diário político 204
Crise? Qual crise?
Anda por aí uma opinião que sustenta que com os recentes “casos” (vistos gold, BES, Sócrates, entre outros) põem o regime em crise.
Sinto muito mas tenho uma opinião completamente diferente. A crise, existiria isso sim, se sabendo-se, ou suspeitando-se (como era o caso em quase todas estas situações....), de ilícitos graves nada acontecesse. O Estado de Direito reforça-se quando actua naturalmente. E actuar naturalmente é fazer o que a Lei impõe. Só para referir a questão Sócrates, parece que foi uma denúncia da CGD (obrigatória quando os movimentos de capitais ultrapassam uma certa quantia) que activou os mecanismos de exame do Ministério Público.
Isto significa que a instituição funcionou saudavelmente. Não se veja neste adverbio de modo qualquer espécie de consideração moral sobre a eventual culpabilidade do ex-primeiro ministro. Nem sequer a certeza que houve qualquer transferência ilícita de dinheiro. Não tenho qualquer espécie de informação que não seja a que é veiculada pelo jornal “Público” que aliás leio com “cautela e caldos de galinha”.
A ética comum manda que se considere um acusado inocente até um Tribunal determinar sem margem para dúvidas a sua clara culpabilidade.
O senhor Sócrates e os restantes detidos estão a ser alvo de uma investigação preliminar e obrigatória que, em teoria, os defende mais do que os compromete. Pode hoje mesmo ser determinado que este processo não tem pernas para andar. Mesmo que sejam arbitradas medidas coercivas de liberdade, nem isso, prova qualquer delito mas tão só vestígios comprometedores de que algo não está claro.
Os Estados de Direito funcionam assim: ás claras, sem objecções à defesa plena das pessoas, sem medidas administrativas especiais e/ou secretas. Não estamos na Alemanha do Reich eterno nem no paraíso soviético. Não estamos sequer na Coreia do Norte ou na China dita popular.
Corrupção, branqueamento de capitais, fuga aos impostos sempre houve e eventualmente haverá para futuro. Não que seja aceitável este estado de coisas mas convém sublinhar que o essencial é punir os ilícitos e não fingir que eles não existem. A possibilidade de punição é infelizmente a única prevenção possível: o medo de ser apanhado é que tolhe o eventual infractor.
Também não tenho a certeza que o caso Sócrates (pelo menos nesta forma pré-julgamento) possa atingir violentamente o poder politico, mormente o PS. Até á data nada atinge o PS mesmo se corra por aí que Costa se louve em Sócrates. É verdade que a sua eleição pode fazer parecer que se inverteu dentro do PS o “apagamento” do ex-primeiro ministro. Convenhamos que até isso me pareceu sempre algo de exagerado. A AR estava pejada de “socráticos”, Seguro tinha a confiança de muitos desses cavalheiros e a condenação da orientação política anterior era discreta, discretíssima. Aliás, a oposição ao Governo e ás suas medidas parecia indiciar uma certa colagem de Seguro à “herança” medonhamente esconjurada por Coelho e amigos.
A segunda questão que anda nas bocas do mundo é o perigo de se estar a assistir a um “julgamento da rua”. Esse é um dos riscos que a liberdade pressupõe. Pior seria se a opinião fosse violentada pela policia, pelos bufos, pelos informadores, pelo medo de ser preso. A “rua” julga sempre. E há muito que ela chama gatuno, criminoso a qualquer politico. Note-se, de passagem, que muitas vezes a rua é assanhada por responsáveis políticos. Não se lembram de todas as acusações que certos tenores da “esquerda” (esquerda entre parêntesis, diga-se já) tem continuadamente feito ao governo que, verdade seja, se põe muito a jeito...
A terceira questão é a levantada pela “comunicação social”. As televisões ululam com a falta de notícias do Tribunal de Instrução. Nem sequer pensam que essa falta de notícias prefira ou pode prefigurar a defesa do detido. Antes poucas notícias ou nenhumas do que um comunicado feito á pressa que imediatamente poria um cento de comentadores a fazer complicados exercícios de interpretação.
A quarta e última observação que me ocorre é esta: a questão Sócrates pode perturbar fortemente as possibilidades de Costa na sua corrida ao Ministério. Mesmo que Sócrates fique detido, o processo seguramente não estará despachado tão cedo (a menos que haja uma confissão, que as provas sejam esmagadoramente conhecidas e que a opinião pública se convença maioritariamente do seu fundamento). O problema que eventualmente poderia prejudicar o PS é a suspeita de actuações criminosas durante o Governo do ex-primeiro ministro. Aí, de facto, seria difícil, excluir da actuação de Sócrates muitos outros responsáveis de topo do partido. Mas, até ao momento, e esperemos que nunca, tal não ocorreu.
Todos os países correm riscos, assistem a escândalos, à indignação dos cidadãos e ao protesto destes. Isso é sempre um bom sinal de vitalidade, de consciência cidadã e de funcionamento das instituições. O resto, ou o contrario, é que é o cemitério da liberdade. E nos campos santos nem os mortos respiram.
(este texto não entrou no blog por razões misteriosas que se devem apenas à minha eventual falta de habilidade e jamais ao actual detido em Évora, aos jornalistas, ao senhor Sousa Tavares ou mesmo ao dr Mário Soares. Publica-se dois dias depois com mais algumas reflexões)
algumas criaturas com mesa posta nas televisões e jornais entenderam (muitas vezes ao arrepio do que sobre outras situações escreveram) que se está a assistir à pública defenestração do ex-primeiro ministro. Desde a “humilhação” até à condenação do entorse feito ao “segredo de justiça” (mesmo se implicitamente dão a entender que conhecem as motivações do Tribunal e dos seus membros) tem sido um rosário.
Perfila-se mesmo uma curiosa opinião de “classe”: no caso de Sócrates todo este circo é horrível, medonho, fruto de rancores miseráveis, ao mesmo tempo que nunca ouvi estas piedosas personagens dizerem o mesmo dos restantes casos de fixação de prisão preventiva aplicados a cidadãos também eles presumivelmente inocentes mas definitivamente paisanos. Ou, por outras palavras: a prisão preventiva ofende, assassina, maltrata um poderoso a que é aplicada! Quanto à peonagem, não tem importância, já estão habituados a ser tratados como gado...
Depois, e aqui as coisas são mais graves e tocam a sensibilidade de quem, noutras épocas e por exclusivos motivos políticos se opôs à política do Estado Novo cometendo apenas delitos de opinião. Da mera opinião que ia da simples exigência de eleições livres até ao respeito pelo art. 8º da constituição vigente. Cadeia com eles, sem juiz de instrução, sem acusação formulada, sem direito a advogado assistente, em interrogatórios que duravam não algumas horas mas dias a fio, sem dormir e sem poder sequer sentar o dito cujo numa cadeira. Sei do que falo por experiência própria. E uma vez confinado ao segredo de Caxias, as visitas eram apenas de familiares, e nem todos, sob a escuta de um prestável agente, entre um par de vidros do locutório, sempre sujeito a ser imediatamente interrompida a exígua conversa que se poderia tentar ter.
Esses presos, de facto políticos, não estavam em celas com pátio, e tinham, quando tinham, direito a uma meia hora de ar puro, nem sempre diária. Também ninguém lhes permitia ler qualquer jornal mas tão só os que apoiavam o regime vigente e, muito menos, era permitida a entrada de livros em língua estrangeira. E os nacionais eram alvo de forte censura.
Ouvir o dr Soares alanzoar tresloucadamente um par de tolices e tentar contrabandear sem grand argúcia a teses da perseguição política é dramático, vergonhoso e disparatado. Pior, na sua absurda filípica o “jurista” Soares dispara sobre os decisores da actual situação prisional de Sócrates. A adjectivação de Soares diz muito de quem começa a parecer cada dia que passa uma cabeça em roda livre.
E não deixa de ser interessante ver os defensores do Tribunal Constitucional atacarem agora outro tribunal, porventura não tão importante mas absolutamente essencial no sistema de justiça de qualquer pais civilizado. Pelos vistos, este último tribunal não deve ser órgão de soberania e os seus titulares não merecem qualquer espécie de consideração. O senhor Passos Coelho e os seus boys devem rebolar-se de gozo.
Cada cavadela cada minhoca!
d’Oliveira fecit (25 e 27 de Novembro) 2014