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Procuram-se seis milhões e quinhentos mil votos
Ou
Não foi Trump quem ganhou mas Hillary que perdeu
Há pouco mais de oito anos, discutia eu diariamente com o Iduíno Gomes, médico, luso-americano com trinta anos de hospitais em Boston. O Iduíno era filho de emigrantes no Massachussets mas ficou retido em Portugal durante a guerra e cá se formou em Coimbra.
Era um homem bom, generoso, eficiente e trouxe com ele, depois do 25 A, todo o seu saber na luta contra a droga. Ainda está de pé muita da legislação que ele propôs e Almeida Santos, seu velho amigo de Coimbra, redigiu.
Na altura eu era por Obama e o Iduíno por Hillary. Um dos seus argumentos era este: aquela era a última oportunidade para quem já passara a barreira dos sessenta anos. “Veja M, se o Obama ganha, ela só poderá candidatar-se com quase setenta anos. Este país (os EUA) não é para velhos, muito menos para mulheres velhas!”
Valha a verdade que, uma vez vencida nas primárias a sua candidata, o Iduíno, democrata leal e americano liberal (e socialista português), prontamente se declarou “obamiano”.
Não vou recordar o que, já naquela altura, me intrigava em Hillary. Nem sequer a áspera campanha por ela travada contra o seu rival. Convém, todavia, lembrar como o cavalheiresco Obama a nomeou para um altíssimo cargo e sempre a defendeu e apoiou.
Clinton, desde logo se percebeu, não desistiu de ser Presidente. Ao longo destes últimos oito anos, vimo-la tecer pacientemente uma rede de apoios, consolidar uma posição e impedir a progressão de uma nova geração de eventuais candidatos à nomeação pelos Democratas.
Esbarrou, apenas, em Bernie Sanders, um velho, e opiniático, senador, membro da ala esquerda do Partido Democrático.
E logo, na corrida pela nomeação, se viu onde estavam os jovens, os millenials, a nova geração do partido. Também é verdade que, provavelmente, o radicalismo de Sanders o impediria de bater o adversário republicano, fosse ele qual fosse. (Ou não! Sabe-se lá o rumo que a roda da História desenharia...)
Depois, começámos todos, pelo menos os que vêm talk-shows (Fallon ou Colbert que passam na tv portuguesa a horas das telenovelas), a ver que, se Trump era detestado, Hillary apenas conseguia aparecer como um mal menor. E não era por ser mulher, por ser competente, estudiosa e inteligente. Ela era, superlativamente, isto tudo como também aparecia como ambiciosa, fria, calculista e ligada aos grandes interesses corporativos (Já Obama lhe dissera o mesmo, lembram-se?). Advogada, senadora, Secretária de Estado, Hillary amassara juntamente com o marido, aliás um bom presidente com um único e grave defeito na América (womanizer, isto é mulherengo) e um erro de palmatória chamado bombardeamentos no Iraque (os Bush só vieram completar o já iniciado por ele), uma fortuna colossal não isenta de reparos e de críticas.
Hillary partiu para a batalha eleitoral, acossada à esquerda, lembrada como “falcão” e finalmente desarmada pelas reticências com que a esquerda do partido pareceu apoiá-la. Pior do que isso, o eleitorado democrata não parecia entusiasmar-se.
Hillary, como o bem aconselhado Trump avisou, representava o “sistema” seja lá isto o que for, não respondia aos desejos ou sonhos dos brancos (que ainda são a maioria) pobres e afastados do progresso. A América não é só Harvard ouYale, Springsteen ou Beyouncé, não é só o Upper East Side ou Wall Street. Se Hillary tivesse ouvido, pelo menos uma vez, as canções do Boss teria percebido isso. E teria percebido que Trump, milionário, canhestro, filho de emigrantes, era, apesar de tudo, uma das representações do sonho americano. E que talvez não fosse boa política ampará-lo na luta contra os outros candidatos à nomeação pelo Great Old Party, gente mais apresentável mesmo se entre eles estivessem dois “latinos” (Cruz e Rubio) fortemente ancorados à Direita. Ou Jeb Bush, outro representante do sistema e da aristocracia política republicana.
Em segundo lugar, tenho a ideia, porventura errada, de que os democratas viveram este ano que passou num estado de autismo político. Ouviam apenas o queriam ouvir e não perceberam a mensagem das primárias republicanas onde todos os candidatos “respeitáveis” morderam o pó sem apelo nem agravo. Trump, o grosseiro, o racista, o predador sexual, não só proferia as mais absurdas declarações como as repetia se atacado. E em dose reforçada. É verdade que alguns beaux esprits do GOP desviavam o olhar com ar horrorizado mas não as multidões que acudiam aos comícios. E mesmo as sondagens, sempre com os mesmos alvos, ouvindo as mesmíssimas pessoas, nunca deram a Clinton uma vantagem apreciável. Provavelmente, se os sondadores se tivessem dedicado a insistir nos swing states, talvez tivessem percebido que era ali que tudo se poderia passar.
Teria sido melhor pensar que um habitante de Detroit, cidade que tenta sair da horrível falência em que caiu, esperaria fervorosamente as promessas de Trump, de regresso à indústria americana tal como todos os “laissés por compte” do perdido império americano.
Em terceiro lugar, se é verdade que os EUA se criaram com emigrantes, nunca o número destes (dos nascidos fora do país foi tão forte em percentagem: Há vinte anos representavam 5% do total da população, agora, ouvi-o ainda hoje, tal número ultrapassa os 17%. Juntem-lhe a mundialização que é sentida como uma real perda de empregos pelos mais frágeis que, como na Europa, entendem que os seus benefícios vão genericamente para os mais ricos.
Trump, na América não diz nada de substancialmente diferente do que os populistas europeus dizem. Qualquer adepto do Brexit o compreende perfeitamente e, mais, o apoia. Basta ver como a srª Le Pen ou os populistas italianos festejaram esta vitória. Cujos ecos chegaram a Amsterdão, a Budapeste ou a Berlin e Varsóvia.
As reacções de que vou tendo notícia são surpreendentemente mais violentas do que as que Erdogan (que ainda ontem prometia regressar ao tema da “grande Turquia que não cabe nos 780.000 quilómetros quadrados” de hoje!) desperta. Ou a boa vontade que parece aureolar a China, país onde a democracia prospera como se sabe. Trump não gosta de emigrantes. Será que a nossa Europa, que nos enche de empáfia, trata melhor os milhões de fugitivos que batem à sua porta, quando se não afogam?
Voltemos à eleição americana. E aos seus números: Em relação aos votantes de Obama, Clinton regista uma perda segura de quase sete milhões de votos. Trump não melhorou o score republicano do anterior candidato e os resultados globais para as duas Câmaras provam-no. Se os democratas não ganham nos Representantes e no Senado não é menos verdade que melhoraram e os republicanos tiveram paralelamente algumas perdas. Nem o triunfo dos primeiros nem a perda dos segundos modifica decisivamente as perspectivas do novo Presidente que, para já, poderá nomear um juiz conservador para o Supremo Tribunal. Só isso terá consequências gravíssimas. As promessas de novos muros, de repatriamento massivo de emigrantes ou mesmo de retaliações contra o Irão, o Daesh são meras hipóteses dada a dificuldade em levar a cabo tais actuações.
Voltando, de novo, à eleição: parece que em muitas cidades americanas (quase todas de maioria democrata) há manifestações contra Trump. Parece que apesar do óbvio triunfo de Trump, há quem se bata na rua contra a escolha dele. Trata-se de um fenómeno marginal ou é algo mais? E se for assim, porque é que tanta gente se mostrou horrorizada quando Trump, “sempre esse homem fatal”, deixou no ar a ameaça de não aceitar a vitória de Hillary? Será que o protesto de esquerda é o único que vale?
Faço parte dos derrotados nas eleições americanas. Não morro de amores por Hillary mas sufoca-me a ideia de Trump ser o novo Presidente dos EUA. E, mesmo não sendo americano, aterra-me a ideia de que Trump vai ser uma fonte de inspiração para muitos europeus. Na França, no Reino Unido, na Itália, na Holanda (ai minha querida Amesterdão!...) . Isto não falando na Europa Central onde o trumpismo já é de regra. Assusta-me a ideia de que provavelmente já não verei (estou a dias de (per)fazer 75 outonos) um democrata na Casa Branca. Que diabo, um homem tem o direito de morrer descansado e o único Donald de que gosto é o pato.
*A jornalista Teresa de Sousa pede que não se faça de Hillary o bombo da festa. A culpa que morre sempre solteira, não é da senhora mas eventualmente de todos nós.
Vários outros abencerragens do comentário político culpam a Constituição Americana e o sistema dos grandes eleitores. Ou seja, são contra as regras do jogo quando este não tem o resultado que lhes agrada.
- o comentador Rui Tavares andou dias e dias a confortar-nos com uma vitória de Clinton. Só de o ler, comecei a temer o pior. Tavares toma os desejos dele pela realidade. E, como de costume, engana-se.
- Quando referi que só donald Duck me entusiasmava, esquecia-me do grande Donald Byrd, o trompetista revelado pelos Jazz Messengers e principal autor do disco “Black Byrd”, um must. Glória e paz à sua amável memória.