Les lendemains qui (de)chantent
“…ceux qui crèvent d'ennui le dimanche après-midi parce qu'ils voient venir le lundi et le mardi, et le mercredi, et le jeudi, et le vendredi, et le samedi et le dimanche après-midi.”
Os “amanhãs que cantam” (no caso vertente que “desencantam”) fazem (ou faziam) parte de um folclore da esquerda europeia do meu tempo de jovem ingénuo, combativo e esperançado.
Estávamos na política por reacção ao sufoco salazarista, à pobreza imperante e circundante e tendo como pano de fundo a história recente e os seus imensos desastres. E pela liberdade, obviamente.
Acreditávamos piamente que, apesar de tudo (e neste tudo estava mesmo tudo desde o gulag aos processos de Moscovo, desde as liberdades suspensas até que o capitalismo deixasse de cercar a “pátria dos trabalhadores”, desde o pensamento único até à fidelidade já ligeiramente em queda ao “pai dos povos”, de resto prontamente substituído em desordem por Mao Zedong, Fidel de Castro, Ho Chi Minh, ou mesmo Enver Hoxha para os menos exigentes) chegariam os dias felizes, a festa dos povos, a igualdade, a liberdade e a vida tranquila.
Nada disso aconteceu como se sabe. Hoje já ninguém se lembra de Stalin, menos ainda de Mao para já não falar dos outros absolutamente menores. Fidel vagueia de pijama ou fato de treino por uma Cuba que se prepara para receber uma embaixada americana, dólares, carros novos e investimentos por parte dos habituais bons samaritanos de Wall Street.
Mas deixemos este cortejo de espectros que não assustam ninguém e muito menos a Europa e vamos ao que interessa: as eleições gregas.
Para quem tem alguma memória, digamos dos últimos 15 anos (nem é preciso descer ao século passado) e relembre o leque partidário grego de então (o PASOK a cerca de 50% dos votos, a Direita a disputar com mais alguns partidos (entre eles duas formações comunistas, uma do “interior” outra sei lá donde) os restos da votação, a surpresa de ontem domingo há de ser grande.
Para onde foi a formação do clã Papandreu que há mais de um século mandava e desmandava na Grécia?
Os resultados de ontem põem este antigo símbolo da esquerda socialista (o PASOK afirmava-se muito à esquerda dos seus parceiros europeus) no sétimo lugar, o último creio, da votação: menos de 5%!!!
Claro que o PASOK carregava penosamente com as principais culpas (mas não todas, que a Direita, mesmo fora do poder, também colaborara no descalabro) da actual situação grega.
É mais que provável que uma grande maioria dos seus antigos votantes se tenha transferido de armas e bagagens para o compósito Siriza, enquanto uma pequena percentagem terá ido para um agrupamento dissidente. E o PASOK ficou com o último quadrado de fidelíssimos, eventualmente de socialistas de toda a vida.
E a Nova Democracia, agora apeada do poder? A ala mais radical terá engrossado os Gregos Independentes bem como o novo terceiro partido, o sinistro Aurora Dourada que, mesmo com os dirigentes na cadeia, consegue mais de 6% dos votos. Conviria lembrar, para os mais esquecidos, que também na Alemanha, em tempos que já lá vão um partido radical começou a sua caminhada depois do seu futuro líder ter feito a experiência do cárcere.
Os comentadores, como é hábito, extasiam-se com esta performance mesmo se desde há muito tempo, a bem dizer desde as últimas eleições fosse provável este desenlace.
Os mais ousados apostam no “fim da austeridade” o que não deve querer dizer grande coisa porquanto mesmo com grandes cedências ( o que não parece assim tão evidente) da ”Europa” as coisas demorarão muito, mas muito, tempo a compor-se.
O colunista Rui Tavares (Público), actual dirigente do “Livre” compõe mesmo uma “ode triunfal” e jura a pés juntos que nada ficará na mesma. Na Grécia, na Europa, e, num suspiro arrebatado, em Portugal. Neste último caso, não se vê bem em que apoia tão atrevida mensagem.
“para que as coisas permaneçam na mesma é preciso que tudo mude”
Desconheço se Tavares leu “O Leopardo” ou se, pelo menos, viu o belíssimo filme de homónimo de Visconti. E se, tendo-o visto, recorda esta frase cínica de um dos personagens que propõe ao Tio, o Príncipe de Salina, uma reorientação dos apoios políticos para que a família possa conservar todas as mordomias de que gozava.
Não ponho os dirigentes do Siriza na posição da velha aristocracia siciliana (entretanto substituída pela corrupta rede clientelar dos novos donos da Itália com o entusiástico apoio da honorata societá que medrou como nunca e se exportou para toda a península e depois para o mundo) mas tenho a fortíssima impressão que do programa “radical” do Siriza muito lastro já se perdeu.
A começar pelo “euro”, antes, há meses apenas, tão detestado e agora renascido das cinzas qual nova fénix esperançosa. E a continuar por certas promessas que seguramente não serão exequíveis nos tempos mais próximos. Refiro-me à fixação do salário mínimo nos setecentos euros (entre nós, numa situação absolutamente melhor, conseguiu-se atingir o patamar dos 500 euros) ou à miraculosa criação de postos de trabalho para o gigantesco número de desempregados existente.
Tsipras defende que as previstas despesas serão financiadas pelo crescimento económico (?) e pela luta contra a corrupção (e já agora, digo eu, pelo estabelecimento do cadastro coisa que na Grécia nunca existiu!). Portanto o Governo ou o Estado não entram com um cêntimo ou quase. O pequeno problema que se levanta é que na Europa o que reina é uma morosa deflação que a Grécia mesmo com um crescimento de 2,9% este ano (e um absoluto desastre no que toca a receitas fiscais em atraso...) não chega lá tão depressa. Por outro lado, a luta contra a corrupção, endémica no país, desde praticamente a Independência, durará um par de décadas.
É verdade que Tsipras prometeu falar duramente com os parceiros europeus. Acredito piamente que ele acredita nisso.
E também é verdade que os juros da dívida grega estavam à altura da péssima reputação do país. Mas também é verdade que já houve uma renegociação da dívida grega que a reduziu a metade.
Pessoalmente, mas eu não passo de um português assolado pelos impostos, sem economias (quase todas comidas ao longo do tempo por uma biblioteca de 21.000 volumes), creio mais na dilação dos prazos de pagamento do que no perdão. Aliás essa é igualmente a minha receita para Portugal. Pagar um balúrdio em tão curto espaço de tempo, favor que devemos a quem negociou com a troika (não o esqueçamos) era uma impossibilidade na altura e é uma impossibilidade hoje.
Todavia, é difícil usar uma linguagem de força quando se precisa desesperadamente de uns milhares de milhões de euros num futuro dramaticamente próximo. E quando, para lá da Frau Merkel, aparecem os negociadores holandeses ou finlandeses muito menos propensos ainda a aceitar acordos “demasiado generosos” a seus olhos.
Não há pior cego...
A reacção mais alarmante à vitória do Siriza vi-a nas declarações do senhor Melenchon, líder de uma diminuta “frente de esquerda” em França. Escuso de recordar o paupérrimo resultado da criatura nas últimas eleições. Basta-me, referir (com imensa amargura, devo dizê-lo) que o fenómeno populista francês paralelo ao Siriza e pescando nas mesmas exactas regiões que outrora davam o voto e a força ao PCF e ao PS e são agora zonas de influência e implantação do “Front National”, é o da senhora Le Pen que se apresenta cada vez mais como uma forte candidata presidencial.
Melenchon com a mesmíssima cegueira dos dirigentes do KPD alemão na década de trinta, assesta a sua artilharia no PS de Hollande usando uma linguagem que, mutatis mutantis, não é assim tão diferente da suicidária mensagem dos comunistas alemães, defensores da aberrante teoria “Klasse gegen Klasse”. É bom lembrar que Hitler só ganhou graças à luta fraticida na Esquerda mesmo se já desfrutasse do apoio de enormes massas de proletários e muita classe média reduzidos à miséria pelos efeitos combinados da guerra, do Tratado de Versalhes e da crise económica mundial. A História como dizia o das barbas repete-se (e sempre para pior!).
É bem verdade que Hollande (esperança frustrada de Seguro mas não só) deu no que deu. E mesmo que o caso “Charlie” o tenha momentaneamente salvo triplicando ou quadruplicando o desastroso índice de popularidade com que terminara 2014, a verdade é que governa um PS fragilizado, por uma minoria rebelde. Provavelmente não chega para bater a Direita “civilizada” e/ou a outra que, como alguém afirmava, faz o diagnóstico certo e recomenda os remédios errados.
O outro foco de esperança de Tavares, Melenchon e outros, é “Podemos”, mais um fortíssimo movimento populista também ele nascido da crise. E, mais uma vez, na sua origem está a desilusão com o PSOE de Zapatero e a governação violenta do PP. À medida que se vai aproximando o momento eleitoral, também “Podemos” vai enterrando alguns dos seus mais audaciosos projectão, nomeadamente o extraordinário “salário mínimo garantido para todos os cidadãos”.
O que mais surpreende é a ilusão repetida no bondade dos movimentos estrangeiros. Curiosamente, seja em Portugal, seja na França, aquilo que se resolveu apelidar “esquerda radical”, tem uma presença insignificante nos centros de poder e nada, até ao momento, fundamenta o prognóstico de cá ou lá poderem surgir émulos do Siriza que de 2009 a 2015 multiplica a votação por seis.
Também valeria a pena recordar para os mais distraídos que o sistema eleitoral grego premeia exageradamente o partido que chega em primeiro lugar. Num sistema proporcional os deputados do Siriza pouco ultrapassariam a centena de lugares. Ou seja: uma coisa é a votação, outra a população eleitora (que no caso em apreço se cifrou em 60% do eleitorado.
E isso já parece reconhecido pelo Siriza: depois de se poder pensar que se aliariam ao To Potami ou até ao PASOK, tudo indica que será com os “gregos Independentes” que fará Governo. Ou seja com um partido claramente de Direita, anti-troika e anti emigrantes. Convenhamos que para primeiro dia é já muita areia para a camioneta dos admiradores do radical Siriza.
Não vou ao ponto de dizer que entre os melhores espíritos há afinidades mas aí está esta espúria aliança para fazer prever que os próximos dias vão ser muito instrutivos. E pouco entusiasmantes.
Desculpem lá mas só Rouault foi capaz (e numa água forte que ilustra este texto) de proclamar “demain sera beau (disait le naufragé)” nesse belíssimo conjunto que se chama “Miserere” (1948). Mas Rouault era apenas um dos grandes pintores da metade do século passado e a sua mensagem vinha tintada de cristianismo social e não se destinava a governar o mundo, a Europa ou apenas a Grécia que nos educou noutro culto bem mais laico.
* como nem todos os leitores mormente os mais novos são obrigados a ler francês junta-se, e na exacta ordem, as legendas para o títuloe citações usadas
1. os amanhãs que (desen)cantam
2 "...os que, no domingo à tardem morrem de tédio ao ver prever a chegada da segunda feiras, da terça, da quarta, da quinta, da sexta, do sábado e da tarde de domingo" (in Paroles, Jacques Prévert, há tradução portuguesa: Palavras
3 Classe contra classe foi o mote da camapnha do KPD (partido comunista) contra o SPD (partido socialista) durante a década de 30 na Alemanha. O mote tinha o apoio do Komintern (IIIª Internacional) e os resultados estão à vista(comunistas e socialistas depois de se baterem nas ruas uns contra os outros e ambos contra os fascistas encontraram-se nos campos de concentração com escepção de alguns vivaços (Thaelmann) que se acoitaram em Moscovo em bom tempo.
A lustração do texto é uma água forte de Rouault com o título "amanhá fará bom tempo dizia o naufrago" e pertence à série Miserere (1948) Esta série foi exposta em Portugal nos finais dos anos 60 ou inícios de 70. O catálogo, raríssimo e excelente encontra-se eventualmente em alfarrabistas.