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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

O livro das quintas-feiras

José Carlos Pereira, 24.02.17

O embaixador Seixas da Costa disse aqui o que eu diria sobre o último livro de Cavaco Silva, com a vantagem de o ter lido, coisa que me dispenso de fazer. Bastaram-me alguns resumos. É prosápia a mais, sobretudo quando refere, mais do que uma vez, e com a humildade que lhe é própria, que tem a certeza de que o exercício dos seus mandatos presidenciais fez melhor a Portugal do que se tivesse sido outro candidato a ganhar as eleições.

O livro servirá para uns ajustes de contas pessoais, mas não serve certamente para Cavaco Silva recuperar a sua imagem junto dos portugueses.

Os SMS e o resto

José Carlos Pereira, 20.02.17

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Já todos perceberam o que se passou na Caixa Geral de Depósitos (CGD) no processo que envolveu o Governo, empenhado em encontrar uma solução de capitalização que não fosse considerada ajuda de Estado, por causa do défice, e a anterior administração liderada por António Domingues. Mário Centeno procurou satisfazer as reivindicações do presidente escolhido e terá laborado em erro ao considerar que a alteração do Estatuto do Gestor Público seria suficiente para responder ao capricho dos administradores, que não queriam divulgar rendimentos e património. António Domingues e a sua equipa, por sua vez, queriam o impossível: gerir um banco público sem as limitações impostas por lei. Daí à nebulosa criada foi um instante.

A administração mudou entretanto e a questão da CGD não passa, por ora, de mera arma de arremesso político. Contudo, enquanto a generalidade dos meios de comunicação se centrou na questão da declaração de rendimentos e património, creio que o mais relevante das exigências colocadas por António Domingues estava para além disso. O ex-presidente pretendia que a CGD deixasse de estar adstrita ao cumprimento de orientações estratégicas do Governo, que os administradores ficassem desobrigados de cumprir orientações ou recomendações fixadas pelo Governo e que a sua autonomia não ficasse restringida em função dos resultados apresentados ou de avaliações negativas. A administração também deveria ter autonomia para decidir sobre aquisição ou alienação de participações sociais, constituição e extinção de empresas. As exigências contabilísticas e de nomeação de órgãos sociais deveriam ser as mesmas do sector privado. Ou seja, António Domingues e a sua equipa queriam gerir a CGD à margem de qualquer concertação com o Governo, como se se  tratasse de um banco privado. Mas sem responder aos accionistas...

O ministro das Finanças não andou bem no processo, foi permissivo em demasia face a tamanhas exigências, mas um experiente banqueiro como António Domingues deixou ainda mais a desejar. E já não falo na consultora que contratou quando ainda não estava na CGD, nas reuniões em que participou enquanto se mantinha em funções no BPI, no escritório de advogados que não se percebe quem pagou ou na escolha atrapalhada dos administradores chumbados pelo BCE. Continuasse António Domingues em funções e creio que seria um fartote de casos, uns atrás dos outros.

o leitor (im)penitente 197

mcr, 17.02.17

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Livros, alfarrabistas & outras fantasias 3

 

Passage d’un livre (cinquenta anos de desencontros)

O título desta crónica brinca com o verdadeiro título de um livro que, nas minhas mãos, tem tido uma(s) vida(s) singular(es). Refiro-me a “Passage de l’homme” de Marius Grout, prémio Goncourt de 1943.

E que vidas são essas que o trazem ao encontro de um par de leitoras mais distraídas que passam por este blog à falta de melhor ocupação?

Eu conto: nos primeiros anos de 60 (Ui! Há quanto tempo!...) o António Manso Pinheiro que viria a ser o grande editor da “Estampa” e eu próprio gastávamos as noites das férias em longos passeios por uma Figueira adormecida. E discutíamos tudo, o mundo, a poesia, nós, as raparigas por quem nos íamos apaixonando e claro, a nossa última e grande descoberta, o surrealismo. Não sei por que razão, entendi levar o António à casa da tia Néné e do tio Marcos (Viana), professor e forte conhecedor de literatura francesa. Nessa tarde, ao saber-nos interessados pelo surrealismo, o tio Marcos arregaçou as mangas e falou duas horas sobre o assunto. Nós espantados, esmagados, encolhidos por aquela torrente de entusiasmo, de saber, de gosto literário apurado e o Tio Marcos a cem à hora, tu cá tu lá com o Breton, o Desnos, o Eluard, o Aragon e sei lá com quem mais, uma multidão.

À saída, aturdidos, o António só me dizia: “porra, pá, porra. O gajo sabe tudo, leu tudo e nós a armar-nos em carapaus de corrida!!!”

E lá seguimos exaltados e entusiasmados jurando ir ler tudo o que o tio Marcos nos contara e propusera. Entre as obras de que falara, ressaltava uma afirmação original: que havia um cavalheiro de seu nome Marius Grout (e o tio soletrava G,R,O,U,T) que escrevera aquilo que ele, MV, considerava o “único grande romance surrealista” e que obtivera o prémio Goncourt. O livro em causa chamava-se “Passage de l’homme” e fora obviamente editado pela Gallimard.

O António e eu naqueles nossos buliçosos e inquietos vinte anos não tínhamos hipóteses de ir em busca do livro provavelmente desaparecido depois de vinte anos de edição.

Todavia, já nos finais de 68 um dia em Paris com o Jorge Delgado (meu então sogro e companheiro de deambulação pelas livrarias da margem esquerda) e eram tantas, tantas, que desaparecidas conto eu ainda agora mais de vinte, dei de caras com o abençoado “Passage...” O livreiro quando lhe apresentei a relíquia para pagamento disse-me que o livro tivera o “goncourt” ao que retorqui que já sabia, coisa que o espantou a ele, por eu ser um portuga e ao meu sogro que, mesmo sabendo da minha paixão, achou estranho tal conhecimento. Lá lhe falei do Tio Marcos que seria, afirmei, o primeiro leitor. Por razões que desconheço, o livro extraviou-se logo que cheguei à pátria madrasta.

Anos depois, talvez em 1973, fui a Paris visitar o eu irmão exilado e fugido à guerra. Numa livraria da rue Galande dei de novo com o livro, notoriamente em segunda ou terceira mão. Trouxe-o e, uma vez no Porto, contei a história daquela segunda descoberta a um amigo que me implorou que o deixasse ler logo ali. Deixar, deixei mas esse meu amigo era a criatura mais desordenada que conheci. Deixou o livro num canto da casa e a empregada ao encontrá-lo em cima de uma cadeira fez o que costumava. Meteu-o no primeiro buraco da estante mais próxima. Este meu grande amigo, morreu em 95 e ainda hoje a mulher vai encontrando livros meus de mistura com os dele e vai-mos trazendo. O azar é que este 2º Grout ainda nem assinado estava. Resultado: missing in action, desaparecido naquele vórtice livreiro do Pedro.

Quando me acostumei à internet, deu-me para, sem grandes esperanças, procurar novamente o livro. Já não seria possível empresta-lo ao tio Marcos, entretanto desaparecido mas havia ainda o António Manso Pinheiro presumível leitor interessado. Para minha surpresa depois de uma busca breve, apareceu um vendedor e o livro voltou à minha mão e foi convenientemente registado no ficheiro da minha biblioteca com o número 13422, o que o atira para os primeiros dias de Dezembro de 2000. Por qualquer razão, o livro foi para o lote dos “a ler” e lá permaneceu imerso tanto tempo  que daí transitou (?) para lugar incerto. Lugar de tal modo incerto que, hoje, quando fui por ele, não o encontrei. Procurei-o na estante dos livros franceses, numa outra de franceses mas em poche, nas estantes do surrealismo mas nada. Eu, prevenido que estou contra o meu anarquismo vitalista, sou extremamente cuidadoso com a livralhada. Se me perguntarem por um livro posso seguramente indicar a sala (são cinco) a parede e mesmo a estante onde o livrinho mora. Ainda por cima estão classificados por géneros e, no caso da ficção e da poesia, a organização ainda contempla a língua usada. Evidentemente, que é sempre possível meter um livro de uma secção noutra totalmente diversa mas isso é coisa que nunca me aconteceu. Portanto tudo aponta para que a “passage” IIIª tenha tido o destino das duas antecessoras. Ele há livros assim, irrequietos, sujeitos a bruxedos ou a milagres, ávidos de mundo e de aventura, descontentes com o seu possuidor, livros a quem dá doida e se emancipam sem saber que saindo de mãos seguras e amigas se arriscam a acabar os seus dias como papel para embrulhar peixe, como bem conta Lawrence Durrell em “as ilhas gregas”, livrinho que se deve ler a par e passo com “reflexões sobre uma vénus marinha” do mesmíssimo Durrell, um nobelisável esquecido (como Graham Greene, de resto).

Esta utilização estranha de u livro lembra uma outra história ocorrida com Sartre. Parece que, algum tempo depois de publicar a “Critica da razão dialética” ou “ o Ser e o Nada” começou a haver uma surpreendente forte procura do livro que até ali se vendia à razão de um dois por mês. Vai-se a ver e afinal o pesado tomo sartriano era comprado aos pares para perfazer um quilo exacto, pois faltavam pesos em todos os mercados e mercearias de França nesses tempos de post guerra e míngua.

Voltando à vaca fria: hoje mesmo fiz nova encomenda de “passage de l’homme” via amazon fr. Primeira edição, claro, mesmo se depois tive notícia que em 1999 se fizera uma nova edição do celebrado livro de Grout. Acho vou colar na primeira folha de guarda um anúncio: “dão-se alvíssaras a quem entregar este livro a mcr seu desastrado proprietário. Assunto sério.” E junto-lhe o telefone e o mail para mais facilidade.

 

Vai esta crónica para Manuel Abrunhosa, meu primo segundo, criaturinha mais curiosa do que um gato e neto mais novo do meu querido tio Marcos Viana. Às vezes ao ouvir este primo digo para mom próprio que ele tem a quem sair seja pela mãe, seja pelo pai, tudo gente - mais o tio Marcos e o Avô Manuel - que valeu a pena conhecer e que me é grato recordar com respeito, saudade e ternura. Saravah!

* na gravura Marius Grout

Diário Político 211

mcr, 16.02.17

Umade política outra de bom senso (variações)

Os leitores (e as leitoras) lembrar-se-ão de que nem sempre apreciei Francisco Assis. Todavia, igualmente recordarão, que sempre lhe celebrei a coragem (física e intelectual) e o facto de tentar perceber o mundo usando a sua cabeça.

Agora, está na moda atacá-lo por “mijar” fora da púcara da actual frente popularucha. Curiosamente, o que seria surpreendente era que ele, Assis, muito franciscanamente entendesse uivar com os lobos, mesmo se os considerasse irmãos. O que Assis vem dizendo nos jornais é exactamente o que ele disse há meses e há anos quando se dispôs a dirigir o PS.

Eu percebo, olá se percebo, que algumas medíocres e jovens luminárias do PS (a começar pela criatura que queria pôr os alemães a tremer perante o arreganhar de dentes do pobre e sacrificial cordeiro português) queiram fazer curriculum com ataques a um adversário supostamente minoritário. Isto de ser cães pisteiros do circunstancial chefe está no sangue, e na alma, de muitos. Sobretudo quando estes já nem sequer disfarçam a falta de ideologia e de convicções políticas profundas mostrando apenas a sua sede de poder e de poleiro.

Nem sequer me perturba, dali já nada me perturba, a súbita declaração de guerra do senhor Louçã, último abencerragem de Lev Bronstein, o carniceiro de Kronstadt, político irascível que tarde de mais percebeu que Stalin o amarrara de pés e mãos antes de o mandar assassinar ( que excesso!) numa perdida terra mexicana.

Louçã é consequente quando detecta em Assis o seu principal adversário dentro de um PS ideologicamente exangue e perigosamente manobrista. Louçã joga num outro tabuleiro em que a miopia pantanosa do PS permite o “entrismo” de elementos radicais que ponham, enfim, o BE (ele próprio ou um renovado) na órbita do poder. Qualquer leitor da história do(s) trotskismo(s) (e aí é exemplar o exemplo francês) sabe como isto se faz e em que isto descamba.

Todavia, vá lá saber-se por que bulas, Louçã aparece agora travestido de guru político, liberto de cadeias partidárias, uma espécie de senador (como se já não bastassem Marques Mendes, Freitas do Amaral, Ferreira Leite & similares que inundam mesas redondas onde peroram sobre a marcha dos negócios públicos)”independente” e fiável por isso mesmo.

“Est modus in rebus”: Louçã terá saído da direcção fáctica do BE, terá preferido deixar lugar a quem conseguisse ser mais flexível e, por isso mesmo, mais próximo da área do poder, mas nem por isso renegou da sua profunda crença na radicalidade trotskista por muito que esta nada mais seja do que o encanecido fantasma de uma revolução que se perdeu a si própria nos “hiers que jamais ont chanté” (se me permitem o trocadilho). O trotskismo é como a “causa monárquica” um suspiro bafiento do passado (como o “maoísmo”, aliás), uma seita de irredutíveis conservadores para quem o mundo ainda é o que se anunciava nos alvores dos anos 20/30 do século passado.

Dir-se-á que não estão sozinhos num mundo que vê Trump chegar ao poder, animado, ele também, de uma nostalgia de um passado em que a América era grande e isolacionista, branca, protestante e anglo-saxónica.

Não que eu compare o amarelado americano, velho mas desbocado, ao austero Louçã, politicamente correcto por fora e intransigente desde sempre por dentro. Um foi à luta, anunciou a cor e ganhou contra todos os prognósticos. Soube captar o “ar do tempo” e mobilizar os que, por fas ou por nefas, estavam excluídos do sonho americano ou, pelo menos, assim se sentiam. O outro dispara cartuxos de ideologia já rançosa sobre quem tenta perceber os novos tempos. Em ambos todavia, um desprezo absoluto sobre quem discorda deles. E uma radical condenação dos adversários às gemónias, claro.

Parece que quem ataca Assis ataca uma hipótese de líder em formação. Há mesmo os que o acusam de “ambição” como se para ser dirigente seja do que for não fosse necessária uma boa dose de ambição! Outros veem em Assis a sombra maldita do “renegado” Kautsky ou Bernstein (o terrível “revisionista”)pais do SPD alemão e, de certo modo, de toda a social democracia europeia. E, já agora, vencedores da dura luta que os opôs quer a Lenine quer à dupla Luxemburg-Liebknecht. Assis terá bebido muito nestas fontes que, aliás, são as mesmas do partido socialista português. Isto no caso de neste partido ter havido algum esforço ideológico para além da tralha de um “programa comum” grosseiramente (e mal) traduzido do francês. E, de certo modo, é isto, esta bagagem teórica, que incomoda os jovens turcos (e nunca uma imagem foi tão significante, hoje) do actual PS. Há nestes escorregadios políticos um desejo informe de “unidade a todo o custo”, redutora da diversidade que anima a democracia e, sobretudo a social democracia. Aliás, é bom ter “inimigos” (e não adversários...) Os inimigos, verdadeiros ou presumidos,permitem a formação em quadrado, a chamada às armas, a obediência incontestada ao chefe e o expurgo dos mal pensantes. Para um partido à deriva é sempre bom haver um alvo a abater.

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d'oliveira, 15.02.17

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Livros, alfarrabistas & outras fantasias 2

(para Nuno Canavez, intrépido livreiro da “Académica”

Os leitores impenitentes são de uma raça persistente, pacífica mas imparável. Perseguem os livros com afinco, paciência, paixão e a melhor imagem que me vem à cabeça seria aquela que mostra Camões a nadar no meio do mar com um braço fora de água segurando um punhado de folhas.

Tenho oficial e oficiosamente 60 anos redondos de comprador de livros. Usando o meu dinheiro, no caso nicial a parca mesada. Uma das primeiras livrarias onde entrei foi a “Académica”, no Porto, um alfarrabista que me ficava em caminho entre o Colégio e o Mundo (a 2ª etapa era a “Divulgação”, posteriormente “Leitura” onde deixei uma bela fortuna.)

Voltemos, porém à Académica que hoje é propriedade de Nuno Canavez. Em boa verdade, o Sr. Canavez já lá trabalhava quando eu passava pela livraria. Ali se fez o grande livreiro que hoje é, um homem que sabe tudo de livros e que não tem papas na língua. Graças ao seu saber e à sua generosidade, Mirandela dispõe de um acervo sobre a terra e sobre Trás-os-Montes sem igual em parte alguma. Canavez pesquisou, juntou, pagou e depois enviou para a terra natal mais de três mil volumes!

Todavia, não é disso que quero hoje falar mas, tão só de uma das melhores compras que alguma vez fiz na “Académica”.

Os leitores talvez desconheçam mas nos alfarrabistas há ainda o civilizado costume de entrar apenas para uma vista de olhos e, se possível, uma bela conversa sobre livros. Há sempre dois ou três contertúlios prontos a conversar sobre qualquer assunto, mormente livros.

Num dia, logo de manhã tive de ir ao centro da cidade e, despachando-me, cedo passei pela Académica. Depois de trocar duas palavras com o Sr. Canavez caíram-me os olhos em dois belos volumes, ricamente encadernados (encadernação de editor) folhas a ouro, estado impecável, edição in folio, 39x29, 1500 (mil e quinhentas!!!) gravuras, datada de 1852 se não erro. Uma beleza!

A medo, perguntei o preço. –“100 euros. Para o sr. dr. 90!” – “É para já”, respondi e saí a correr para o multibanco mais próximo para levantar o cacau.

Despedi-me, rapidamente e, ajoujado, ao peso dos dois grandes volumes, marchei para o meu quartel general das manhãs, ou seja esta esplanada de onde escrevo. E comecei a explorar a compra. Era ainda melhor do que me parecera.

Resolvi ir pesquisar o título à Internet “Tableau de Paris” de R Texier. Espantei-me ao ver os preços a que a edição corria nos mercados francês e italiano. De um mínimo de 450 até uns tremendos 900!

A manhã de sol levou-me a pensar que o livreiro, mesmo amigo, mesmo conhecedor, estaria equivocado. Aquilo, a noventinhas, era ao preço da uva mijona. Desassossegado voltei, dias depois, à livraria e prudentemente lá fui sussurrando que, se calhar, o livro fora demasiado barato, que talvez houvesse engano, enfim que talvez eu, comprador, estivesse a explorar o vendedor.

Canavez imperturbável replicou-me: Primeiro o livro era um calhamaço e já ninguém estava disposto a ter de arranjar sítio para o arrumar; depois o livro era em francês e, agora, toda a gente ignorava a bela língua e só jurava pelo inglês comercial; finalmente perguntava se os preços que eu vira eram de livros vendidos ou para venda. Tendo eu respondido que eram para venda, olhou-me triunfante e disse-me: “Viu? Ainda não os venderam pois não? Aposto que daqui a seis meses, um ano ou mais ainda por lá andam sem comprador.”.

Quatro anos depois tenho que lhe dar razão. Não garanto que seja nos mesmos exactos sites mas a verdade é que este maravilhoso “Tableau de Paris” continua à venda em vários livreiros d’além Pirenéus.

 

*não quero confundir algum leitor mais atento. De facto, existe um outro e mais famoso, “Tableau de Paris”, o de Mercier, obra notável que, porém, padece, na comparação, ao não ter uma única gravura.

o leitor (im)penitente 196

d'oliveira, 15.02.17

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Livros, alfarrabistas & outras bizarrias 1

 

“Tenho cinco minutos para contar uma história” é o mais recente e ressuscitado livro de Fernando Assis Pacheco que faria por estes dias oitenta anos. Faria, disse e repito- Quis a malina que nem aos sessenta chegasse. O Assis morreu cedo e mal. Tinha à sua frente uma bela carreira poética a adivinhar pelo que “A musa irregular” revelava. Acompanhei-lhe os versos desde 1960 na “Via Latina”, nos “Poemas livres”, nas pequenas edições só para amigos, fui mesmo editor dele (fui eu e mais quarenta que a “Centelha” era uma multidão de malucos que gostavam de livros) e, a certa altura, uma criatura manhosa convenceu-me a desembolsar cinquenta contos dos antigos para reeditar um desses livrinhos. Depois nem livro nem volta da massa: anos depois, o Assis contava-me em carta as maçadas e desgosto que tivera com o importuno e abusivo editor.

Faria, dizia, oitenta anos mas o coração, maior do que o mundo, traiu-o vilmente à porta de uma livraria. Mulher, filhas e filho e um monte de amigos persiste em lembrá-lo para o que contamos com a honrada colaboração de vários jornais e de antigos colegas. “A musa irregular” primeiramente editada pela Hiena Editora do excelente e culto Rui Martiniano é um dos bons (dos muito bons) livros de poesia da quarta parte do século XX. Parece que ainda se conseguem exemplares da última edição (3ª?, 4ª?): leitoras e leitores aproveitem. Se alguém não gostar que me devolva o livro que eu pago-o.

Este livrinho (cinco minutos...), ora editado (Tinta da China ed) é um apanhado de crónicas lidas ao microfone duma rádio. Instantes de vida, lembranças, achados, conversa boa, tudo para despachar em cinco minutos o que é obra!

Só tenho um reparo: o Assis escreveu muitas outras crónicas que ainda andam por aí esparsas em jornais. Há uns anos a família (ou talvez apenas a Rosarinho) mandou-me umas folhinhas do “sempre fixe” ou do “diário de Lisboa”, dessas que servem para manter um título jornalístico onde se apanhavam mais outros textos. Está por fazer a reedição completa e integral destas prosas de destino incerto e qualidade certa. Tivesse eu tempo e idade e atirava-me à tarefa de as recolher mas estou já avançado em anos para vencer a preguiça e a trabalheira. Ainda por cima a pesquisa teria de se centrar sobretudo em Lisboa e nos jornais onde Assis trabalhou e eu, provincial e provinciano que sou, estou longe.

À falta de melhor, deem-lhe ao dente nestes “... cinco minutos...” e acompanhem cada garfada com um copo de um bom tinto que o Assis, fino gourmet, merece a vossa boa companhia.

O afogamento da comunicação social

O meu olhar, 14.02.17

 

Alguns meios de comunicação social estão grudados na agenda política do PSD e CDS. Este posicionamento evidencia-se, por exemplo, pelo destaque que dão à actual batalha destes dois partidos: a CGD e o Ministro Mário Centeno. Torna-se evidente para toda a gente que esta batalha tem um duplo objectivo: retirar a atenção dos resultados obtidos pelo Governo em 2016 e descredibilizar o processo da CGD para fragilizar o Banco público.

Que aqueles partidos façam isso, mesmo contra o interesse público, é lá com eles. As ações ficam com quem as pratica. Agora que alguma comunicação social faça disso um cavalo de batalha é que não se entende. Assumem como sua essa guerrilha.

Um exemplo disso: Hoje na Antena 1, um jornalista de seu nome António Jorge, fez aquilo a que chamou uma síntese das “notícias” dos jornais diários. Pois bem, o que ele fez foi mencionar um conjunto de opiniões sobre o tema da agenda PSD/CDS (CGD/ Centeno). E todas no mesmo sentido. Aliás esta é uma prática recorrente deste jornalista: quase não fala de notícias mas sim de opiniões, destacando sempre as que vão ao encontro da narrativa do PSD/CDS. Porque será?

 Outro exemplo: hoje a TSF fez o Fórum sobre… pois é, sobre Mário Centeno. Mas há assunto mais importante neste país para tratar? Bom, o pouco que ouvi dos intervenientes desconhecidos defendia o terminar desta novela, mostrando-se satisfeitos com a prestação de Mário Centeno, quer como Ministro quer como gestor do processo CGD. A votação foi 80% a favor de Mário Centeno e 20 % contra. Pois bem, e qual foi o posicionamento do jornalista de serviço, por sinal segunda linha de poder na TSF? Bater forte e feio em Mário Centeno. Até pincelou a sua análise com juízos de intenções maquiavélicas. Enfim, jornalismo de rigor e isenção.

 

As pessoas estão fartas do tipo de oposição desenvolvida pelo PSD/CDS. As sondagens mensais, que por sinal são pouco divulgadas pela comunicação social, vão dando conta do avanço do PS e da estrondosa derrocada do PSD e sobretudo de Passos Coelho.

O problema é que a comunicação social, ao agarrar-se ao náufrago vai-se afogando juntamente com ele. Ao assumir a mesma agenda do PSD e CDS  e batalhar pelas suas causas, a comunicação social é arrastada para o charco da descredibilização.

São opções.

Au bonheur des dames 419

d'oliveira, 14.02.17

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Maria Cabral

Eu não sei se foi antes ou depois de aparecer em “O cerco”, filme que a atirou para o primeiro lugar absoluto das actrizes portuguesas e, particularmente, do cinema novo. Todavia, há uma teimosa memória dela, anos antes. Vista ou mais precisamente entrevista nos anos de brasa sequentes à crise de 62, terei ficado fascinado pela sua beleza, pela graça que dela dimanava e que iluminava quem inocentemente a contemplasse.

Não, não era uma paixão (oh quem dera!) de jovem rapaz a desbravar a universidade, os livros novos, a política, o cinema e o jazz. Apaixonado andava já eu, e com fortes razões, por uma mulher de que, cinquenta anos depois, todos me falam com carinho e admiração. Chegava e sobrava para me tirar o sono, que o estado de enamoramento dá a volta à cabeça (e mais órgãos) de qualquer um. Não: a Maria Cabral era, na esconsa realidade portuguesa, no meio do beatério que se nos se impunha, uma aparição de liberdade, de outra eventual e possível realidade, de uma juventude alternativa que procurávamos (sem o conseguir, pelo menos plenamente) viver.

Nunca tive inveja de ninguém mas abro uma excepção para o Vasco Pulido Valente que escreve como um enciclopedista libertino e curioso e, ainda por cima, era ou fora casado com ela. Raios partam o homem a quem tudo sorriu, incluindo a fabulosa equipa da revista “almanaque” que o acolheu e reconheceu teria ele escassos dezasseis anos! Arre!

Leio nos jornais que Maria Cabral morreu longe, no país que escolheu e a que se acolheu. Diz quem sabe que vivia cercada de livros, de música numa paz budista entre montanhas e campos pacíficos.

Agora, morrem-me constantemente amigos e conhecidos. A idade vai-me reduzindo à crescente solidão, também no meio de livros, alguma pintura e muita música. A sobrevivência aprende-se mesmo se, por vezes, parece (e é) intolerável. Vejo-me envelhecer bem mais tolerante do que alguma vez imaginei, bem mais descrente do que alguma vez jurei ser, muito mais desiludido com as partidas que a História me vai pregando (agora o Trump, Jesus, Maria José!). Não me doem o cabelo branco, o andar mais devagar, as picadelas diárias para verificar a glicose, ou o frio que sinto com mais intensidade (e o calor do Verão, idem...). Aquilo a que me não resigno é a esta partida sucessiva de amigos e, sobretudo, à imparável entrada em cena do xico-espertismo político, do oportunismo berrante, da absoluta falta de ideologia naquilo que é ou foi o meu campo político. No meio desse pântano obscuro havia breves ilhas onde o Luís Monteiro ou a Maria Cabral resplandeciam e resistiam. Agora nem isso. Não desjo a morte mas confesso que já a não temo. Que quando vier seja rápida como fulgor de uma faca é tudo o que peço. E quem cá ficar que atire o meu imprestável corpo ao mar se isso (coisa muito mais fácil do que a eutanásia) ao mar, o meu horizonte inicial e a minha última sagrada verdade.

Amén!

 

*** 

Também, por estes miseráveis dias, morreu José Vicente, livreiro alfarrabista. Conhecia-o há anos e era cliente assíduo e amigo grato. José Vicentehonrva a profissão e era sem qualquer favor um dos grandes alfarrabistas portugueses. Comprei-lhe muito livro e fui um dos licitantes mais fieis e constantes dos seus excelentes leilões. aconselhou-me muitas vezes, informou-me muitas mais e recebia-me mensalmente (quase sempre numa das últimas quartas feiras do mês) com um sorriso e duas palavras amigas. Acompahei a sua luta para manter a "Olisipo" naquele belo sítio, festejámos a sua vitória e esperei sempre que seria ele a lamentar a minha futura ausencia, tanto mais que era mais nov. Não foi assim. Resta-me esperar que o seu filho e restante família consigam manter a livraria e o rigor que José Vicente sempre demonstrou. Vai fazer muita falta a clientes e amigos que aliás eram quase sempre os mesmos. 

Carmen Miranda

José Carlos Pereira, 10.02.17

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Ontem, no dia em que passaram 108 anos sobre o nascimento de Carmen Miranda, a Google, através do doodle, a versão modificada do logótipo do Google usada para comemorar datas e eventos relevantes, prestou um tributo à escala mundial à estrela que nasceu em Marco de Canaveses e brilhou no Brasil e nos EUA.

Carmen Miranda acabou mesmo por ser o tema mais procurado no Google, em Portugal, durante o dia de ontem.

Um Desafio para a Região

José Carlos Pereira, 08.02.17

Na edição online do jornal "A Verdade" publico um texto sobre as debilidades e os desafios da Comunidade Intermunicipal do Tâmega e Sousa, que deve reflectir no essencial o que se passa em várias das entidades congéneres:

 

"A reforma legislativa que conduziu à criação das Comunidades Urbanas, primeiro, e às Comunidades Intermunicipais, mais tarde, forçou os municípios a uma agregação no espaço regional sem garantir a essas novas entidades um mandato político efectivo sobre a governação do território nas suas múltiplas vertentes.

Vivi por dentro o processo fundacional da Comunidade Urbana do Tâmega e da Comunidade Intermunicipal (CIM) do Tâmega e Sousa, enquanto membro eleito dos seus órgãos deliberativos em representação da Assembleia Municipal de Marco de Canaveses, e sempre defendi nesse âmbito que as novas entidades, uma vez constituídas, deveriam assumir propósitos ambiciosos na criação de uma identidade comum ao território e na gestão de projectos estruturantes de cariz supramunicipal.

Passados todos estes anos, creio não errar se disser que a esmagadora maioria dos cidadãos dos onze municípios incluídos na CIM do Tâmega e Sousa desconhece em absoluto o que tem sido a sua acção, quais os projectos promovidos e os ganhos que retiram os cidadãos da existência destas entidades.

Sabe-se que os diferentes autarcas continuam de uma forma natural a privilegiar o espaço territorial dos seus concelhos, onde colhem a legitimidade do voto, e é conhecida também a dificuldade de cooperação que muitas vezes percorre autarquias, associações empresariais e outras entidades promotoras de desenvolvimento social, económico e cultural. Seria aqui, na criação de uma identidade regional alicerçada em projectos comuns, que a CIM deveria ter apostado nos primeiros anos da sua existência.

O tempo perdido e as acções que ficaram por fazer não permitem que hoje se fale de uma identidade no Tâmega e Sousa. Na realidade, há diferentes dinâmicas dentro desse espaço: a área do Vale do Sousa leva a dianteira pelo trabalho desenvolvido em comum desde há muito anos; os municípios que estiveram associados no Baixo Tâmega têm uma maior proximidade entre si, mas com ambições e percursos díspares; os concelhos da margem esquerda do Douro ligam-se ao território por laços distintos.

É certo que a CIM do Tâmega e Sousa anuncia ter como áreas de intervenção o empreendedorismo, a empregabilidade, a cultura e turismo, a educação, a mobilidade e transportes, o ambiente, recursos naturais e energia. Mas o que se tem constatado é que a sua intervenção fica sempre aquém do que se esperaria, nestes e em outros domínios. Quantos projectos nestas áreas conduzidos pela estrutura da CIM tiveram um impacto relevante na vida dos cidadãos?

Repare-se que um dos projectos mais consolidados e bem sucedidos na região, a Rota do Românico, que tem promovido de forma ímpar o património existente, contribuindo para a respectiva salvaguarda e para o desenvolvimento do turismo cultural, não é gerido pela CIM do Tâmega e Sousa. À boa maneira portuguesa, gostamos de reproduzir entidades sobre o mesmo território, nem sempre por razões atendíveis, o que acaba por fazer diminuir a capacidade de gerir de forma integrada políticas, meios e recursos.  

Entendo, portanto, que a CIM não se deve limitar a ser um instrumento para gerir candidaturas a fundos europeus, como tem sucedido até aqui. Os autarcas que compõem o órgão executivo da CIM deveriam ser capazes de estabelecer um conjunto de linhas programáticas e de eixos de intervenção a nível supramunicipal, canalizando para essa estrutura os meios necessários para a concretização dos projectos. 

Os municípios já conhecem a experiência de partilhar investimentos em domínios como a gestão de resíduos, água e saneamento e promoção turística. Contudo, parece-me que muito resta por fazer, de forma a tirar partido da realidade intrínseca de cada município e a exponenciar os ganhos de escala em toda a região. Exemplos? Uma programação cultural agregadora e multifacetada, sem eventos que se “canibalizem”, integração da oferta turística em torno do extenso património cultural e natural, políticas educativas orientadas para a realidade sócio-económica da região e que impulsionem a capacidade de gerar emprego, programas de captação de investimento, gestão em rede das áreas de acolhimento empresarial, mapeamento e concretização dos equipamentos e infra-estruturas indispensáveis para a região.

O Tâmega e Sousa caracteriza-se por revelar indicadores frágeis em termos sociais e económicos, mas reúne também muitas potencialidades que os seus autarcas têm de ser capazes de usar para catapultar a região para outro plano. Estão aí à porta as eleições autárquicas e seria deveras interessante que os principais candidatos aos onze municípios assumissem no período pré-eleitoral aquilo que pretendem da CIM do Tâmega e Sousa, que políticas estão dispostos a levar a cabo nesse âmbito e o que admitem retirar da esfera do município para a alçada da Comunidade Intermunicipal.

Essa transparência e essa clarificação seriam úteis para a avaliação dos eleitores e justificariam, mais tarde, as opções que os autarcas viessem a tomar no espaço da CIM. Se dessas eleições autárquicas também viesse a resultar uma liderança política forte, coisa que tem faltado até ao momento, creio que estariam então reunidas as condições para uma nova vida e uma nova ambição da Comunidade Intermunicipal do Tâmega e Sousa."