A “Casa”
(a propósito das celebrações do cinquentenário do encerramento da Casa dos Estudantes do Império)
A “Casa dos Estudantes do Império” nasceu durante a guerra (a 2ª) e teria por objectivo ser um alfobre de dirigentes do dito Império que juntassem à sua origem colonial, à sua cor (negra ou a tender para isso), um forte enraizamento na pátria comum através da educação universitária na “Metrópole”. O facto de juntar dentro dos mesmos muros rapazes (e algumas raparigas) vindas dos quatro cantos do mundo denunciava também a ideia (aliás sensata) de criar um alto funcionalismo colonial apto a todos os terrenos devido a conhecimentos adquiridos no convívio universitário.
Convirá pois salientar este facto para repudiar uma insidiosa ideia de que, desde o começo, a “Casa” (ou a “CEI” como também era chamada) era um ninho de nacionalistas africanos. Não era e não foi durante algum tempo. Depois, da dobra da década e dos famosos julgamentos do MUD Juvenil começou a tornar-se aparente que entre os estudantes vindos de África (sobretudo daí e sobretudo de Angola) começava a ser visível um acrescido interesse pela política anti-colonial devido sobretudo ao conhecimento do que se passava nas colónias inglesas e francesas. Mais das francesas porquanto o francês era a língua estrangeira mais conhecida e a política africana da França aquela a que mais parecenças (honni soit...) poderia ter com a portuguesa. Lembremos, apenas e para não ir mais longe, que Senghor, pai da independência do Senegal e porta-voz da negritude, foi deputado francês.
Entendeu alguém que este ano se poderia celebrar não o nascimento da “Casa” mas o cinquentenário do seu forçado encerramento. As datas redondas atraem as pessoas mesmo se esta não seja particularmente relevante.
De facto, como se verá, o encerramento pelas autoridades da CEI foi um tolo erro político e só fortaleceu quem era pro-independentista na área dos frequentadores da Casa.
De facto, se é verdade que a partir dos meados de cinquenta (altura em que, aliás, foi extinta a sucursal coimbrã da CEI, já por alegados e seguros motivos políticos) começou a ser evidente que havia fortes movimentações políticas entre os estudantes das colónias (e sempre mais entre os angolanos do que nos restantes) que culminaram na famosa “fuga dos cem” ocorrida nos primeiros anos de sessenta, quando a polícia propôs o encerramento da CEI já esta tinha cumprido no essencial o seu papel de polarizadora dos independentismos e exportado para as restantes associações (AE) de estudantes todo o argumentário anti-colonial. Digamos que a Casa tinha cumprido o seu papel estratégico e que a partir desse momento a sua existência em Lisboa poderia ser, até, uma prova de que o todo “Metrópole-Ultramar” se mantinha intocável (ou quase) justamente porque a Casa que fora o berço da revolta dos universitários das colónias continuava a existir assim se provando que os dissidentes e fugitivos eram apenas um dos vários grupos de estudantes africanos existentes no território nacional.
Verdade seja que, a partir da criação de instituições universitárias em Angola e Moçambique (1962-1963) começou a reduzir-se a vinda de estudantes ultramarinos para a “metrópole”. E começou, pois, a definhar a corrente de estudantes que era a razão de ser da “Casa”.
A saída brusca dos chamados “cem estudantes” foi preparada por uma organização de origem protestante (CIMADE) que recebeu para o efeito uma especial ajuda de organizações protestantes americanas foi levada a cabo com a ajuda (sempre cuidadosamente “esquecida”) de especialistas da CIA que se movimentavam com grande à vontade em Espanha e na fronteira franco-espanhola. A PIDE bem que se fartou de protestar por (mais) esta traição dos americanos. Deve recordar-se que muitos (mas não todos) dos estudantes africanos que “deram o salto” eram protestantes educados nas missões protestantes das colónias portuguesas muitas delas ajudadas financeiramente pelas igrejas evangélicas americanas. E também este facto tem sido “esquecido” por muito “historiador” do Império que porventura achará que a educação protestante de tantos líderes africanos das colónias portuguesas (a começar por Mondlane, o verdadeiro fundador da frente unida moçambicana que sibstituiu vantajosamente a atomizada lista de pequenas formações nacionalistas mais ou menos inócuas para o poder colonial; ou Daniel Chipenda, peses embora o que depois fez, que foi de facto e durante muito tempo o único chefe militar do MPLA a averbar alguns êxitos no terreno) é um mero pormenor.
Todavia, como jás e disse, foi o facto de haver um forte núcleo de estudantes evangélicos e de, por isso, haver ligações internacionais à rede poderosa de organizações protestantes com forte implantação nos meios anti-coloniais norte-americanos que tornou a famosa fuga num momento impar da propaganda anti-colonial.
À dissolução policial da “Casa” não é estranha a publicação de “Luuanda” que aliás se inseria numa série editorial (felizmente agora reeditada, sob os auspícios da comissão que coordenou as celebrações) onde foram dados a conhecer vários poetas africanos e vários líderes políticos das colónias entre eles Agostinho Neto e Viriato da Cruz que passaram à posteridade não como autores mascomo personagens decisivas do movimento emancipador. Só por esta iniciativa valeu a pena haver celebrações.
Porém, insisto no que acima disse. No momento em que um Governo desnorteado e uma polícia frustrada decidem acabar com a “Casa” já esta fervia a lume muito brando. A saída de muitos militantes e a concentração de estudantes nas universidades angolana e moçambicana faziam temer o pior para a Casa: uma morte lenta e inglória ou a continuação de um organismo onde a onda “nacional e imperial” ainda poderiam ter uma palavra a dizer.
O escandaloso encerramento da “Casa” fê-la sobreviver como mito e prova provada de que Portugal estava condenado a perder tudo em que apostara.