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Soares, único, irrepetível e humano, definitivamente humano
Lidos e ouvidos centenas de testemunhos sobre Mário Soares, verifico com alguma perplexa surpresa que toda aquela boa gente era amiga, muito amiga, amicíssima, do ex- Presidente da República. O grande senhor há de ter passado a vida num sufoco de carinho, amizade, respeito extraordinários. Morreu em estado de santidade absoluta como o sr. padre Américo ou o “milagreiro” dr. Sousa Martins cuja estátua em Lisboa é mais florida que muitos altares de Igreja.
Também me apercebi que toda a gente com quem Soares trocara uma ou duas palavras se considerava arrebatadamente tocada pela Graça, pelo júbilo e sentira, a partir dessa epifania, nascer uma amizade imorredoura e partilhada com o velho socialista, laico e republicano.
Nada disso aconteceu comigo pese embora ter uma enorme consideração e respeito pelo dr. Soares. Mais ainda, conheci-o e encontrei-me com ele uma escassa dúzia de vezes, uma das quais na sua própria casa, um paraíso de livros e quadros que me fizeram padecer de um agudo ataque de inveja.
Porém, tudo isso não chega para clamar, urbi et orbe, essa transcendente e extensa amizade que transbordou em televisões, jornais e rádio por todos os lados. A amizade é, para mim, pelo menos, algo mais sólido do que o facto de o interlocutor nos conhecer o nome ou nos tratar com simpatia.
Todavia, visto que me cruzei com ele, atrevo-me a também vir dar o meu testemunho.
Creio que terá sido o Luís Filipe Madeira, ex-governante, ex-deputado europeu e bom amigo, que teve a ideia de reunir (em 1970) na velha república dos Kágados em Coimbra, um punhado de rapazes que tinham sido participantes ultra activos na crise académica de 1969 e o dr. Mário Soares. A única característica comum a essa dúzia e meia de militantes estudantis seria o facto de nenhum deles ser do PCP ou passar por tal. Soares (E o Luís Filipe Madeira, claro) estaria a ensaiar uma pescaria de futuros militantes ainda da ASP e mais tarde do PS. Para tal deslocou-se a Coimbra acompanhado de Catanho de Meneses, depois fundador do PS.
Foi com este último que primeiro conversei explicando um pouco o meu empenhamento político, a minha participação na crise e a prisão que se lhe seguira. Por alguma obscura razão, Catanho achou-me digno de ser recomendado ao dr. Soares que logo aí foi de uma extrema amabilidade a pontos de me garantir que “queria muito” falar comigo e me convidar a sentar-me a seu lado no espartano e republicano almoço que se seguiu.
Já não recordo com fiel exactidão o que se concluiu mas tenho a ideia que, para nós, rapazolas com sangue na guelra e devorados pela paixão radical, Soares foi pouco convincente. “É mais um “oposicrático”, teremos pensado, um reviralhista, enfim um “social democrata”.
Naquele tempo isto, não sendo uma condenação inapelável, não era recomendação alguma. Nós, ou eu pelo menos, alimentávamo-nos a Maio de 68, a Marcuse, a “Vietnam vencerá”, líamos todos os heterodoxos e ainda achávamos Lenine um génio, um fiel discípulo de Marx.
O PS fundou-se sem que daquele grupo tenha havido, que me lembre, alguma contribuição. No entanto, quando Soares se apresentou como candidato à Presidência de República, já me contava entre os raros e primeiros apoiantes.
De facto, ainda durante a “pré-campanha”, acompanhado pela mulher que eu conhecera no rescaldo de um memorável espectáculo em Coimbra, Soares veio ao Porto fazer uma apresentação da candidatura na sede da Ordem dos Médicos. A instâncias do Rui Feijó fui com ele e com a Dolly Cochofel, sua mulher, buscar Soares (e Maria Barroso) à estação de Campanhã. Não havia ninguém à espera deles pelo que a nossa chegada foi um pequeno consolo. Apinhados no meu carro, lá seguimos para a OM. No trajecto, verifiquei, com certa vaidade que o diabo do homem se lembrava do meu nome, dizendo ao Rui Feijó que me conhecia desde 70.
Durante a campanha, desdobrei-me em militâncias várias e escrevi não só no “Belém” (órgão da campanha) mas noutros jornais, nomeadamente no Jornal de Notícias do Porto a favor do candidato Soares.
Mais tarde, encontrei-o na livraria Académica de que ambos éramos clientes e, sobretudo, na sede portuense da Delegação Regional do Norte da Secretaria de Estado da Cultura, onde, quando exerci como Delegado Regional, tive o privilégio e a alegria de o receber. A sua amabilidade (e a excelente memória) constituem para mim uma recordação jubilosa e sempre me impressionou o facto de numa primeira palavra ele recordar um encontro anterior e a nossa comum inclinação pelos livros, sobretudo estes. Não era o reatar de uma conversa anterior e inacabada mas a verdade é que, uma única vez, tendo convidado o Rui Feijó para sua casa e sabendo que eu estava com ele tornou o convite extensivo a mim.
Tudo isto é pouco para me arrogar como amigo, mas é suficiente para afirmar que nos encontros e desencontros políticos, ele sempre me apareceu como uma figura ímpar e central da política portuguesa.
Não fui da CEUD mas antes da CDE, não votei Eanes da primeira vez mas Otelo, votei Eanes quando ele se negou a fazê-lo, votei Alegre contra ele e nos últimos anos, houve um par de vezes em que, sendo profundamente contrário ao governo Passos Coelho, discordei da sua oposição a outrance e da cobertura que o seu imenso prestígio dava a uma espécie de vaga Frente Popular que, na verdade, e como se vai percebendo, guinava para um frentismo anti europeu e anti euro. Nem sequer refiro o seu apoio a Sócrates. De facto perceberia uma visita de solidariedade mas a repetição desta, e por duas ou três vezes mais, pareceu-me demais, para não dizer um claro enfrentamento com a Justiça ou, pelo menos, uma insinuação de que esta se movia por obscuros fins políticos.
Porém, sabendo–lhe dos defeitos (Soares quando se zangava com alguém era intratável) sempre lhe admirei a irredutível postura de defesa da liberdade, da liberdade pura e simples, a recusa de posterga-la fosse por que razão fosse e, sobretudo, em nome de um futuro radioso, e um inalcançável “temps des cerises”, ou de uma política de classe contra classe de que ele desconfiava como o diabo da cruz. Soares, licenciado em História e belíssimo leitor, conhecia demasiadamente bem a História recente (séculos XIX e XX) para cair na esparrela grosseira do “fim da História” veiculada por uma espécie singular de catecúmenos de um materialismo histórico descarnado e adulterado.
Soares, laico e agnóstico, desconfiava dessas promessas quase religiosas de amanhãs que cantam desde que os “hojes” sejam duros e chorosos. Venceu batalhas incertas apenas animado pela sua grande coragem (moral e física), pela cultura, pela vontade de ser livre e, sobretudo, pelo seu imoderado amor pela vida. Só isso bastaria para o pôr num lugar importante entre os raros (meia dúzia, se tanto) políticos que influenciaram o nosso século XX.