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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Au bonheur des dames 404

d'oliveira, 01.04.15

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Confissão tardia mas prudente

(com evocação de sítios e gente desaparecidos)

 

Vejo num catálogo de alfarrabista que a edição pirata de “o corpo, o luxo a obra” se cota a 170 euros. Agora que o Herberto já não anda por aí, é provável que o preço ainda suba mais.

Já disse, em post anterior, que privei um pouco com Herberto Hélder, mais propriamente entre meados dos anos 80 e fins de 90. Depois, raramente o encontrei.

Continuei, contudo, a ser um seu fervente leitor, releitor, e mais do que isso. Confesso, despudoradamente, que desde um longínquo dia de 60 ou 61 quando li, fascinado e em transe, “A colher na boca”, nunca mais o deixei de frequentar. E de comprar cada livro que ia saindo.

Foi assim que, em 1978, se não erro, que logo que foi anunciada a saída de “o corpo, o luxo a obra”, sabedor que a tribo helderiana ia crescendo e que as tiragens eram sempre escassas, reservei o livro em duas livrarias. À cautela.

O primeiro exemplar chegou-me às mãos antes do que tinha pedido na livraria Leitura (Porto) onde imperava majestático o Fernando Fernandes, livreiro de uma cana, homem culto e de belíssimo trato. Quando este me avisou da chegada do livro, disse-lhe que o levava apesar de já ter o exemplar vindo de outra origem. O Fernando ainda se ofereceu para ficar com o livro mas eu tinha (e tenho) como princípio manter a palavra dada e, no caso, pensei em guardar o livro para o oferecer a quem o merecesse.

Escassas semanas depois, apareceu-me, enviado pelo FF uma criatura que “apenas” queria consultar a obra para “ver a gramagem” (sic) e determinar a “cor do papel”.

Sendo pessoa de boa conversa, notoriamente culta e, pareceu-me, adepta do Hélder, logo me convenci que era uma boa destinatária do livro. E ofereci-lho coisa que ele agradeceu vivamente tanto mais que a obra estava esgotada.

Pouco tempo depois, algumas semanas, um ou dois meses, eis que o volto a encontrar à porta de um teatro (eventualmente a sala do “Experimental”) onde decorriam alguns espectáculos do FITEI.

Com um rasgado sorriso ofereceu-me um exemplar da edição pirata que o Luís Pacheco preparara sob a égide da “contraponto”. A edição era idêntica à original mas trazia um acrescento: algo como um texto de Mª Estela Guedes. Se bem me lembro (escrevo este folhetim, numa esplanada) era uma apreciação crítica plasmada numas folhas de outra cor.

Conta-se que o Herberto foi aos arames, cuspiu fogo, ameaçou meio mundo e jurou vingança.

Fiquei numa aflição. Contribuíra, mesmo que inocentemente e até movido pela admiração, para esta piratada editorial. A minha generosidade tivera um mau destinatário, mesmo se, como também não nego, eu achasse graça às golpadas do Pacheco, que aliás conhecia e para o qual contribuí vezes sem conta com os proverbiais “vintinhos, cinquentinhas ou, ocasionalmente, em épocas de vacas gordas, cenzinhos”.

De facto, volta e meia, encontrava o Pacheco na “Opinião” (livraria excelsa onde hoje é a sede e livraria das edições Cotovia) que com o pródigo “Cabeça de Vaca” me estendia a mão cobradora. Ao Cabeça, velho amigo, que me advertia que os vintinhos reclamados eram “para cerveja e jamais para sopa”, eu só lhe “orientava” o cacau depois dele se obrigar a jantar comigo e a minhas expensas. E era um gosto vê-lo aviar um jantarinho à maneira no restaurante “A Trave” onde se juntava uma boa dúzia de alegres comensais chegados directamente da livraria (Faltam já muitos, quase todos, desde o “Cabeça” até ao Zé Cardoso Pires, ao Fernando Assis Pacheco, ao Adriano Correia de Oliveira, tudo sob a batuta do Hipólito Clemente, livreiro de excepção que depois renunciou para se converter em mais um licenciado em letras a dar aulas a criancinhas!.. Felizmente ainda andam por aí os irmãos Vitorino, o Carlos Veiga Ferreira também certinhos na Opinião e no restaurante dos irmãos Santos que depois se terão separado para cada um seguir a sua vida). A Trave era a cantina da malta da Opinião.

Que me lembre o Herberto só raramente se associava a esta turbamulta exaltada e preguiçosa. Ele frequentava uma outra livraria ali no largo da Misericórdia, aliás Trindade Coelho, propriedade do editor da Forja que asseverava que o melhor   era ter os livros esgotados. Ali o encontrei várias vezes em amável e descuidosa conversa com outros praticantes da mesma nobre arte. Graças a isso, e porque sempre calei a minha colaboração involuntária na golpada do Pacheco, ainda abifei dois livrinhos autografados.

-“Toma lá, já que gostas!”

Anos depois, frequentando eu uma tertúlia nocturna que se reunia diariamente no bar “club 21”, perto da minha casa, discuti com o Miguel Veiga o critério dos prémios Pessoa. O Miguel era, e é, membro do júri e eu exprobei-lhe a falta de atenção para com o Hélder.

“Mas ele recusa tudo, prémios incluídos. Como é que nós poderíamos premiá-lo? Já viu o desprestígio que nos cairia em cima?”

Retorqui que não era o prémio que honrava o escritor mas este que elevava a qualidade do prémio que recaía sobre ele. E que realçava o gosto do júri. Enfim, tretas que só ocorrem noite alta.

Anos depois, eis que o Miguel surge impante e dispara: “Premiámos o Hélder!”

Foi a minha vez de lhe perguntar se o júri tivera em conta a teimosia do Herberto em não aceitar tais distinções. Impávido o Miguel Veiga mestre de advocacia e de ironia, repontou-me risonho : “Não é o prémio que honra o poeta; é o premiado que exalta o prémio...”. E ria-se à socapa o malandrim.

Desta vaga historieta já pouco resta. O Pacheco e o Herberto já cá não estão. O cavalheiro de boas falas que me abordou para ver a gramagem do papel nunca mais o lobriguei. Alguns dos companheiros da mesa franca e noctívaga do “club 21” também já se deram de baixa definitiva. E até o João que nos fornecia as bebidas está careca e com um filho mais velho do que ele era nessa época.

Agora, resta-me esperar, ansioso, pelos “Poemas Canhotos”.

Manuel Valente, querido e velhíssimo amigo, despacha-te lá com o livrinho, porra!

 

(lembrando afectuosamente Isabel Feijó, Fernando Assis Pcheco, "Cabeça de Vaca", "Indio Melgarejo", Zé Cardoso Pires, Hipólito Clemente, Manuel da Fonseca e Adriano Correia de Oiveira  todos da zona da Opinião e Zé Valente e Zé Portocorrero, do grupo do "21". 

Uma especial saudação para Regina Valente, helderiana gentil e volátil a quem, por preguiça pura  e burra, me esqueço de telefonar)