“É assim que se faz a história”
“estamos no extremo ocidental de uma europa gangrenada...”*
O título não é meu. Pertence a Eduardo Guerra Carneiro (1942-2004), excelente poeta e meu velhíssimo amigo com quem comecei a privar cerca de 1962. Até ao seu (in)esperado suicídio sempre nos encontramos à volta de uma cerveja, do amor pelos gatos, da poesia e das suas inesgotáveis paixões. EGC vivia em estado de permanente paixão e conheci-lhe uma boa dúzia de musas só pelo ele me confidenciava.
O seu fim de vida não foi bom. Alcoólico (como tantos outros poetas), generoso como poucos, cronista talentoso e jornalista de mão cheia, era senhor de uma notável cultura. Nos anos duros, fora um resistente no sentido mais nobre da palavra. Matou-se atirando-se da janela para a calçada (Jorge Silva Melo, outro amigo comum e talentoso, dedicou-lhe uma belíssima crónica: “o poeta que atirou para as estrelas”.) Era bom que se reeditassem as suas obras ou, pelo menos, que se publicasse uma boa antologia dos seus poemas. No mercado alfarrabista, os seus livros são apreciados e muito procurados, o que é sempre um bom sinal.
Fechemos porém este introito literário para nos mergulharmos a contragosto no tema desta crónica: as desventuras da História e os seus causadores.
Anda por aí, na última página do “Público” um cavalheiro que se assume como “historiador” mesmo se, desse ponto de vista, se lhe conheça obra assaz escassa.
A propósito da Europa, melhor dizendo da União Europeia, ei-lo que, num incomparável exercício de lirismo político, entendeu juntar a Schumann, putativo pai desta agremiação, um político italiano (Altiero Spinelli) que seria (é ele quem o diz) comunista. Spinelli teria, ainda durante a época mussoliniana, sido exilada para um remoto ponto do país e aí surgiu-lhe a ideia de uma Europa Unida que travasse a lepra fascista.
Não se sabe exactamente como é que isso se conseguiria (ou, reportando-nos à actualidade, se consegue) sobretudo porque no “limes” europeu existia a União Soviética que em brevíssimo tempo haveria de engolir os países bálticos e parte da Polónia, para já não falar no que acontecera a algumas das “repúblicas” unidas (o caso mais exemplar é o da Ucrânia mas algumas das nações do Cáucaso sofreram idêntico destino, ou seja perderam toda e qualquer independência teórica de que na constituição soviética beneficiavam.
Mas a coisa vai ainda mais longe. Se é verdade que Spinelli foi na sua juventude (desde os 17 anos) membro do PCI não menos verdade é que depois de fazer 30 anos começa a afastar-se do Partido (uma camarada afirma nesses anos (1937-1943) que as posições de Altiero são “perigosíssimas" dado que põem em causa o estalinismo. E, logo em 1937, é expulso do PCI sob a habitual acusação de minar a ideologia bolchevique e de não ser mais do que um pequeno burguês ou até (crime ignominioso) de poder ser um trotskista!!!
Em 1941, quatro anos(!!!) depois da expulsão, escreve o “Manifesto per una Europa libera e unita” que depois circulou com o nome “Manifesto di Ventotene".
Nos anos que seguiram Spinelli torna-se membro do Partito d’Azione e, em 1945, participa na primeira Conferência Federalista Europeia. Pouco depois funda o Movimento della Democrazia Republicana (posteriormente Concentrazione Democratica Repubblicana) .
Os partidos comunistas combateram asperamente os amigos de Spinelli e jamais admitiram qualquer espécie de unidade europeia, aliás impossível desde a criação da Cortina de Ferro.
A Europa tal qual a conhecemos foi aliás, em grande parte, uma reacção à ideia comunista e ao bloco soviético.
Spinelli viria a ser deputado em Itália e deputado europeu até à sua morte. E se é verdade que nos últimos anos participou como independente nas listas do PCI, não menos verdade é que este operara, em relação à URSS e às “democracias populares” uma reviravolta que, na prática, como aliás depois se confirmou, o afastava velozmente do ideário marxista e de quase todos (senão todos) os postulados do “movimento comunista internacional”. Para qualquer estudioso daquela época, Spinelli era fundamentalmente um membro da “esquerda democrática” situando algures entre Nenni e Panella (ou seja entre um dos mais famosos socialistas italianos e o máximo expoenente do Partido Radical Italiano.
O texto do “nosso” historiador simplifica tudo deixando crer que “um jovem comunista” confinado num ermo lugar italiano, escrevera um manifesto favorável a uma europa anti-fascista. Poderia acrescentar “e anti-comunista” mas isso ficou no tinteiro.
Aliás, mesmo hoje, se é verdade que a UE mantém a matriz anti-fascista não menos verdade é que a ideia europeia foi desde o seu primeiro momento uma clara negação de qualquer afinidade com o “socialismo real”. E como tal foi percebida e acusada pelos políticos de Leste, pelos partidos comunistas de Oeste e ainda hoje, por cá, é algo de horrendo para a nossa inteligentsia comunista (e afins). Só Tavares não sabe disto ou, sabendo-o, cala-o e vai disparando as suas escassas munições de pólvora seca sempre anti-fascista (se é que ele sabe o que isso é) e sempre ultra-progressista como ele gostaria de parecer. É assim que a história se vai fazendo...
*Eduardo Guerra Carneiro: in “como quem não quer a coisa” ( ed. &etc, 1978)