2014 duas palavras
Os leitores, se os há aí desse lado do ecrã, desculparão esta bizarria de fazer mais um resumo do ano depois de tantos e tão assinalados comentadores o terem feito.
De todo o modo há diferenças: eles são, regra geral, chorudamente pagos enquanto este escriba gasta dedos e computador absolutamente à borla. Eles são conhecidos, tem escritório em jornais e televisões (e rádio, esquecia-me da rádio) e têm sempre razão mesmo quando se contradizem. Cá por casa, esforço-me por não me desmentir e desconfio sempre da razão absoluta. Apenas consigo pensar que, nas circunstâncias actuais, com o que se sabe, talvez esteja dentro de um leque de probabilidades razoável.
Deixemos, porém, estas parcas reflexões e vamos ao que interessa.
Escolhi duas palavras já bastante gastas, no fio, até, para caraterizar o ano que passou. Elas são: corrupção e segredo de justiça.
Da corrupção falou-se muito, houve julgamentos, condenações mas, de facto, ainda não houve condenados, tantos e tais os recursos que foram apresentados. Vejamos com mais detalhe: quer a corrupção activa quer a passiva começam por serem difíceis de provar. É preciso apanhar os seus agentes com a mão na massa, com a boca na botija (agora, mais singelamente, o telefone) e extrair daí, sem margem a dúvidas, os factos constitutivos da corrupção. Tanto mais que a eternamente proposta lei sobre o enriquecimento sem causa vai sendo sucessivamente postergada com os mais variados argumentos, dentre eles um imoderado uso a subversão do ónus da prova.
Suponhamos um político cujos rendimentos por razões da própria “entrega” à causa pública sejam conhecidos. Subitamente, é apenas uma hipótese, começa a andar em carros de alta cilindrada, a frequentar os melhores restaurantes, a vestir-se nos melhores alfaiates, a morar em casas reconhecidamente caras. Ou a comprar quintas paradisíacas no Alentejo ou no Douro. Tiradas as hipóteses de herança ou de totoloto a pergunta impõe-se: “donde é que vem a massa daquele gajo?”, questiona-se o povinho que, de bolso vazio, vê os fins de mês aproximarem-se com medonha rapidez.
Se houvesse uma qualquer lei sobre enriquecimento ilícito talvez houvesse hipóteses de chegar ao beneficiado pelo toque de Midas e interpela-lo: “Ó meu donde é que te vem o cacau?”
Eu bem sei que não há lei e que, por muito fumo que a súbita e milagreira felicidade financeira faça, não se consegue ver uma ponta de fogo, que digo?, uma miserável fagulha.
Mas, poderão retorquir-me, que sempre se apanha aqui e ali um corruptor e um par de corrompidos, como ocorreu no ano transacto (mesmo que esta verdade de primeira instância possa ser anulada em sede de recurso). É verdade: conseguiram caçar um pobre diabo ligado a negócios sem grande reconhecimento social e um par de tontos que se desbragavam o telefone.
E, obviamente houve uma criatura que, estando dentro do segredo, contou tudo, tintim por tintim, à polícia e ao tribunal.
Todavia, à medida que se sobe na escala social, política e económica, as coisas ficam mais difíceis. O grande crime económico é como o grande crime mafioso nos Estados Unidos: demora anos e anos a ser descoberto, se é que o é.
As manobras para camuflar transferências de dinheiro, entregas de dinheiro, vendas ou compras fictícias atingiram uma perfeição genial e não é com os diminutos meios que por cá se concedem às polícias e ao aparelho judiciário que elas podem ser descobertas. A menos que...
A menos que alguém movido por as mais variadas razões dê com a língua nos dentes. A menos que alguém “bufe”, “sopre”, “borregue”...
E a menos, também, que o corrupto(r) comece a sentir-se tão forte que, impavidamente, se dê ao luxo de deixar aqui e ali pistas. O que, como se sabe, ocorre com inusitada frequência. Eu, aliás, compreendo que quem tenha um farto pecúlio escondido na estranja comece pouco a pouco a questionar-se se não pode gozar pelo menos de um bocadinho daquele tesouro mal adquirido. E vá de comprar um carro melhor, uma casinha com piscina, um apartamento em Nova Iorque ou, mais modestamente, em Cascais ou no Algarve (na parte boa, claro, não estamos a falar de um miserável time sharing).
E pode-se sempre arguir, como já terá ocorrido, de uma prenda por boa consultadoria (e neste campo a coisa pode atingir milhões, como se sabe).
Ou, afirmar que se recorreu à boa vontade de um familiar generoso, de um amigo ainda mais generoso que confia em nós como quem confia na “santinha da Ladeira”, ou seja, absolutamente. Há amigos assim, capazes de esperar toda uma vida, ou mesmo duas para quem é crente e se sabe destinado a uma outra vida eterna. Confesso que eu mesmo já emprestei uma grossa maquia de que me restituíram apenas parte, e ao fim de muitos anos. No caso concreto, eu tinha vergonha de exigir o emprestado e só uma intervenção para a qual nem contribuí, fez com que alguém, julgando-se responsável pelo meu devedor, me veio restituir o dinheiro em dívida, mesmo se esquecendo que esse dinheiro já não correspondia ao valor emprestado mas tão só ao capital inicial que eu tinha em certificados de aforro.
Todavia, pelos vistos, ainda há amigos assim, mais ricos do que eu alguma vez fui e mais generosos do que eu alguma vez ousarei ser. Que Deus lhes dê em dobro o que eles consentiram a quem estava em dificuldades. Deus ou outra entidade menos metafísica mas mais dentro dos negócios terrenais e dos meios de favorecer quem a ajude.
Temos assim que apanhar quaisquer alegres comadres de Windsor a tratar de negócios mais obscuros e à custa do contribuinte tanso, não é tarefa simples. Bem pelo contrario! Convirá, pois, determinar o que cada um quer para a comunidade em que se insere.
Convenhamos que pelo andar da carruagem ainda vamos ter belos dias para esta nobre instituição tão lusitana que começa na cunha e acaba sabe-se lá onde.
2 Segredo de justiça
O segredo de justiça em Portugal é também conhecido pelo segredo de Polichinello. Deixo aos leitores a pequena tarefa de voltar a este clássico do teatro italiano mas basta-me insistir que este segredo é conhecido por todos mesmo se, igualmente, todos finjam o contrário.
Entre nós, não há processo vagamente mediático em que não chovam acusações sobre fugas e ofensas tremendas ao segredo de justiça. Normalmente a acusação queixa-se da defesa e esta, mais normalmente ainda, urra contra “alguém”, jamais identificado mas que nas trevas organiza uma conspiração de juízes, magistrados do MP, polícias, juntos ou separados mas sempre perseguindo a honra e bom nome das criaturas que se vêm a contas com a justiça.
Vou provisoriamente deixar de lado um par de casos onde, graças a um expediente simples, se descobriu que era a defesa (anteriormente indignada e acusadora) quem propagara aos quatro ventos alguns segredos de um processo.
Conviria, pois, perguntar, logo de entrada, a quem aproveita a fuga ao segredo de justiça.
Recorrerei, se me permitem, a um par de processos que a saudosa PIDE instruiu contra mim. Processos que, aliás morreram na praia, já agora. Um primeiro fundava-se na tola suposição que eu pertencia a um grupo politico ainda em formação e praticamente só existente em Paris. Pelos vistos, um zeloso informador da excelsa policia vira-me a jantar num bistro do Quartier Latin com um refugiado politico de quem era amigo desde Coimbra. Um inspector encantado com a informação fez-me penar largos dias num quartinho desconfortável da António Maria Cardoso sem cadeira para sentar o dito cujo e sem permissão de dormir sequer uma breve meia hora. Foram bastantes dias, mesmo que não tenha batido nenhum dos recordes conhecidos. Guardei, convenientemente, a boquinha calada pelo que no dia em que decidi comunicar que ia fazer greve da fome, o inspector que eu nunca vira mas de que conhecia a fama (péssima, diga-se já) irrompeu na salinha e aos berros avisou-me que eu ia “cagar” tudo sobre a minha pertença ao dito grupo. Quando ouvi aquele disparate, senti por dentro campainhas natalícias, dei pulos de alegria (enfim foi como se desse) e imediatamente afirmei que desistia da greve à comidinha. Depois, mais sossegado, ao ver a tremenda cavalada policial (pelos vistos não tinham nada melhor contra mim, que, valha a verdade, tinha alguns pequenos segredos pouco saudáveis se conhecidos pelos meus esbirros) e retorqui ao espantado inspector que de facto não só jantara com a criatura em questão mas, pior ainda, almoçara no dia seguinte. Esta segunda refeição era falsa mas convinha-me testar o que aquele beleguim sabia. O homem ficou varado e mais surpreendido ficou quando eu lhe afirmei que com o revolucionário em questão só falava de “gajas” (sic) e assuntos similares. E durante a breve refeição que me serviram (honra lhes seja) fui informando o estarrecido inspector que era absolutamente contra o Governo e o Regime mas que por mania minha não me dava bem com grupos clandestinos. E por aí fora. Claro que não me libertaram mas fui imediatamente transferido para os bons ares de Caxias, com direito a cela com vista para uma nesga de auto-estrada e de rio. Por lá vegetei demasiado tempo até que me mandaram embora mediante uma caução de 15.000 escudos o que na época era carote.
Num outro processo descobri que uma fantasiosa informadora, conhecida por “Catarina” jurava que eu tinha feito parte de uma reunião em Cantanhede (onde jamais pusera os pés) e que tinha declarado alto e bom som que me dedicava ao bombismo. A informação da bufa era de tal modo alarve que, no próprio auto, e a lápis estava escrito por mão desconhecida mas autorizada “pouco crível”. E era de facto pouco crível porquanto eu sempre fora e sou contra qualquer arma cega que para além de extremamente cobarde mata do mesmo modo inocentes e culpados.
Durante alguns anos esperei sem demasiado temor um julgamento com base nestas estapafúrdias acusações. Mesmo naquele Estado de direito reduzido tinha por claro que a acusação nunca poderia provar aquelas sandices.
Voltando ao presente, temos que pelos jornais correm contra o sr José Sócrates um par de acusações que fundamente se reduzem ao seguinte: que teria fartos fundos na Suiça ou em outro país igualmente condescendente; que através de um amigo (e que amigo!) transferira para cá largos milhões de euros que depois lhe eram devolvidos em nota forte à razão de vários milhares de euros/mês e transportados para Paris por um tal Perna; que alugara em Paris por preço igualmente apreciável um apartamento em zona chique (16º bairro) coisa incompatível com o pequeno capital que teria pedido emprestado à CGD; que adquirira para uso próprio um automóvel topo de gama e de marca cara, com custos igualmente incompatíveis com os rendimentos que alegadamente dispunha; que mascarara várias compras e vendas de casas em Lisboa tudo se traduzindo em branqueamento de capitais sempre através do mesmo solícito amigo acima referido. E por aí fora...
Foi isto, ou mais ou menos isto, que correu por jornais, televisões e rádio. Durante os dias imediatamente seguintes ao da sua detenção. Com variantes no toca ao montante da fortuna alegadamente escondida. Como prefácio a toda esta publicitada riqueza relembravam-se os apartamentos do sr Sócrates e de sua mãe num prédio de prestígio em Lisboa, cujos preços seriam, afirmava-se bem superiores aos constantes nos documentos de venda dos mesmos.
Primeiro uns amigos do ex-Primeiro Ministro e depois ele mesmo vieram a público para negar rotundamente todas e dada uma das acusações de que resumidamente dei notícia. E, apo mesmo tempo, o que é surpreendente, começou a ser suscitada pela mesmíssima gente a acusação de que havia uma clara fuga ao “segredo de justiça” comprovada pelas mesmas notícias. Ou seja, nada do que se atribuía a Sócrates era verdade e ainda por cima a mentira partia do Tribunal, do Juiz Alexandre, do Procurador, da polícia judiciária, da drª Joana Marques Vidal e de mais meia dúzia de patifes (cfr dr Mário Soares) todos apostados em recriar no Portugal de 2014 (e 15, já agora) o sinistro espectro dos processos políticos que teria morrido em 1974. Nada menos!
Convém acentuar que estas estrondosas declarações não pareceram obter apoio da maioria do leque político nacional, antes se cingindo ao PS e mesmo aí com excepções.
Tomando como bons os argumentos de que todos estes delitos não foram perpetrados pelo sr. José Sócrates temos que a sua existência releva da mais pura fantasia e será facilmente destruída em tribunal ou mesmo antes. Assim sendo, de que serve aos alegados fautores da fuga ao segredo de justiça publicitá-los (isto no caso de daí provirem os rumores postos em circulação)?
Serão os magistrados já citados tão ingénuos (para não aplicar um adjectivo mais contundente e mais acertado) que nem sequer percebam que a enormidade das suas acusações (se deles são) destrói por completo qualquer processo? Serão os mesmos magistrados tão maquiavélicos e maldosos que mesmo sabendo da inanidade das acusações, resolveram punir o ex-Primeiro Ministro com uns tempos de prisão preventiva sabendo que ninguém depois lhes exigirá responsabilidades e proporá adequado castigo?
Estará em curso uma monstruosa conspiração com origem nos mais fortes pilares do Estado contra o sr. José Sócrates e, por extensão, contra o PS, partido quase já no poder como o comprovam todas as consultas de opinião sobre as próximas eleições legislativas?
Que mãos comandam isto, esta manobra, este assalto às liberdades individuais, este novo processo de Moscovo que, como os de má memória, pretende destruir o que eventualmente há de mais são na democracia portuguesa?
Porque, convenhamos, só há atentado contra o segredo de justiça se, de facto, se deixarem evadir dos processos, factos reais que comprometem o detido. Se tais factos não forem reais não vejo onde é que o segredo de justiça é beliscado.
A quem aproveitaria, pois, esta pública denúncia de irregularidades e delitos fantasticamente inventados?
A questão seguinte e última é esta: mesmo que se aceitem como legítimas e de boa guerra as cartas públicas e as entrevistas do e ao sr José Sócrates (e quem já esteve preso normalmente aceita, como é o meu caso), seria bom meditar se elas mesmas, dados os factos que apresentam, não são igualmente beliscadelas no segredo de justiça.