir “Isso já é mais que certo”. Convenhamos que, desta vez, a minha parva audácia dera para o certo mesmo se, como se sabe, as coisas não estivessem exactamente programadas dessa maneira.
Fartos de não ver acção, saímos do Porto e rumámos a Miramar para uns emissores de rádio onde finalmente encontamos uma dúzia de soldados que não conseguimos perceber se cercavam aquilo ou montavam guarda. A João e a Teresa acenaram freneticamente e a magalada respondeu com grandes gestos que elas interpretaram como de apoio político. Fiz-lhes ver rispidamente que o código de conduta militar manda, exije, que ao aceno de mulheres jovens, mesmo acompanhadas, qualquer soldado deve manifestar-se tão virilmente quanto lhe for possível. E o Rui que chegara ao glorioso posto de tenente miliciano da arma de Cavalaria abonou integralmente as minhas palavras. Mas secretamente todos pensámos que de facto “estava tudo sobre rodas”.
A manhã passou-se assim, ou quase. As notícias eram poucas e ninguém sabia coisa que valesse. Os quartéis fechados. Os nossos amigos telefonavam-se de casa para casa e às tantas, convergiram para a frustrada prisão do General ou almirante onde rapidamente se improvisou uma espécie de assembleia geral numa medonha gritaria, muita cerveja, petisqueira variada e telefonemas constantes que de nada serviam.
Saí dessa vez sozinho e fui informar o meu ex-patrono dr. Sá Carneiro Figueiredo a quem fiz um relato minucioso de tudo o que sabia. Ele, num entusiasmo enorme, resolveu telefonar ao primo Francisco Sá Carneiro a quem imperativamente aconselhou: “E agora Francisco, agora o menino vai ser só política. Só política, ouviu?”
Depois passou-me o telefone e mandou-me repetir tudo ao primo que eu também conhecia pois quando estagiário fizera parte da numerosa tertúlia de advogados do café Garça Real.
Saí dali pelas quatro da tarde e dei com um grupo de clientes meus (da gritaria do povo) já a prestar serviço revolucionário. Tratava-se de apedrejar a sede de uns serviços consulares da Africa do Sul. Confesso que nem a minha digna posição de advogado daqueles energúmenos me afastou de também molhar a sopa. E vá de dar cabo de alguns vidros. Daí partiu um grupo para a rua de Ceuta onde estavam dois desgraçados polícias encurralados junto do hotel Infante de Sagres. Uma dúzia de militantes do Grito armados de pedregulhos imensos estava pronta a lapidar os dois bófias que nem conseguiam puxar das pistolas. Salvei-os, pecado que sempre me perseguirá, numa discursata alucinada em que falava dos filhos do povo e os aconselhava a ir para casa. Os meus clientes um dos quais escapara a uma mais que justa prisão graças ao meu duvidoso talento jurídico, a um juiz clemente e a um procurador inepto e desmobilizado, largaram aquela presa e foram à procura de combates mais exaltantes. Eu segui para a livraria Leitura onde, em nome da revolução a vir, comprei mais uma pancada de livros com farto desconto proporcionado pelo meu amigo livreiro Fernando Fernandes, um dos cinquenta réus do último grande processo contra o MUD Juvenil.
“Amanhã a montra vai ser só com livros proibidos!” “Não se esqueça da Centelha”, respondi. – “Esteja descansado”, retorquiu. E assim foi. Uma montra que durou o tempo de um suspiro porque a notícia correu e a freguesia veio a galope. E provavelmente também vieram alguns súbitos democratas que viram ali matéria para provarem o seu anti-fascismo de sempre.
Lembrei-me que ainda não tinha falado com o meu pai e fui lá a casa. Estava contente que nem um cuco. Não era, nunca fora, um revolucionário mas vira muito mundo e doía-lhe um filho exilado. O meu irmão, estivera preso durante mais de um ano, fora julgado como militante da FAP e, já licenciado em Medicina fora para Mafra. No fim do curso fora despromovido e deveria embarcar para uma colónia como soldado raso ou algo no género. Claro que embarcou para Paris, passando a fronteira sob os cuidados do Manuel Simas e meus numa bela operação cujo êxito festejámos em Vigo numa jantarada de luxo. Enquanto aguardava a “passagem” estivera escondido em casa da Teresa Feijó que assim mostrava que prosseguia a tradição familiar de sjuda a presos e fugitivos políticos. De facto o pai, Rui Feijó, asilara na quinta da Senhora Aparecida, variados fugitivos entre os quais o Manuel Alegre.
Estava tudo sobre rodas...
(continua)