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“Boyards Caporal”, papier maïs
Outros tempos, claro. Quarenta anos a menos ou coisa e tal. Em Paris, já com o cacau suficiente para poder dormir num hotel mais que duvidoso e comer em bistrots baratos no quartier latin, em les Halles, ou nas pequenas ruas de St André des Arts.
Um Paris onde ainda havia as livrarias “la joie de lire”, e “Globe” e uma caterva de outras, algumas exageradamente militantes e outras definitivamente “literárias”, o que em certos casos, entre nós, roçava o insultuoso. E o milagre da Gibert, quatro andares de livros com muitos em saldo. Outro mundo, outro tempo, outra idade (a minha) outra, e mais séria, ingenuidade.
Sobre tudo isto, o Harakiri depois hebdo, depois Charlie hebdo. Eram ainda os anos de de Gaule, depois os de Pompidou.
Paris era uma festa (quem disse isto?). No “boul mich” e arredores podia ver os filmes que cá me negavam, havia a cinemateca, oh a cinemateca!, a cinemateca do Henry Langlois, os mitings na “mutualité”, cafés barulhentos cheios de fumo, ainda se podia ir à “closerie des lilás” sem ficar definitivamente teso e, na volta, sempre à pata, ir espreitar “L’Impensé Radical”, uma livraria pertença de um grego (o Luc Thanasekos) que, além do mais, vendia jogos extraordinários , como o “go” e o “awari”. E, obviamente, os textos de Sun Tzu, o estratego. E, milagre, ou nem isso, os “Textes Libres” de Wolinsky.
Ainda hoje, muitos anos depois, aquela rua, fronteira do Luxemburgo, quase paredes meias com as casas de d’Artagnan e de Athos, a rua Medicis, é o lugar ideal para viver. Ai se me cai o euromilhardas, nem hesito: avião para Paris, táxi para uma agência imobiliária e salta um apartamento na rue Medicis, aqui para a mesa do canto. Pouco me importa se já não a gozarei muito tempo. Nesta idade, um gosto é mais importante que seis vinténs, mesmo se cito o Maugham um tanto ou quanto livremente.
Maugham, justamente, que nesses anos começávamos a dizer que não passava de um inglês snob, Maugham o extraordinário autor de “Chuva”, de “O fio da navalha” e outras obras que agora voltam a aparecer nimbadas de melancolia e aureoladas de novidade!
Nessa época, eu só carburava a “Boyards” (papier maïs), uns cigarrões amarelados, o tal papier, sem filtro como mandava a boa regra, tabaco preto que tornava os “Gauloises” e as aristocráticas “Gitanes” umas mariquices...
A primeira vez que levei um Boyard à beiça, quase que cuspi meio pulmão. Depois, nunca mais os larguei até que, de regresso à pátria madrasta (e “lugar de exílio”, ah Daniel Filipe, que falta fazes!...), o preço, via importação, se tornou incomportável. Foram sofrivelmente substituídos por “Ducados”, comprados num contrabandista da rua do Rosário e, mais tarde, quando também esse mercado se fechou, fui degradado enquanto fumador para uns pobres tabacos nacionais que, juro, sabiam a barba de milho ou pouco mais.
Tudo isto, esta viagem à bolina porquê? Pois por várias coisas, todas juntas, desde o ataque ao Charlie até à morte do Zé Portocarrero, um dos últimos amigos, grande amigo, que fiz. A gente faz os amigos na infância, na adolescência, depois na faculdade, e mais raramente até meados dos trinta anos. A partir daí a coisa torna-se difícil, quase impossível. O Zé P aconteceu-me já nos anos 80, quando os quarenta já me tinham soado e as ilusões, muitas, começavam a desfazer-se perante os embates duma realidade que eu não apreciava. Que nós não apreciávamos.
A democracia é uma coisa óptima mas a nossa veio de supetão acompanhada pelo novo riquismo de uma classe emergente, ou de várias e diferentes classes emergentes, para quem o dinheiro rapidamente conseguido tinha, pensavam, a virtude da eternidade. Era como o bíblico maná: caía indistintamente sobre a gente mesmo se, para tal, esta nada tivesse feito e, muito menos, merecido.
E, com a democracia, veio a diabolização de tudo o que a antecedia. A herança de Salazar, enfim o que passava por tal mesmo se viesse de mais longe, foi rapidamente postergada mas com uma agravante: derrubaram-se os emblemas mas permaneceu o essencial com tudo o que isso significava de afunilamento social e político. Claro que isso não deixava de ser previsível: subitamente, uma semana depois do 25 A, o 1º de Maio enchia as ruas com as maiores multidões que o país via desde há muitos anos. Afinal toda a gente era antifascista desde a barriga da mãe, e Portugal passava de país reacionário a país progressista sem apelo nem remédio. Senhoras que escreviam ao velho ditador cartas de arrebatada paixão nacionalista, passeavam-se agora de punho erguido enquanto os maridos e filhos substituíam o seu cartão da União Nacional por outros apropriadamente recomendáveis e absolutamente democráticos.
Assistíamos a isso (e a tudo o resto, que não era pouco nem inocente) primeiro pasmados, depois horrorizados. A rua pertencia a quem berrava mais alto e o parlamento (ou o que tentava ser parlamento) encolhia-se aterrado. Andámos assim largos anos a protestar europeísmos pela voz do dr Soares que o era convictamente e de outros que só queriam a boleia da Europa para encher o bolso fundo (sem fundo, mesmo).
Lá fora o comunismo falecia sem sobressaltos especiais, o socialismo versão “mon ami” Miterrand ia-se esvaziando e os conservadores, reciclados pelos altos e baixos da História post Maio 68, aproveitavam a lição enquanto a Esquerda dormitava.
Era disto que falávamos o Zé e eu, e mais uns quantos, quando nos reunimos no apoio ao Bochechas para a Presidência da República. Quando o cavaquismo começou a dar de si ainda acreditámos que Guterres era a resposta. Não foi, mas antes isso que o cavaquismo versão Nogueira. À passagem do século já eu deixara de fumar enquanto o Zé continuava a dar ao pulmão como um desesperado. Amigos morriam antes do tempo mesmo sem fumar. As esperanças num país diferente também não estavam lá muito viçosas. O Zé, mais apocalíptico, tendo vivido na Bélgica nos anos de estudo, estranhava o sossego com que se ia gastando mais do que seria de esperar num país que se desindustrializava e sem recursos visíveis. Fora toda a vida um gestor com êxito e não compreendia a lógica do investimento a todo o custo em infra-estruturas de duvidosa rentabilidade.
Outro Zé (que não fumava, o Zé Valente ria-se dele mas, depois, dizia-me: “aquele diabo tem uma boa dose de razão”. Morreu, também, ainda mais novo que o Portocarrero, num ano negro que começou com a morte do Pedro Sá Carneiro Figueiredo e acabou com a do Fernando Assis Pacheco. Duma assentada perdia eu três amigos do peito, amigos feitos no antigamente, ou quase. Quando, agora, olho para trás saltam-me ao caminho três dúzias de fantasmas amados como a dizer-me “estamos à tua espera, que é que ainda aí fazes a perder tempo e a aturar o Passos Coelho e o Costa, para não falar nos rapazes e raparigas muito radicais e mais ainda muito ignorantes?”
Deixei de fumar há uns bons vinte anos. Não por susto, ameaço, fragilidade financeira ou pulmonar. Foi por aposta, raios me levem, por uma estúpida aposta com um outro amigo que lhe carregava forte e feio na “erva”. O sacana aparecia-me em casa, marchava para a varanda e zás!, aprimorava um tubo (aquilo não era um cigarro, era algo de monstruoso) numa mortalha de papel zig-zag e dava-lhe ao pulmão com uma ânsia e um gozo que só vistos!
“mcr”- dizia-me, “não sejas possidónio. Isto é muito melhor que esse tabaco malcheiroso que metes à goela e faz menos mal. Nisto de esfumaçar o vicioso és tu”
Às tantas, irritei-me, e dclarei que ia fumar não digo o último mas o primeiro dos últimos igarros da minha vida. Em mês e meio de sacrifício, de cigarros acesos, logo cortados depois da primeira e voluptuosa aspiração, reduzida a ração de paivantes a uma meia dúzia diária, fumados como disse, a prestações com o auxílio de uma tesourinha que trazia comigo, dei comigo em Cascais depois de uma sardinhada sem cigarros. Tinha-me esquecido do maço em casa. Fica para depois do lanche, decidi. À hora do lanche, adiei para depois do jantar. Batidas as nove da noite, decidi que era para o dia seguinte e até hoje.
Durante uns tempos, o mundo andou zangado comigo, ou eu com ele, nem sei. Durante um largo ano, trouxe sempre comigo o maço deixado a meio. Quando aquilo apodreceu por desuso, comprei outro que nem abri. Apodreceu também. Entretanto eu sonhava com cigarros. Com um cigarro depois do primeiro café da manhã, com outro depois do segundo, do almoço, de uma cervejola, sei lá de que mais.
Durou anos este sonho concupiscente.
Subitamente desapareceu e começou o pesadelo: recomeçara a fumar! “Ora porra!”, dizia com os meus botões, “lá estou eu outra vez pendurado numa pirisca”.
Quando o governo decretou o fim do tabaco em recintos fechados fui entrevistado por uma televisão. Para espanto do jornalista, que esperaria um sermão e missa cantada sobre os malefícios do tabaco, eu declarei que era contra a medida. Sou contra os governos que se pretendem substituir aos nossos pai e mãe.Que querem o nosso bem mesmo que nós o não queiramos. Que depois hão de querer pensar por nós, fornicar por nós (ai a palavra fornicar não vale nem meia foder, sequer um quarto!) respirar por nós, votar por nós, escolher por nós.
E é isso que, já meio velho , meio imprestável, vista cansada, barriga a descair, cabelos ainda muitos mas brancos, me faz, apesar de tudo, correr, melhor dizendo andar apressado, escrever num blog para leitores anónimos, sorte a deles que não vêem a carcaça que estas vai dedilhando numa esplanada com vistas para um jardim onde correm mais cães que crianças, seguidos por donas que os anos (bastantes) não pouparam especialmente (ah onde estão as raparigas de outrora, as jeunes filles en fleur, que eu se não sou Proust sou pelo menos Marcel, e ao contrário do velho génio -que li pela primeira vez, numa cela em Caxias sur mer – ainda penso que “a boi velho, erva tenra” mesmo se as emoções próprias de um cavalheiro irremediavelmente lúbrico se passem mais na cabeça do que noutras e mais pudendas partes).
E tudo isto, a praia, o Verão de Buarcos, a minha oisive jeunesse, os tempos duros mas puros, as utopias ingénuas e desrazoáveis, os “Boyard papier mais” e uma longa teoria de amigos perdidos, Lourenço Marques antes de ser estupidamente Maputo (que é um rio ou, caso insistam, uma região a mais de cem quilómetro a sul, cujos régulos preferiam Portugal à Inglaterra por várias e boas razões entre as quais avultava o facto de sermos menos cabrões que os ingleses; Lourenço Marques era conhecida nas línguas vernáculas da região por Xilinguine mas isso não convenceu o medíocre Samora que, além do mais, era ignorante) veio-me de repente à memória quando como num sonho via desfilar o Luis Neves, o Faria, os dois Zés, o Assis, os dois Alfredos (Fernandes Martins e Soveral Martins) o João Quintela, o Zé Leal Loureiro, o João Bilhau, o Manuel Pina, o Carlos Cruz, o António Manso Pinheiro, o Eduardo Prado Coelho, o Rui Lucas, a Manuela Sinde, o Orlando Bretão, o Rui Feijó algumas – e, permitam-me. anónimas - mulheres amadas, enfim uma multidão amável, alegre, inteligente a quem devo tudo ou pelo menos muito. Abençoados sejam onde quer que estejam.
E, já agora, gostaria de lhes juntar a memória grata e feliz, de um leão de peluche zarolho, de um carrinho de pedais vermelho, de um canhão miniatura que disparava balas de borracha, de uma lanterna mágica, das condecorações do avô Manuel Curado que fez todas as guerras possíveis de África (até a dos Dembos, aquela que alguém batendo com o toco de um braço perdido na mesa, dizia que fora maldita entre as malditas?, Até essa, claro). De todos os objectos mágicos da infância só sobrevive a espada do avô e também do meu pai, mais tarde. A quem a deixarei para que cuide dela, a limpe com os produtos adequados a uma arma que já leva mais de cem anos na família?