Nessum dorma
Chamem-lhe “bons sentimentos”, parolice, o que quiserem, mas a imagem daquele menino morto à beira água, e uma acusação. Contra a Europa, contra o mundo, contra a guerra, claro , e em primeiro lugar. Como imagem, tem a mesma dramática força do menino judeu de mãos no ar ou do menino palestiniano a chorar sobre o cadáver do pai morto a sangue frio por um soldado hebreu tão ou mais nazi do que os eventuais matadores do menino judeu com o seu sobretudo infantil e a miserável estrela amarela na lapela.
Aquele menino sírio, três anos de idade, morto juntamente com o irmão de cinco e a mãe numa praia turca onde provavelmente passearão turistas ocidentais durante os meses de férias, diz tudo o que se odeia neste mundo infame.
- por irónico que possa parecer, aquele menino se sobrevivesse teria sido colhido na Alemanha da senhora Merkel que se dispõe a acolher 800.000 refugiados mais do que toda a restante Europa junta.
E depois Merkel e os alemães é que são os maus da fita para umas criaturas que, sem quaisquer legitimas qualificações, atiram contra ela e eles todas as culpas do mau funcionamento das instituições europeias e, pasme-se!, nacionais.
E se é verdade que na Alemanha um grupo ultra minoritário de Direita ataca as instituições dedicadas aos refugiados, não menos verdade é que a sua expressão política e social é reduzida (muito mais reduzida do que, por exemplo, em França) e levanta contra ela uma cada vez mais forte e decidida opinião pública que, mesmo antes das medidas governamentais, já acolhia cidadãos árabes fugidos da guerra.
Do outro lado da decência humana e política estão quatro países (todos saídos de quarenta anos de dominação soviética) cujos cidadãos em tempos difíceis obtiveram no Ocidente (e sobretudo na Alemanha Federal) acolhimento e refúgio. São eles, por ordem de antiguidade no que toca a refugiados políticos, a Hungria, a Polónia a República Checa e a Eslováquia. Destes dois últimos,antes reunidos na Checoslováquia, há ainda a lembrança do dramático ano de 1968 e da “Primavera de Praga”.
Mais do que quaisquer outros, estes países deveriam ter bem presente a memória dos seus emigrados políticos que aos milhares fugiram dos detestáveis regimes que à ordem de uma potencia estrangeira, inventora da famosa teoria da “soberania limitada” (que nunca cá vi contestada por quem agora enche a boca de “defesa da soberania” contra a Europa e o euro. Bem pelo contrário!) perseguia os seus cidadãos, encerrava a sete chaves a sua fronteira, impedia os seus nacionais de emigrar e prendia, quando não matava, quem tentasse fugir “a salto”.
Já sei que irão dizer-me que, para a Alemanha, a vinda de 800.000 novos refugiados (a juntar aos milhões de emigrados, turcos, árabes, gregos ou italianos já residentes) é um bónus num país de população envelhecida. Para já, conviria lembrar que os quatro vizinhos já referidos têm exactamete o mesmo problema e que, sobretudo a Polónia, tem no estrangeiro uma gigantesca colónia emigrante que, por alturas dos acordos de livre circulação, era o fantasma número um dos xenófobos ocidentais (o famoso picheleiro polaco que iria tirar o trabalho a ingleses, franceses, belgas ou holandeses).
Ouvir Viktor Orban declarar que a simples menção de uma quota é um convite à chegada de refugiados ou de emigrantes económicos é uma provação infame. Ouvir um bardamerdas polaco “aceitar” apenas 50 cristãos é a prova provada que na Polónia a cristandade está em alto risco. Pior se, como um alto dignitário desse país afirmou, se juntar estoutra declaração: “A Polónia corre o risco de ter de receber milhões de ucranianos em fuga da ameaça russa” (sic).
A Polónia nunca recebeu tantos ucranianos como Portugal, bem mais longe mas notoriamente mais afável e acolhedor. É pelo menos o que me diz um ucraniano fanático por bacalhau na brasa e senhor de um português invejável que aqui ganha a sua vida, aqui instalou a família, amigos e parentes, que se mantém solidariamente ucraniano mas que só vai à terra em breves férias de duas semanas que os restantes dias são para uma praia bem portuguesa de águas mornas e muito sol.
Curiosamente, quando se fala de quotas, ouve-se (nas televisões estrangeiras a que qualquer um de nós tem acesso) os refugiados afirmarem que só em casos extremos querem esses países cento-europeus que os repelem. Que nem sequer os deixam tomar os comboios para a Alemanha com a esfarrapada desculpa de falta de documentos ou de vistos. Isto depois de milhares de mortes na travessia do Mediterrâneo, de camiões carregados de cadáveres sufocados e de toda a miséria que diariamente nos confronta desde as televisões onde passam as telenovelas que, com as discussões penosas e incessantes sobre o patético futebol nacional e o “melhor do mundo” animam e entusiasmam os portugueses.
Eles lá sabem porquê.