![56206869.jpg 56206869.jpg]()
Livros, alfarrabistas & outras fantasias 3
Passage d’un livre (cinquenta anos de desencontros)
O título desta crónica brinca com o verdadeiro título de um livro que, nas minhas mãos, tem tido uma(s) vida(s) singular(es). Refiro-me a “Passage de l’homme” de Marius Grout, prémio Goncourt de 1943.
E que vidas são essas que o trazem ao encontro de um par de leitoras mais distraídas que passam por este blog à falta de melhor ocupação?
Eu conto: nos primeiros anos de 60 (Ui! Há quanto tempo!...) o António Manso Pinheiro que viria a ser o grande editor da “Estampa” e eu próprio gastávamos as noites das férias em longos passeios por uma Figueira adormecida. E discutíamos tudo, o mundo, a poesia, nós, as raparigas por quem nos íamos apaixonando e claro, a nossa última e grande descoberta, o surrealismo. Não sei por que razão, entendi levar o António à casa da tia Néné e do tio Marcos (Viana), professor e forte conhecedor de literatura francesa. Nessa tarde, ao saber-nos interessados pelo surrealismo, o tio Marcos arregaçou as mangas e falou duas horas sobre o assunto. Nós espantados, esmagados, encolhidos por aquela torrente de entusiasmo, de saber, de gosto literário apurado e o Tio Marcos a cem à hora, tu cá tu lá com o Breton, o Desnos, o Eluard, o Aragon e sei lá com quem mais, uma multidão.
À saída, aturdidos, o António só me dizia: “porra, pá, porra. O gajo sabe tudo, leu tudo e nós a armar-nos em carapaus de corrida!!!”
E lá seguimos exaltados e entusiasmados jurando ir ler tudo o que o tio Marcos nos contara e propusera. Entre as obras de que falara, ressaltava uma afirmação original: que havia um cavalheiro de seu nome Marius Grout (e o tio soletrava G,R,O,U,T) que escrevera aquilo que ele, MV, considerava o “único grande romance surrealista” e que obtivera o prémio Goncourt. O livro em causa chamava-se “Passage de l’homme” e fora obviamente editado pela Gallimard.
O António e eu naqueles nossos buliçosos e inquietos vinte anos não tínhamos hipóteses de ir em busca do livro provavelmente desaparecido depois de vinte anos de edição.
Todavia, já nos finais de 68 um dia em Paris com o Jorge Delgado (meu então sogro e companheiro de deambulação pelas livrarias da margem esquerda) e eram tantas, tantas, que desaparecidas conto eu ainda agora mais de vinte, dei de caras com o abençoado “Passage...” O livreiro quando lhe apresentei a relíquia para pagamento disse-me que o livro tivera o “goncourt” ao que retorqui que já sabia, coisa que o espantou a ele, por eu ser um portuga e ao meu sogro que, mesmo sabendo da minha paixão, achou estranho tal conhecimento. Lá lhe falei do Tio Marcos que seria, afirmei, o primeiro leitor. Por razões que desconheço, o livro extraviou-se logo que cheguei à pátria madrasta.
Anos depois, talvez em 1973, fui a Paris visitar o eu irmão exilado e fugido à guerra. Numa livraria da rue Galande dei de novo com o livro, notoriamente em segunda ou terceira mão. Trouxe-o e, uma vez no Porto, contei a história daquela segunda descoberta a um amigo que me implorou que o deixasse ler logo ali. Deixar, deixei mas esse meu amigo era a criatura mais desordenada que conheci. Deixou o livro num canto da casa e a empregada ao encontrá-lo em cima de uma cadeira fez o que costumava. Meteu-o no primeiro buraco da estante mais próxima. Este meu grande amigo, morreu em 95 e ainda hoje a mulher vai encontrando livros meus de mistura com os dele e vai-mos trazendo. O azar é que este 2º Grout ainda nem assinado estava. Resultado: missing in action, desaparecido naquele vórtice livreiro do Pedro.
Quando me acostumei à internet, deu-me para, sem grandes esperanças, procurar novamente o livro. Já não seria possível empresta-lo ao tio Marcos, entretanto desaparecido mas havia ainda o António Manso Pinheiro presumível leitor interessado. Para minha surpresa depois de uma busca breve, apareceu um vendedor e o livro voltou à minha mão e foi convenientemente registado no ficheiro da minha biblioteca com o número 13422, o que o atira para os primeiros dias de Dezembro de 2000. Por qualquer razão, o livro foi para o lote dos “a ler” e lá permaneceu imerso tanto tempo que daí transitou (?) para lugar incerto. Lugar de tal modo incerto que, hoje, quando fui por ele, não o encontrei. Procurei-o na estante dos livros franceses, numa outra de franceses mas em poche, nas estantes do surrealismo mas nada. Eu, prevenido que estou contra o meu anarquismo vitalista, sou extremamente cuidadoso com a livralhada. Se me perguntarem por um livro posso seguramente indicar a sala (são cinco) a parede e mesmo a estante onde o livrinho mora. Ainda por cima estão classificados por géneros e, no caso da ficção e da poesia, a organização ainda contempla a língua usada. Evidentemente, que é sempre possível meter um livro de uma secção noutra totalmente diversa mas isso é coisa que nunca me aconteceu. Portanto tudo aponta para que a “passage” IIIª tenha tido o destino das duas antecessoras. Ele há livros assim, irrequietos, sujeitos a bruxedos ou a milagres, ávidos de mundo e de aventura, descontentes com o seu possuidor, livros a quem dá doida e se emancipam sem saber que saindo de mãos seguras e amigas se arriscam a acabar os seus dias como papel para embrulhar peixe, como bem conta Lawrence Durrell em “as ilhas gregas”, livrinho que se deve ler a par e passo com “reflexões sobre uma vénus marinha” do mesmíssimo Durrell, um nobelisável esquecido (como Graham Greene, de resto).
Esta utilização estranha de u livro lembra uma outra história ocorrida com Sartre. Parece que, algum tempo depois de publicar a “Critica da razão dialética” ou “ o Ser e o Nada” começou a haver uma surpreendente forte procura do livro que até ali se vendia à razão de um dois por mês. Vai-se a ver e afinal o pesado tomo sartriano era comprado aos pares para perfazer um quilo exacto, pois faltavam pesos em todos os mercados e mercearias de França nesses tempos de post guerra e míngua.
Voltando à vaca fria: hoje mesmo fiz nova encomenda de “passage de l’homme” via amazon fr. Primeira edição, claro, mesmo se depois tive notícia que em 1999 se fizera uma nova edição do celebrado livro de Grout. Acho vou colar na primeira folha de guarda um anúncio: “dão-se alvíssaras a quem entregar este livro a mcr seu desastrado proprietário. Assunto sério.” E junto-lhe o telefone e o mail para mais facilidade.
Vai esta crónica para Manuel Abrunhosa, meu primo segundo, criaturinha mais curiosa do que um gato e neto mais novo do meu querido tio Marcos Viana. Às vezes ao ouvir este primo digo para mom próprio que ele tem a quem sair seja pela mãe, seja pelo pai, tudo gente - mais o tio Marcos e o Avô Manuel - que valeu a pena conhecer e que me é grato recordar com respeito, saudade e ternura. Saravah!
* na gravura Marius Grout